ESPORTE E CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE MORAL: IMPRESSÕES DE JOVENS EM PROJETOS SOCIOESPORTIVOS

DEPORTE Y LA CONSTRUCCIÓN DE LA PERSONALIDAD MORAL: IMPRESIONES DE JOVENES EM PROYECTO SOCIOEDUCATIVO

SPORT AND CONSTRUCTION OF MORAL PERSONALITY: YOUNG'S IMPRESSIONS IN SOCIAL-EDUCATIONAL PROJECT

Leopoldo Katsuki Hirama
Mestre, Licenciado e bacharel em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Brasil).
Docente Centro de Formação de Professores e doutorando da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (Brasil).  Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de esportes para crianças e jovens, líneas de investigación: pedagogia do esporte, treinador esportivo, esporte educacional, treinamento esportivo, sociologia do esporte da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (São Paulo – Brasil).
leopoldohirama@ufrb.edu.br

Cássia Dos Santos Joaquim
Mestranda, Licenciada em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Brasil). Especialista  pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (Brasil).
Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de esportes para crianças e jovens, líneas de investigación: pedagogia do esporte, treinador esportivo, esporte educacional, treinamento esportivo, sociologia do esporte da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (São Paulo – Brasil).
cassiasj80@yahoo.com.br

Paulo Cesar Montagner
Licenciado em Educação Física pela Pontifical Catholic University of Campinas (Brasil).
Docente da Faculdade de Educação Física, Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de esportes para crianças e jovens, líneas de investigación: pedagogia do esporte, treinador esportivo, esporte educacional, treinamento esportivo, sociologia do esporte da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (São Paulo – Brasil).
cesar.montagner@fef.unicamp.br

 

Hirama, L. K., Joaquim, C. D. S., & Montagner, P. C. (2015). Esporte e construção da personalidade moral: impressões de jovens em projetos socioesportivos. Educación Física y Deporte, 34 (2), Jul-Dic http://doi.org/10.17533/udea.efyd.v34n2a10

DOI: 10.17533/udea.efyd.v34n2a10
URL DOI: http://doi.org/10.17533/udea.efyd.v34n2a10


RESUMO
Em tempos de valores em crise, propostas educacionais que objetivam a boa convivência tem ganhado destaque. Apesar desta constatação, estudos que investiguem as possibilidades da pedagogia do esporte na formação da personalidade moral são escassos, a despeito do fenômeno esportivo ser considerado excelente meio educativo se bem mediado. Diante deste cenário, o objetivo deste estudo é o de discutir as possíveis contribuições para o desenvolvimento de valores morais de ex-alunos participantes de três projetos socioeducativos que tratavam a moralidade como um dos eixos de atuação. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, roda de conversa e questionários com vinte e seis ex-alunos e quatro professores para o levantamento dos depoimentos e tratados através da análise de conteúdo. Todos os participantes atribuíram o desenvolvimento de valores morais a partir das vivências nos projetos. Detalham-se quais valores foram mais citados e as características marcantes do ambiente nos projetos que colaboraram com estes aprendizados.
PALAVRAS CHAVE: valores morais, esporte, projetos socioeducativos.

RESUMEN
En tiempos de crisis de valores, las propuestas educativas dirigidas a la convivencia ha ganado prominencia. A pesar de este hecho, los estúdios que investigan las posibilidades de la pedagogía del deporte en la formación de la personalidad moral son escasos, incluso cuando el fenómeno deportivo se considera un excelente ambiente educativo si es configurado correctamente. Ante este escenario, el objetivo de este trabajo es discutir las posibles contribuciones al desarrollo de los valores morales
en los ex-alumnos participantes de tres proyectos deportivos diferentes. Se realizaron entrevistas semiestructuradas, cuestionarios y ruedas de conversación con los veintiséis antiguos alumnos y cuatro profesores de la encuesta de los datos. Todos los participantes atribuyeron el desarrollo de los valores morales de las experiencias en los proyectos. Se detallan em el texto los valores que más se citan así como las características más destacadas del entorno en el que colaboró con estos proyectos de
aprendizaje.
PALABRAS CLAVE: valores morales, deportes, proyectos sociodeportivo.

