URL DOI: http://doi.org/10.17533/udea.efyd.v33n1a05
O DEBATE -AINDA PERTINENTE- SOBRE
AS RELAÇÕES DE
GÊNERO NA EDUCAÇÃO FÍSICA
EL
DEBATE -TODAVÍA RELEVANTE- SOBRE LAS RELACIONES DE GÉNERO EN
EDUCACIÓN
FÍSICA
THE DEBATE ON GENDER RELATIONSHIPS IN PHYSICAL
EDUCATION IS STILL
RELEVANT
Tânia Mara Vieira Sampaio
Doctora en Ciencias Sociales y Religión por la
Universidade Metodista De São Paulo
Profesora e investigadora en la línea Aspectos
Socio-Filosóficos de la Actividad Física y Desarrollo en la
Universidade
Católica de Brasília (Brasil).
Junior Vagner Pereira da Silva
Doctor por la Universidade Estadual da Bahia.
Profesor en la Universidade Estadual da Bahia y
en la Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Brasil).
jr_lazer@yahoo.com.br
Loranny Raquel Castro de Sousa
Licenciada en Educación Física por la
Universidade
Católica de Brasília (Brasil)
iorranyraquel@gmail.com
Walney da Silva Xavier
Licenciado en Educación Física por la
Universidade
Católica de Brasília (Brasil)
walneyxavier@htomail.com
Gislane Ferreira de Melo
Doctora en Educación Física pela Universidade
Católica de
Brasília
Profesora Universidad Universidade Católica de
Brasília
(Brasil)
gislane.melo@gmail.com
Sampaio V., T.; Silva P., J.; Sousa
C., L.;
Xavier S., W.; Melo F., G. (2014).
O
debate –ainda pertinente- sobre as relações de gênero na educação
física. Revista
Educación
Física y Deporte, n.33 (1), 73-91, Ene-Jul 2014
RESUMO
A
análise das relações de gênero na Educação Física não é novidade.
Porém, as
pequenas mudanças observadas justificam a reelaboração do problema. O
objetivo
desta investigação foi avaliar a forma de estruturar as aulas, a
percepção dos
professores sobre o comportamento dos estudantes, e analisar as
estratégias
utilizadas em uma ação positiva sobre o tema. O estudo foi do tipo
combinado
descritivo/exploratório, no qual participaram dez professores de
Educação
Física da Educação Pública do Distrito Federal que trabalham na
educação
primária. Os resultados apontam à necessidade de seguir questionando a
percepção dos professores e estudantes de Educação Física por este ser
um
espaço privilegiado para a construção da corporeidade, tendo potencial
para
reinventar as relações de gênero.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Física.
Gênero. Aulas mistas. Estereótipo. Exclusão.
RESUMEN
El análisis de las relaciones de género en
la
Educación Física no es un tema nuevo. Sin embargo, los pequeños
cambios
observados justifican la reelaboración del problema. El objetivo de
esta
investigación fue evaluar la forma de estructurar las clases, la
percepción de
los profesores sobre el comportamiento de los estudiantes, y analizar
las
estrategias utilizadas en una acción positiva sobre el tema. El
estudio fue de
tipo combinado descriptivo/ exploratorio, en el que participaron diez
profesores de Educación Física de la Educación Pública del Distrito
Federal que
trabajan en la educación primaria. Los resultados apuntan a la
necesidad de
seguir cuestionando la percepción de los profesores y estudiantes de
Educación
Física por ser éste un espacio privilegiado para la construcción de la
corporeidad, teniendo el potencial para reinventar las relaciones de
género.
PALABRAS CLAVE: Educación Física. Género.
Clases
mixtas. Estereotipo. Exclusión.
ABSTRACT
The analysis of gender
relationships in
Physical Education is not something new. However, small changes
observed
justify revising the problem. The objective of this research was to
evaluate the
classes’ structure, the professors’ perceptions about students'
behavior, and
to analyze the strategies used in a positive action on this subject.
The study
was mixed: descriptive and exploratory, this included ten public
elementary
physical education teachers from the Federal District. The results
revealed the
need to continue the inquiry on the teachers’ and students’
perceptions as
physical educators, in order to facilitate the reinvention of gender
relationships.
KEY-WORDS: Physical Education, gender, mixed classes,
stereotype,
exclusion, perseptions
INTRODUÇÃO
As
aulas
de Educação Física podem ser o lócus privilegiado da discussão ora
proposta, mas não podem ser consideradas como único espaço refratário
às críticas
sobre os processos de estereótipos e exclusão de gênero, dentre outras
diferenças que marcam a corporeidade dos meninos e meninas que
circulam por
esse espaço longos anos de sua infância e adolescência. Mudanças de
mentalidades que envolvem construções culturais arraigadas na história
de uma
sociedade são lentas.
Estudos
acadêmicos,
de mais de vinte anos, tematizam a questão das aulas mistas ou
separadas por sexo e suas motivações e justificativas, mencionamos de
saída a
emblemática tese de doutorado de Sousa (1994), nesse quesito. Ao
retomar o
tema, interessa-nos ressaltar que ao multiplicarmos pesquisas, com
docentes que
atuam na Educação Física Escolar, as evidencias são de que pouco mudou
sobre a
histórica construção de justificativas e legitimações que afastam
estudantes de
esportes, atividades físicas e outras manifestações corporais humanas
consideradas próprias a um gênero ou outro. Esta distinção de gênero,
construída sobre o sexo, continua alicerçada em feminilidades e
masculinidades
fixas e em oposição. Um processo que coopera para reforçar
estereótipos e gerar
exclusões na experiência de meninos e meninas quando deveria ser
amplo,
diversificado e criticamente experimentado para promover
desenvolvimento
integral e cidadania.
Consideramos
relevante
a continuidade desse debate em nossos periódicos para identificarmos
onde se localizam as dificuldades de acessar, com nossas pesquisas,
aqueles e
aquelas que atuam nessa esfera de formação fundamental que é a
Educação Básica.
Discutir as relações de gênero nas aulas de Educação Física implica
assumir que
estamos diante de jogos de poder que transcendem o espaço escolar. As
construções sociais de gênero respondem a processos de hierarquização
das
relações em diversas esferas da vida, assim como também não são
exclusivas. As
assimetrias de gênero fazem coro com as étnicas, de classe, de idade,
de
corporeidades normativas entre outras. Não sendo possível abarcar
todas elas, o
presente estudo teve como objetivo analisar a ocorrência de
estereótipos de
gênero no âmbito da Educação Física e a ação docente frente a essas
questões.
Especificamente buscou avaliar a forma de estruturação das turmas
(mistas ou
separadas por sexo); investigar as percepções
docentes
sobre comportamentos discentes frente às questões de gênero;
analisar
se os docentes avaliados utilizam estratégias de intervenção que
tratam as
questões de gênero.
METODOLOGIA
O
estudo é do tipo combinado descritivo/exploratório, que tem por
objetivo a
descrição de determinados fenômenos (Marconi & Lakatos, 2002) e a
descoberta de novas percepções sobre um determinado problema (Gil,
2010). A
técnica de investigação utilizada foi aplicação de questionário que,
de acordo
com Richardson (2008), possibilita a descrição das características de
determinadas
variáveis de um grupo social. Utilizou-se um questionário criado
especificamente para os objetivos deste estudo, composto por cinco
questões
fechadas, estruturadas em escala do tipo Lickert,
de múltipla escolha, com três possibilidades de respostas, sendo que
em algumas
delas deixou-se aberto espaço para considerações a critério do
respondente.