ABSTRACT
In times of crisis in values, educational proposals aiming at coexistence has gained prominence. Despite this fact, studies that investigate the possibilities of sport pedagogy in the formation of moral personality are scarce, despite the sport phenomenon be considered excellent educational environment if mediated correctly. Given this scenario, the objective of this study is to discuss possible contributions to the development of moral values in the alumni participants from three different sports projects. Semistructured interviews, questionnaires and conversation wheel with the twenty six former students and four teachers for the survey of the data were conducted. All the participants attributed the development of moral values from the experiences in projects. Are detailed in the text which values were most cited and the salient features of the environment in which cooperated with these learning projects.
KEYWORDS: moral values, sports, social-educational projects.

INTRODUÇÃO

O esporte é considerado por estudiosos um fenômeno que vem influenciando diversos aspectos da vida humana. Bento (2013) afirma que ele é polimórfico e polissêmico, assumindo, desta forma, objetivos, dinâmicas, formatos e significados variados.
Em tempos de liquidez de valores [1], um dos papéis que o esporte tem assumido é o de contribuir para a formação moral, em especial, de crianças e jovens. Classificado como esporte educacional ou como uma proposta de educação pelo esporte (Hassenpflug, 2004), tem sido adotado por inúmeros projetos esportivos como uma “fórmula ideal” para “tirar as crianças das ruas e da marginalidade” ou “ensinar a disciplina, o trabalho em grupo e o respeito!”
No entanto, ao se realizar busca inicial sobre estudos que investiguem a questão da formação moral através do ensino do esporte, percebe-se pequeno número de publicações, sendo a maioria caracterizada por certa superficialidade, ainda indicando bastar ensinar esporte para que os valores humanos sejam desenvolvidos de forma compulsória. No entanto, uma observação mais atenta nos espaços esportivos é suficiente para verificar ações como falta de respeito aos colegas, adversários e professores, busca pela vitória a qualquer custo, agressividade excessiva, soberba do vencedor ao vencido, exclusão do menos habilidoso, indicando que a prática esportiva pode desenvolver valores contrários aos que se entende como os de boa convivência.
Desta forma, defende-se que o desenvolvimento de valores humanos no ensino do esporte deve ser realizado de forma planejada também para este objetivo:
Portanto, os autores deste estudo adotam como princípio a necessidade de ofertar um ambiente favorável às vivências que coloquem os alunos em situações de dilemas morais, para que possam ser refletidos, discutidos e resolvidos de forma consciente e intencional. (Hirama & Montagner, 2012, p. 106)
Se estudos relativos à pedagogia do esporte não apresentam investigações mais detalhadas sobre a estimulação de valores no ambiente do ensino esportivo, ao se buscar referências nas áreas da educação e psicologia, as publicações são em maior número e mais aprofundadas, apresentando desde suas bases teóricas até propostas de intervenção. Nestas áreas as denominações referentes ao trabalho envolvendo valores são diversificadas, sendo encontrados termos como educação em valores, educação para a paz, educação para a cidadania, educação moral, cada qual com suas particularidades, mas também com suas aproximações.
Um ponto que parece ser comum nas diferentes propostas de educação moral é o que considera como objetivo do trabalho com a moralidade: “[...] a tarefa de ensinar a viver em relação a pessoas que têm necessidades, anseios, pontos de vista e aspirações de felicidade diferentes. Trata-se de ensinar a viver juntos no seio da comunidade que há de ser viável no seu conjunto e convivencial para todos os que a formam. ” (Puig, 1998, p. 150)
Desta forma, destaca-se a importância do ambiente sociomoral que segundo Puig (1998, p. 20): “A Educação Moral talvez tenha como tarefa a própria formação da personalidade moral, mas sua contribuição para a reconstrução das formas de vida não pode ser esquecida. Isso porque a formação da individualidade moral depende da qualidade do espaço social em que cada indivíduo se forma.”
Referenciam-se para este estudo as propostas que entendem a moralidade como um processo de construção individual, mas que acontece a partir das relações com os outros, afastando-se das propostas de transmissão de conceitos morais através da obediência, sansões, coerção ou imposições de regras sem a possibilidade de diálogo ou compreensão. Segundo Groengen (2005, p. 990) a “competência moral só alcança aquele que aprende, por meio de esforço próprio, a agir com reponsabilidade e não aquele que aprendeu fórmulas teóricas sem relevância prática.”
No entanto, a construção da moralidade não significa que se ignora a importância de regras de conduta e do respeito aos mais velhos, mais experientes ou hierarquicamente superiores. Segundo Piaget (1994), o desenvolvimento moral pleno se dá pela passagem de diferentes fases, iniciando-se pela anomia, que se caracteriza pela ausência de sentido das regras. A heteronomia é a fase seguinte, que se define pela obediência às regras de forma submissa e relacionada às consequências decorrentes da sua transgressão. Na última fase, o indivíduo alcança a autonomia moral quando não é necessária nenhuma imposição externa para se agir em favor do bem comum. É justamente este processo que é denominado como construção moral.
A partir da apresentação destas características referentes às propostas em educação moral, entende-se que espaços de ensino do esporte podem oferecer este ambiente sociomoral e, portanto, representar um cenário rico para experiências que possibilitem a construção da personalidade moral dos participantes.
Diante desta constatação, resolveu-se investigar as impressões de jovens ex-participantes de três espaços de ensino do voleibol que tinham em comum, além da modalidade, a preocupação, por parte de seus professores mediadores do processo, em estimular valores morais obedecendo, por vezes intuitivamente, as características acima descritas. Afirma-se intuitivamente, pois na época que estes jovens vivenciaram este processo nenhum dos professores tinha formação mais aprofundada nas bases conceituais da moralidade, atuando de forma a seguir seus próprios juízo de valores e mediadas pelas discussões entre eles para formatar as intervenções.

CENÁRIO, PERSONAGENS E METODOLOGIA

Este estudo tem por objetivo levantar as impressões relacionadas aos possíveis aprendizados em valores morais que ex-alunos participantes de três projetos esportivos atribuem à vivência no período. Os projetos esportivos que vivenciaram foram coordenados em momentos diferentes com a participação de dois dos pesquisadores.
Os projetos tinham como perfil atuar com crianças e adolescentes que não tinham acesso a outros espaços de aprendizados esportivos, na faixa etária de 7 a 18 anos, com ensino da modalidade voleibol. Embora o ensino foi oferecido para crianças e adolescentes, para esta pesquisa foram procurados apenas os jovens das turmas mais velhas, ou seja, os participantes dos grupos entre 14 a 18 anos de ambos os sexos. O primeiro projeto tratava-se de uma Organização Não- Governamental (ONG) que atuou na cidade de Campinas entre 1997 a 2003. O segundo projeto foi organizado por outra ONG com apoio financeiro de uma empresa multinacional, oferecendo o ensino na cidade de Indaiatuba entre os anos de 2001 a 2006. A terceira, também organizada pela última ONG, na comunidade de Heliópolis, em São Paulo, entre 2003 a 2005.
A estimulação de valores morais no ensino do esporte foi desenvolvida nos três projetos através de atividades intencionalmente planejadas, com objetivo de proporcionar vivências de valores específicos e eram aplicados tanto em situações de aulas/treinamentos como também em ações extra quadra e eventos, esportivos ou não [2]. Além das atividades planejadas, situações de conflitos que surgiam no andamento das aulas eram aproveitadas para a reflexão na busca por acordos que fossem significativas e coerentes para os grupos.
Para levantar as impressões dos ex-alunos dos diferentes projetos referentes aos aprendizados em valores humanos foram realizadas entrevistas individuais, rodas de conversa e questionários. Também foram ouvidos seus professores como forma de confrontar suas impressões com a dos alunos. Estas ferramentas de pesquisa se justificam visto que no período das intervenções esportivas não havia, nos diferentes projetos, o objetivo de qualquer investigação científica, e, portanto, não foi registrado nenhum dado que pudesse ser considerado para o estudo.
Justifica-se ainda a utilização destes métodos de pesquisa pelo distanciamento temporal de todos os participantes do ambiente sociomoral construído nos projetos, minimizando, nos depoimentos, os possíveis efeitos provocados pelos laços emocionais oriundos da imersão naquele meio e momento. Portanto, entende-se que as respostas, apesar de serem também pautadas nas sensações e sentimentos vividos, tinham sido formuladas com base na racionalidade[3]. Tal racionalidade é oriunda não somente do afastamento emocional do ambiente como também da maturidade da fase adulta em que se encontram todos os participantes da pesquisa, outrora adolescentes.
As entrevistas e rodas de conversa foram balizadas pelos fundamentos teóricos da metodologia da história oral, na busca do que Von Simson (2003) chama de memórias subterrâneas ou marginais. Embora esta reconstrução seja de um passado não muito distante (entre 8 a 11 anos), a metodologia foi adequada para levantar dados sobre as lembranças vividas no projeto socioeducativo, em especial as mais significativas, pois segundo Von Simson (2003), a memória depende do esquecimento, sendo impossível reter tudo o que vivemos, permanecendo, desta forma, apenas o que foi marcante e funcional para aquele que relembra.
O processo de memorização é mediado pela capacidade de selecionar o que é significativo, do que não é. Tudo o que se separa como não significativo, se esquece, permanecendo o que se identificou como importante, marcante, que pode ser utilizado futuramente (SIMSON, 2003). Desta forma, com a coleta dos depoimentos orais, buscou-se o levantamento dos fatos que foram significativos para os jovens, aqueles que mereceram destaque em suas vidas e foram selecionados para permanecerem na memória e também suas motivações para tanto.
Ainda sobre a reconstrução das memórias recentes, Fernandes (2007, p. 25), que também realizou pesquisa com jovens ex-participantes de um projeto socioeducativo, afirma:

Como a história que os depoentes reconstroem ao recontar rememorando fatos vividos aconteceu nesse período de tempo próximo e, portanto, como as memórias desse tempo vivido que cada sujeito carrega consigo estão fragmentadas e dispersas, ainda não escritas, a história oral entra na pesquisa como a metodologia mais adequada para a ocasião e a situação. (Fernandes, 2007, p. 25)

A roda de conversa serviu para contribuir nas lembranças de acontecimentos, visto que uma declaração de um participante pode detonar outras que estavam, até o momento, esquecidas. Além desta situação, Roche (2002) afirma que as rodas de conversa ou entrevistas em grupo contribuem para se levantar os diversos pontos de vista das pessoas envolvidas podendo gerar novos “insights”sobre temas a serem abordados também nas entrevistas individuais. Com estes elementos é possível realizar um rico cruzamento de informações.
Os questionários foram utilizados como forma de complementação aos dados provenientes das entrevistas, visto a dificuldade de encontro com diversos ex-alunos que não residem mais nos locais onde as práticas foram realizadas, conforme defende Gil (1999), afirmando que este instrumento de pesquisa colabora com o pesquisador, especialmente quando os indivíduos participantes estão geograficamente dispersos, dificultando o encontro pessoal com todos. Desta forma, o questionário foi enviado e recebido via correio eletrônico.
Foram entrevistadas um total de 14 pessoas individualmente, realizada uma roda de conversa com 8 participantes e recebidos 12 questionários, totalizando 30 pessoas, sendo 4 ex-professores que atuaram nos projetos e 26 ex-alunos. Considera-se o número total de entrevistados uma boa representação dos grupos, visto que o total de jovens estimados que participaram dos 3 projetos foi de cerca de 80 pessoas.
Considera-se também a dificuldade de contato com a maioria dos participantes, visto que os projetos se encerraram há 11, 9 e 8 anos. O incremento da internet e das redes sociais possibilitou o contato com a maioria dos depoentes.
Tanto nas entrevistas, roda de conversa como nos questionários, procurou-se levantar informações sobre:

1- Se os ex-alunos atribuíam o aprendizado de valores morais à vivência nos projetos;
2- Se tais valores se manifestam em sua vida atualmente;
3- Se conseguiam determinar quais valores e;
4- Se lembravam de atividades específicas que lhes proporcionaram este aprendizado.

As entrevistas foram gravadas, transcritas, reunidas em temas e, finalmente, discutidas no decorrer deste artigo. Para justificar esta análise a partir dos temas, nos referenciamos em Bardin (2001, p.154), que define como tema: “Uma afirmação acerca de um assunto. Quer dizer, uma frase ou uma frase composta, habitualmente um resumo ou uma frase condensada, por influência da qual pode ser afetado um vasto conjunto de formulações singulares.”
Desta forma, a partir dos depoimentos aproximados dos entrevistados, levantamos os temas, realizando as “formulações” e relacionando-as com o referencial teórico.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Aprendemos valores? As impressões dos jovens
Após a apresentação do eixo da pesquisa, constante nas três formas de coleta de depoimentos (entrevista, roda de conversa e questionário), iniciou-se os questionamentos a partir de perguntas específicas, mas sem antes reforçar a liberdade de resposta quanto ao tema abordado pelo entrevistado, a inexistência de qualquer cobrança ou expectativa por porte do entrevistador e ainda, deixando claro que não existiam respostas erradas, pois todas as colocações seriam importantes para o estudo, incluindo afirmações de esquecimentos.
A primeira pergunta realizada questionava se a pessoa havia aprendido algum valor moral em sua prática esportiva no projeto. A resposta de todos foi positiva, com várias afirmações de que foram muitos os valores desenvolvidos:

Eu acho que é fato, não. Todas as vezes que alguém pergunta como eu estou hoje, a quem eu devo, eu falo com certeza que é o grupo. Hoje se eu sou ética, se eu respeito as pessoas, se eu não tenho preconceito, é devido ao grupo porque a gente teve este ensinamento. (Ex-aluno 2)
Com certeza. Muita coisa, tipo, eu aprendi a conviver com as pessoas. Eu tenho amigos que eu fiz lá e que são amigos até hoje, há 10 anos. Antes eu era muito impaciente e lá eu comecei a conseguir ser mais paciente, a aceitar que ninguém é igual, que eu penso de um jeito e a pessoa pensa de outro. Cidadania, a gente aprendeu meio que a se virar sozinha, a gente fazia rifa, coisas para a gente conseguir jogar. (Ex-aluno 13)
Na verdade muita coisa. O projeto não ensinava a gente só a jogar, mas muita coisa. A conviver com as outras pessoas, respeitar os outros, nem todo mundo é igual, cada um tem seu jeito. Cooperar também, ser honesto, ter paciência era bem importante também. (Ex-aluno 14)

As respostas apresentadas convergem no sentido de um espaço rico em experiências que proporcionaram a diversidade de aprendizados morais afirmados, o que estudiosos da moralidade chamam de ambiente sociomoral. Araújo e Aquino (2001, p. 15), defendem:

[...] os valores são construídos na interação mesma entre um sujeito imbuído de razão e emoções e um mundo constituído de pessoas, objetos e relações multiformes, díspares e conflitantes. Dessa maneira, os valores são construídos a partir do diálogo e da qualidade das trocas que são estabelecidas com as pessoas, grupos e instituições em que se vive. (Araújo; Aquino, 2001, p. 15)

Dois dos professores alertaram que não era possível afirmar que todos os alunos desenvolveram os valores que eram estimulados, mas que com certeza, um grupo, mesmo que menor, apresentou indicativos de ter aprendido e que, inclusive, demonstram até os dias atuais, através dos contatos que ainda mantém com eles.

Eu imagino que sim. A dificuldade é saber o que efetivamente aprenderam e o que efetivamente vão levar para a vida. Eu tenho uma impressão muito forte que nós influenciamos positivamente nossos alunos neste sentido, por diversas situações diferentes e inclusive por ser um objetivo específico que a gente tinha na ONG. (Professor 1)
Sim, eu acho que na nossa linguagem, que a gente conversava com eles, a gente tentava passar isto para eles. A gente não viu isto em todos, depois de tantos anos, um grupo pequeno que tentou, que entendeu, que pegou um pouco destes valores. Mas eu vejo até gente como eles se socializam, a preocupação que eles tem um com o outro, acho que isto não se perdeu. (Professor 4)

Ao serem perguntados se tais valores se manifestam em suas vidas no cotidiano atualmente, todos também responderam positivamente, influenciando diversos ambientes de sua convivência como no ambiente familiar, profissional e educativo.
Com relação aos tipos de valores que alegaram terem desenvolvido, as respostas foram bastante diversificadas, com algumas aproximações mais significativas. A que mais se repetiu diz respeito ao desenvolvimento da autonomia, do “correr atrás” (expressão largamente utilizada) do que se quer alcançar:

Trouxe, porque hoje em dia tudo o que eu quero eu corro atrás! Isso veio daquilo né, dos momentos que eu passei no vôlei, de não desistir, sempre estar correndo atrás, porque uma hora ou outra a coisa boa vai acontecer, né? (Ex-aluno )
Tem também o nosso lema: O mundo gira e a gente se vira! E o mundo está andando e a gente tem que correr atrás. Você sempre falou para gente e acho que todo mundo leva para a vida. (Ex-aluno 6)