A
amostra final foi de 10 docentes de Educação Física da Rede Pública de
Ensino
do Distrito Federal-DF que atuam no Ensino Fundamental (5º ao 9º ano)
da
Regional de Ceilândia-DF. Os critérios de inclusão adotados para a
participação
na pesquisa foram: a) ser professor de Educação Física na Rede Pública
de
Ensino da Regional de Ceilândia-DF lotado do 5º ao 9º ano; b) não
estar de
licença ou afastamento médico; c) devolução do Termo de Consentimento
Livre e
Esclarecido assinado. A análise dos dados foi feita através da
estatística
descritiva, obtendo os valores de frequência absoluta em cada uma das
questões.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Católica
de Brasília, registrado sob o nº 065/2010.
RESULTADOS
E
DISCUSSÃO
Quanto à forma de organização das
aulas, o estudo evidenciou que a maioria dos professores adota aulas
em turmas
mistas. Contudo, um sinalizou alterná-las em aulas mistas e separadas
por sexo.
|
|
Frequência (n) |
Percentual (%) |
|
Mistas |
9 |
90% |
|
Mistas e Separadas por Sexo |
1 |
10% |
|
Separadas por Sexo |
0 |
0% |
|
Total |
10 |
100% |
Tabela
1: Valores de frequência absoluta (n) e percentual (%) da
forma de organização das aulas de Educação Física
A
predominância das aulas mistas ministradas pelos professores
avaliados, numa
análise inicial, figura como ponto positivo e em conformidade com as
sugestões
de documentos orientadores, como os Parâmetros Curriculares Nacional
para
Educação Física, que expõem que
[...] as aulas mistas de Educação Física podem dar
oportunidades para
que meninos e meninas convivam, observem-se, descubram-se e possam
aprender a ser
tolerantes, a não discriminar e a compreender as diferenças, de forma
a não
reproduzir, de forma estereotipada, relações sociais autoritárias
(Brasil,
1997, p. 30; Brasil, 1998, p. 42).
O
posicionamento a favor das aulas de Educação Física, em turmas mistas,
tem sido
defendido por diferentes pesquisadores ao debaterem as questões de
gênero
(Sousa, 1994; Saraiva, 2005; Zuzzi & Sampaio, 2010), assim como
sua
recomendação, em geral, tem sido observada em investigações realizadas
em
outras localidades brasileira – escola estadual em Rio Claro-SP (Souza
& Darido, 2010),
escola municipal no
Rio de Janeiro-RJ (Duarte & Mourão, 2007) e escola municipal em
Guanambi-BA
(Cruz & Palmeira, 2009).
Entretanto,
o
simples fato de meninos e meninas realizarem aulas juntos, não tem
garantido
que relações assimétricas de gênero sejam evidenciadas, aprofundando
processos
de “naturalização” daquilo que é uma construção cultural, recalcando
estereótipos e gerando inferiorizações.
Ainda
há
de se considerar que mesmo com as recomendações de muitas pesquisas e
documentos oficiais como os PCNs (Brasil, 1997, 1998) e
orientações
à estruturação da prática pedagógica em aulas mistas, estudos têm
identificado que
sua materialização não tem ocorrido nas intervenções docentes, sendo
as aulas
marcadas por uma prática de turmas separadas por sexo, seja por sua
flexibilização, iniciando-se de forma mista e terminando separadas
(Jesus,
Devide & Votre, 2008; Duarte & Mourão, 2007; Cruz &
Palmeira,
2009), pela separação por sexo em espaços e atividades diferentes ou
divisão do
tempo das aulas em duas partes a serem ocupadas de acordo com o sexo,
uma por
vez (Duarte & Mourão, 2007; Dornelles, 2007).
Observa-se,
então,
que em relação aos professores deste estudo, apenas a informação de
que
suas aulas são organizadas em turmas mistas, embora importante, pouco
revela
sobre o tratamento dado às questões de gênero, o que nos levou a
realizar
outras interpelações a respeito do fazer pedagógico, no contexto da
Educação
Física escolar e a ocorrência de exclusão e estereótipos. A fim de
melhor
compreender como se comportam frente às questões de gênero, uma
segunda questão
lhes foi formulada: “Em suas aulas, meninos e meninas participam dos
mesmos
esportes?”