Ter autonomia, não ficar esperando pelos outros para você fazer determinada coisa, ser independente em certos momentos, tudo bem que a gente precisa dos outros para nos ajudar mas, autonomia eu acho que foi o principal, querer alguma coisa e ir atrás. Tanto é que surgiu a oportunidade de fazer faculdade, era algo que eu já tinha em mente, mas como estava envolvido com o vôlei fui fazer Educação F[isica. Não deu certo, daí fui buscar outra coisa. Estou na engenharia agora, estou sempre querendo melhorar, aprimorar meu conhecimento, para eu me desenvolver nesta área. (Ex-aluno 4)

Buscando aproximação do tema com o universo esportivo, Reverdito e Scaglia (2009, p. 138) colaboram com a questão da autonomia, referenciados por outro autor da pedagogia do esporte, defendendo a possibilidade de estimulação deste valor desde que se observe algumas características:

Contudo, segundo Freire e Scaglia (2003), autonomia somente se aprende sendo autônomo, tendo atitudes autônomas. Para isso, o jogo apresenta um ambiente facilitador desse processo e, principalmente, conforme Balbino (2001), por suas situações transpassarem as metáforas conscientes para a vida. Mas não bastará somente o ambiente ser um facilitador desse processo. Ele deverá ser problematizado pela ação do educador, que precisará ser metodologicamente refletido com rigorosidade. (Reverdito; Scaglia, 2009, p. 138)

Percebe-se coerência das propostas implantadas no projeto com as afirmações dos autores acima, visto que diversas situações que exigiam a autonomia, a tomada de decisão e a resolução de problemas via reflexão coletiva dos alunos eram proporcionadas constantemente, de forma que os professores se colocavam como mediadores, minimizando suas intervenções coercitivas. Tais situações estavam presentes desde a apresentação de táticas diferenciadas para a escolha do grupo, até formas de campanhas de arrecadação de verbas e sua utilização para as necessidades mais urgentes determinadas pelo coletivo.
Outro grupo de valores que se mostrou bastante presente nos depoimentos está relacionado à solidariedade, ao cuidado com o outro:

Também tem a parte de você ser solidário, de você ter todo o trabalho de fazer um bolo para ser vendido para todos. (Ex-aluno 11)
Aprendi a lidar com as diferenças das pessoas, saber ouvir e falar, ajudar quem precisa e fazer algo para melhorar por exemplo. (Ex-aluno 18)
Tento ser solidária dentro do que me é capaz e costumo me sensibilizar com causas que vejo. Sou uma boa ouvinte e disciplinada em algo que me proponho a fazer. (Ex-aluno 21)

A responsabilidade também foi um valor atribuído às experiências vivenciadas no ambiente esportivo em diferentes situações, quer seja como compromisso com sua própria equipe ou atuando como monitores nas turmas mais novas e até nas questões mais gerais de manutenção do projeto:

Pô, eu tenho responsabilidades, estou com as crianças menores, eles me olham como professor.  É legal isto, acho que a responsabilidade é o que fica mais forte. (Ex-aluno 6)
Me ajudou, desde que carreira seguir, a ser responsável, aprender a lidar com diversas situações como trabalhar em equipe, ajudar ao próximo, ser sempre a melhor ou pelo menos tentar ser, e em tudo o que eu faça na minha vida eu me lembro da frase: “O mundo gira e agente se vira”. (Ex-aluno 24)
E depois por meio das ações que a gente pode incluir durante as aulas, a ações de responsabilidade, por meio de eventos, eu acho que com isso a gente consegue trabalhar isto na vida deles que é o que foi feito durante os anos que desenvolvemos o trabalho com eles. (Professor 1)

Este último depoimento dado por um dos professores demonstra a preocupação com a estimulação da responsabilidade no cotidiano das aulas e demais atividades do projeto. Damon (2009, p. 170) corrobora com a questão afirmando o quanto nocivo pode se tornar uma vida sem atribuições de responsabilidades para um adolescente, destacando o que vem acontecendo atualmente com muitos jovens:

Os jovens já não sentem que fornecem contribuições necessárias ao lar, que outros membros da família dependem deles, e que, se eles falharem em cumprir suas responsabilidades, desapontarão alguém ou deixarão alguma tarefa necessária incompleta. Além das virtudes formadoras do caráter que tais responsabilidades engendram, há também o sentimento-chave de se “sentirem necessários” que não está sendo alimentado pela ausência dessas obrigações familiares. (Damon, 2009, p. 170)