Em
resposta
a essa questão, a maioria dos docentes, conforme tabela 2, afirma que
sim, o que indica um avanço em relação à prática esportiva feminina,
haja vista
que devido a valores culturais, por muito tempo o envolvimento de
mulheres com
o esporte foi impedido e restringido oficialmente (Goellner, 2005).
|
|
Frequência (n) |
Percentual (%) |
|
Sim |
8 |
80% |
|
Às vezes |
2 |
20% |
|
Não |
0 |
0% |
|
Total |
10 |
100% |
Tabela
2. Valores
de frequência absoluta (n) e percentual (%) de docentes que informaram
que
meninas e meninos participam dos mesmos esportes nas aulas de Educação
Física
Todavia,
apesar
da crescente presença feminina no meio esportivo, essa situação deve
ser
avaliada com cautela, porque ainda há um quantitativo maior de homens
que
praticam esportes quando comparados às mulheres como também a
remuneração
financeira de homens e mulheres em ocupações similares são
discrepantes, sendo
frequentemente favoráveis aos homens. Goellner (2005) relata que,
embora
avanços venham ocorrendo, esse fato deve-se mais a um esforço de
algumas
mulheres (e alguns homens) do que à criação de políticas de inclusão
das
mulheres no universo esportivo e atividades de lazer. Dessa maneira, a
despeito
da inserção da mulher no meio esportivo, ainda há diversos
estereótipos, que se
manifestam também no âmbito escolar. Desta forma, uma terceira
pergunta foi
feita: “Você observa alguma desvantagem entre meninos e meninas em
suas aulas,
quando elas são organizadas em turmas mistas? Caso a resposta seja
sim, cite
quais.”
Conforme
apresenta
a tabela 3, a maioria dos professores afirmou que, tanto entre as
meninas quanto entre os meninos, as desvantagens às vezes ocorrem.
Ainda, três
afirmaram que sim, ocorrem desvantagens em relação às meninas.
|
|
Frequência (n) Meninas
Meninos |
Percentual (%) Meninas
Meninos |
|
Sim |
3
0 |
30%
0%
|
|
Às Vezes |
7
7 |
70%
70% |
|
Não |
0
3 |
0%
30% |
|
Total |
10 |
100% |
Tabela
3.
Valores de frequência absoluta (n) e percentual (%) de percepção
docente sobre
a ocorrência de desvantagens entre meninas e meninos nas aulas de
educação
física organizadas em turmas mistas
Dentre
as
desvantagens percebidas nas aulas mistas os professores citaram a
dificuldade das meninas no futsal, devido às diferenças de capacidade
física
(força, flexibilidade, agilidade e coordenação motora) e habilidades
motoras
esportivas (drible e chute no futsal), porém, segundo os mesmos, os
meninos
levavam desvantagem no jogo de queimada e vôlei, modalidades das quais
não
gostavam de participar. Alguns citaram ainda como desvantagem das
meninas a
falta de oportunidade delas participarem e demonstrarem sua
capacidade, o que
resultava em desmotivação para manterem-se nas aulas.
As
argumentações
apresentadas pelos docentes avaliados denotam que partilham de
uma visão de “naturalização” das diferenças existentes entre homens e
mulheres,
percepção bastante cristalizada na sociedade, condição que em outros
estudos
foi evidenciada como justificativas e argumentação de professores
(Dornelles,
2007) e alunos (Jesus & Devide, 2006) para que as aulas de
Educação Física
fossem realizadas com a separação por sexo.
Quando
perguntados
sobre a ocorrência de estereótipo de gênero durante as aulas de
Educação Física, a maioria assinalou que comportamentos
preconceituosos e
excludentes às vezes (5) são observados, conforme indica a tabela 4.
|
|
Frequência (n) |
Percentual (%) |
|
Sim |
2 |
20% |
|
Às Vezes |
5 |
50% |
|
Não |
3 |
30% |
|
Total |
10 |
100% |
Tabela
4. Valores de frequência
absoluta (n) e
percentual (%) de percepção docente sobre a ocorrência de estereótipo
de gênero
durante as aulas de Educação Física organizadas em turmas mistas
Dentre
os
atos de preconceitos existentes entre os estudantes mencionaram a
ocorrência
de insultos referentes à lentidão e fraqueza das meninas, afirmações
comuns por
parte dos meninos de que “meninas não sabem jogar futebol” e que “o
lugar delas
é sentada no banco ou jogando voleibol e queimada”.
A
exclusão das meninas e a ocorrência de exclusão nas aulas de Educação
Física
pautada na justificativa dos meninos de que elas não têm habilidade
para a
prática dos esportes, principalmente o futebol, também foi observado
em estudos
realizados em escolas municipais do Rio de Janeiro-RJ (Duarte &
Mourão,
2007), quando as meninas menos habilidosas eram desvalorizadas por
tentarem
aprender os fundamentos e terem dificuldades na aprendizagem, como
também eram
ignoradas quando não dominavam a técnica. Jesus, Devide & Votre
(2008)
constataram resultados similares, pois observaram que as reclamações
por parte
das meninas se davam em decorrência da agressividade dos meninos
quando as
mesmas erravam. Por outro lado, os meninos reclamavam por entenderem
que elas
eram muito “frescas” e afirmavam não compreender o que as meninas
queriam na
aula.
Percebe-se,
assim,
que as justificativas para a separação das turmas por sexo devido às
diferenças motoras e físicas de meninos e meninas são fundamentadas
numa
percepção biológica e equivocada do desenvolvimento humano, ou seja,
conforme
expõe Sampaio (2009), as assimetrias são vistas como algo natural e
inevitável,
devido a uma construção social de gênero sobre o sexo. O esperado
socialmente
como próprio para meninos e meninas parece advir das determinantes
biológicas,
sem que se perceba a construção histórico-cultural da qual os
estereótipos de
gênero são fruto. Sobre essa questão é importante salientar que o
desenvolvimento das habilidades motoras é influenciado por diversos
fatores,
dentre eles, os ambientais e culturais, caracterizados pelas
oportunidades de
vivências de movimentos no cotidiano.
Considerando-se que o nível
do desenvolvimento das habilidades motoras fundamentais depende da
quantidade e
da qualidade das vivências motoras nas primeiras idades segundo
Gallahue &
Ozmun (2003), pode-se inferir que o nível de habilidades das meninas
pode ser
menor não em decorrência de questões biológicas, mas sim culturais.
Uma vez que
podem ter sido desestimuladas ou mesmo não estimuladas a determinados
jogos e
brincadeiras que culturalmente são atribuídas como próprias dos
meninos. Vale
ressaltar que se esta defasagem ocorre para as meninas, os meninos não
estão
isentos de terem outros estímulos motores cerceados pelo mesmo efeito
cultural.
Os estereótipos de gênero construídos histórica e culturalmente estão
impregnados nos brinquedos e brincadeiras estimulados ou proibidos.
Observa-se,
então,
que as diferenças motoras existentes entre meninos e meninas não se
configura como uma condição inerente ao aspecto biológico de ser homem
ou
mulher, pelo contrário, está relacionada a ações culturalmente
introjetadas nos
comportamentos da sociedade, como a estereotipia de gênero, pois, a
construção
do corpo sexuado da criança começa antes mesmo de nascer, uma vez que
os pais
criam expectativas que variam de um sexo ao outro, e caso a criança
seja um
menino, provavelmente o quarto ganhará decoração na cor azul e se for
menina,
na cor rosa, como também os brinquedos serão escolhidos em
conformidade com o
construto social de gênero.
Logo a partir do momento do nascimento, a categorização
“menino” ou
“menina” determinará grande parte das características de interacção
entre a
criança e o envolvimento desencadeando um processo de socialização
diferencial,
no qual a criança vai aprendendo e adquirindo as normas e valores
definidos
previamente como adequados e desejáveis para a sua categoria sexual
(Pomar
& Neto, 2003, p. 179).
Os estudos aqui
mencionados corroboram com a discussão relacionada ao estereótipo nas
brincadeiras infantis, expondo que desde a infância é permitido aos
meninos a
participação em brincadeiras mais agressivas e livres (jogos de bola
na rua,
andar de bicicletas, rolar no chão, escalar muros), enquanto as
meninas são
desencorajadas dessas experiências de maior autonomia e exploração do
espaço
público, sendo direcionadas mais frequentemente para dentro de casa. Sendo assim, o estereótipo de
gênero nas
brincadeiras infantis e aulas de Educação Física pode resultar em
sérias
consequências ao desenvolvimento tanto de meninas quanto de meninos.
Um
aspecto
significativo das observações dos professores participantes da
pesquisa
aponta para o fato de que a exclusão e o estereótipo, em suas aulas,
não
ocorria apenas em relação às meninas, haja vista que, durante a
escolha das
equipes, as crianças menos habilidosas, obesas, tímidas e negras,
independente
do gênero, também eram deixadas por último, causando-lhes desmotivação
e
desinteresse em participar.
Estamos
diante
do processo de exclusão do diferente, que ao transcender a questão de
gênero, traz à tona uma problemática séria de nosso contexto
sócio-cultural que
estabelece corporeidades normativas muito rígidas nas quais poucos se
reconhecem como capazes de corresponder (Sampaio, 2009). Ratifica-se
que a
minimização das oportunidades de participação nas aulas de Educação
Física e os
preconceitos não ocorrem apenas em relação às meninas, se estendendo
também aos
meninos que, por sua estrutura física, não atendam ao padrão de
masculinidade
requerido para determinados esportes (Marimon & Romão, 2009).
Por
sua
vez, Duarte & Mourão (2007), identificaram que a exclusão nas
aulas de
Educação Física não ocorria apenas por parte dos meninos em relação às
meninas,
mas também entre as meninas que apresentavam habilidades motoras e
técnicas
tidas como ideais para o esporte e as que não apresentavam, sendo essa
condição
evidenciada na forma utilizada na escolha para a formação das equipes
(escolha
pelo nível de habilidade) e em alguns depoimentos das consideradas
“menos
habilidosas” – “elas zoam tanto quanto os meninos quando a gente
erra”.
Desta
forma,
ao tratar as questões de gênero, deve-se considerar seu caráter
relacional com outras categorias, como idade, raça, etnia, classe
social,
altura e peso corporal, habilidades motoras, dentre outras (Sousa
&
Altmann, 1999; Sampaio, 2009), que se manifestam em diferentes espaços
sociais,
dentre eles a escola e a Educação Física, uma vez que
Não se pode concluir que as meninas são excluídas de jogos
apenas por
questões de gênero, pois o critério de exclusão não é exatamente o
fato de elas
serem mulheres, mas por serem consideradas mais fracas e menos
habilidosas que
seus colegas ou mesmo que outras colegas. Ademais, meninas não são as
únicas
excluídas, pois os meninos mais novos e os considerados fracos ou maus
jogadores freqüentam bancos de reserva durante aulas e recreios, e em
quadra
recebem a bola com menor freqüência até mesmo do que algumas meninas
(Sousa
& Altmann, 1999, p.56).
Ainda,
é
preciso considerar que, paralelo às justificativas de separação por
sexo,
encontram-se fragmentos da esportivização das aulas de Educação Física
que,
muitas vezes, são praticadas nos mesmos moldes de competição de
rendimento,
resultando em estereótipos e inferiorizações (Dornelles, 2007), não
excluindo
apenas mulheres, mas sim todos os demais que não se encaixem no padrão
idealizado como adequado à sua prática, se equiparando ao esporte de
rendimento, ou seja, é o esporte na escola, contribuindo para que
ações
individualistas, exclusões e agressões verbais e físicas, com ênfase
na vitória
e presença exacerbada da competição, independente do meio que se
utilize para
vencer, sejam observadas em aulas de Educação Física, conforme revelou
estudo
realizado em uma escola municipal de Juiz de Fora-MG (Verbena &
Romero,
2003).
Verifica-se
que
as exclusões e estereótipos nas aulas de Educação Física vão além da
questão
de gênero, perpassando também pela exclusão decorrente da habilidade
motora que
se apresenta, pela estética corporal, por questões de raça/etnia,
dentre
diversas outras questões que envolvem o mundo da diversidade humana.
Por
fim,
com o objetivo de conhecer como os professores lidam com as questões
dos
estereótipos de gênero em suas aulas, apresentou-se a uma última
questão: “Em
suas aulas, você cria alguma estratégia/situação para trabalhar com
seus
estudantes questões relacionadas ao gênero? Caso a resposta seja sim,
cite
quais.”
Conforme
apresenta
a tabela 5, a maioria dos docentes informou que cria
estratégias/situações para que as questões relacionadas ao gênero
sejam
discutidas e tratadas em suas aulas.
|
|
Frequência (n) |
Percentual (%) |
|
Sim |
6 |
60% |
|
Às Vezes |
1 |
10% |
|
Não |
3 |
30% |
|
Total |
10 |
100% |
Tabela
5.
Valores de frequência absoluta (n) e percentual (%) de docentes que
informaram
criar situações em suas aulas para discutir questões de gênero
Entre
as
estratégias elaboradas para atenderem a esse fim sinalizaram a criação
de
regras que favoreçam maior participação das meninas, tais como – só
vale gol
das meninas, o gol das meninas vale 5 pontos, a bola precisa ser
tocada por
todos e só as meninas podem chutar para o gol, os meninos só podem
tocar para
as meninas e no basquete só vale a cesta se a bola passar pelas mãos
das
meninas.
Em
que
pese a intervenção positiva dos professores em criar condições
diferentes
para que as meninas tenham maior participação nas atividades
desenvolvidas nas
aulas de Educação Física, verifica-se que a maioria delas (só vale gol
das
meninas, o gol das meninas vale 5 pontos e só as meninas podem chutar
ao gol),
podem ser insuficientes, pois muitas vezes a criação de regras que
inibem o
emprego da força, parte da concepção de que as meninas são fracas
(Dornelles,
2007). Chama-se a atenção, com o intuito de alertar, que intervenções
pautadas
em tais parâmetros, às vezes acabam desconsiderando a articulação do
gênero a
outras categorias (Sousa & Altmann, 1999), fazendo com que os
meninos que
pouco participam das aulas, por não apresentarem uma habilidade motora
considerada como ideal para aquela atividade, sejam duplamente
excluídos.
Uma aula de Educação Física que pretenda a ampliação das
vivências
esportivas para ambos os sexos deve oferecer as mesmas vivências para
meninas e
meninos, deve oferecer as estes as mesmas modalidades, disciplinas e
exercícios. Quanto ao alargamento das capacitações motoras, a oferta
dessas
vivências na Educação Física possibilitaria a superação de limitações,
das
quais principalmente as meninas se ressentem [...] (Saraiva, 2005, p.
178).
Assim,
o
que deve ser questionado em relação à Educação Física é mais complexo
do que
se meninos e meninas fazem aulas juntos e participam das mesmas
atividades,
devendo ser refletido se as atividades trabalhadas são permeadas por
estratégias co-educativas (Saraiva, 2005; Zuzzi & Sampaio, 2010).
A prática
pedagógica na Educação Física pautada na co-educação deve adotar como
princípios norteadores uma adaptação gradativa de meninas e meninos em
uma ação
conjunta; utilizar outras orientações e objetivos para as aulas além
da
aprendizagem de esportes tradicionais; vivenciar situações que
trabalhem com
diferentes padrões de ações; incentivar meninos e meninas na mesma
proporção;
criar situações que envolvam discussões e resoluções de problemas nas
aulas;
evitar atividades estereotipantes; não forçar a formação de grupos
heterogêneos, mas criar situações neutras, como a formação de duplas
com base
na altura, o que pode favorecer que meninos e meninas formem pares.
Entendemos
que
as estratégias de intervenção ancoradas num processo de co-educação
nas
aulas de Educação Física podem ocorrer com a superação de aulas
pautadas apenas
no “saber fazer”, ou seja, vislumbramos que, por intermédio do
trabalho dos
conteúdos em suas três dimensões – conceitual, atitudinal e
procedimental –, as
questões de gênero e demais diferenças objeto de exclusões e
preconceitos podem
ser um caminho importante para mudanças. As aulas de Educação Física,
podem
propiciar a análise de aspectos sócio-histórico-culturais relativo às
assimetrias de gênero, como de etnia, de classe, de estrutura física,
capacidades motoras dentre outras, ao demarcar a dimensão conceitual.
Por outro
lado, a dimensão atitudinal pode ser contemplada por meio de vivências
que
permitam a desconstrução de estigmas e preconceitos de diversas
ordens. Também
a experimentação de diversas formas de praticar os esportes, os jogos
e demais
atividades físicas e de expressão corporal podem permitir à dimensão
procedimental descobrir modos de “fazer e “saber fazer” em que a
exclusão não
seja a regra do jogo que precisará ser re-inventada todas as vezes em
que a
discriminação, de qualquer ordem, estiver batendo à porta das aulas de
Educação
Física.
CONCLUSÃO
A pesquisa revelou muitas semelhanças com pesquisas na
área escolar em
diversas regiões do país, contudo, um processo de maior consciência
sobre a
necessidade de fazer algo em relação ao problema dos estereótipos e
suas
consequentes exclusões e ou desmotivações nas aulas de Educação Física
parece
presente. Ao mesmo tempo em que afirmam que realizam as aulas mistas,
respondem
as demais questões deixando transparecer suas dificuldades entre o
desejado
pelos debates na área e a necessidade de enfrentar a cristalização de
esportes,
atividades físicas e expressões corporais como reduto privilegiado de
um sexo,
evitando enfrentar um projeto cultural de gênero instalado em nossa
cultura.
Curiosamente chama à
atenção a dificuldade dos participantes da pesquisa em assumir a
autoria ou
promoção das desigualdades de oportunidades. A introjeção cultural é
tão grande
que nem percebem que justificam o exercício de práticas
discriminatórias ou
reforçadoras de estereótipos responsabilizando os alunos, isto é,
conferindo ao
discurso deles a responsabilidade por não alterar a regra do jogo de
poder
embutida no “jogo jogado” do mesmo modo de geração em geração, de aula
em aula.
Os resultados apontam para a urgência
da análise e
transformações das relações de gênero nas aulas de Educação Física,
por ser
este um espaço privilegiado de construção da corporeidade de meninos e
meninas
e seu potencial de reinventar as relações de gênero, com consequências
diretas
para as relações étnicas, de classe, de idade, de estatura, de
habilidades
motoras. No debate feito na área, dois aspectos sobressaem como
alternativas:
um, que a prática pedagógica na Educação Física seja pautada
na co-educação
para o enfrentamento de estereótipos e exclusões e outro que a
experimentação das três dimensões
(conceitual, atitudinal, procedimental) aconteça indissociavelmente
a cada
conteúdo específico sendo este uma chave importante para abrir novos
horizontes.
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Recepción: 05-08-2013
Aprobación: 05-03-2014