Apesar do pesquisador se referir, neste trecho, especificamente às relações familiares, é possível estender esta situação ao projeto esportivo. Ao contrário do que Damon (2009) alerta sobre o perigo dos jovens se sentirem desnecessários, o depoimento dado por um dos ex-alunos demonstra a percepção do quanto é importante na dinâmica das relações daquele espaço esportivo:

Questão de responsabilidade também, porque era uma responsabilidade que eu tinha naquele momento, de estar junto com o grupo, de participar, de questionar minhas opiniões com eles. (Ex-aluno 1)

Outro valor atribuído ao ensino do esporte foi relativo ao desenvolvimento do respeito aos colegas, adversários e às pessoas no entorno:

Acho que o principal que eu levo para mim, a vida inteira, é respeito com as pessoas que estão ao seu lado, seja com pessoas que você convive diariamente, seja com pessoas que você trabalha e não pisar em ninguém para subir etapas pessoais, profissionais, tanto faz. Não pisar nas pessoas para subir na vida. (Ex-aluno 5)
Eu acho que eu aprendi bastante, sei lá, não julgar uma pessoa, assim, às vezes você ia para um evento e falava: “Ah, não quero me amigar com esta pessoa porque ela é de outro lugar!” e no final era todo mundo junto. Acho que foi uma parte importante da vida que a gente não vai esquecer. (Ex-aluno 9)

Bastante presente nas ações cotidianas dos projetos envolvidos nesta pesquisa, as discussões sobre as relações entre os componentes do grupo faziam parte das propostas de estimulação de valores. Situações de dilemas morais eram oferecidas, como por exemplo, atuar no jogo com colegas que não possuíam o mesmo desempenho esportivo. Como o mais habilidoso deveria lidar com o menos habilidoso? As broncas e xingamentos eram uma possibilidade viável ou era melhor buscar o diálogo? E como lidar com o mais habilidoso que pressiona ou tenta ajudar? Como superar a vaidade de pensamentos como: “Quem ele pensa que é para me ajudar?” O exercício da convivência refletida pode ter provocado mudanças de temperamento como foi destacada em diversos depoimentos:

Acho que eu comecei a me relacionar mais fácil com as pessoas, eu era muito calado. (Ex-aluno 6).
O T. ele era assim, mimado, tudo tinha que ser do jeito dele e eu acredito que com o decorrer das aulas ele se tornou um menino menos egoísta e hoje ele é um menino muito servidor, participativo, está no projeto ainda. Eu vi esta mudança nele, eu acompanhei o crescimento dele. Hoje ele se doa. (Professor 3)
Eu era muito tímida, não falava com ninguém e quando eu comecei no vôlei você tem que se soltar, não tem jeito, você tem que ter comunicação e também não dá para você ficar esperando as coisas, você tem que batalhar. (Ex-aluno 11)
O que eu lembro muito é que eu era uma pessoa muito difícil de fazer amizade, eu vivia num mundo que eu achava que era só eu, pensava que tudo era maldade e no vôlei eu vi que era tudo diferente, eu abri minha mente, para tudo, tudo, tudo. (Ex-aluno 12)
Antes eu discutia muito dentro de quadra, aí lá eu comecei a aprender que não era assim, que as pessoas podem pensar diferente e isto serve para o dia a dia, no trabalho, o chefe que pensa de um jeito diferente, mas tem que aceitar. (Ex-aluno 13)
Aprender ouvir mais as pessoas fez com que eu me tornasse uma pessoa que aceita críticas e tenta aprender com elas. (Ex-aluno 15)

Licciardi (2010, p.6), baseada em estudos clássicos da moralidade, reforça a importância do relacionamento entre os alunos:

De acordo com Piaget (1965/1973) a interação social, especialmente as relações de cooperação, ocorridas entre pares, são de suma importância para o desenvolvimento intelectual e moral, uma vez que elas obrigam o sujeito a descentrar-se do seu ponto de vista para que a interação continue. A criança, ao interagir com o adulto, recebe como verdade absoluta os seus ditames, sem pensar nas possíveis contradições do raciocínio deste. Mas quando a troca é entre pares, as contradições são mais facilmente percebidas e apontadas, favorecendo o desenvolvimento. (Licciardi, 2010, p.6)

A amizade e o trabalho em grupo, apesar de não serem considerados valores morais, valem ser ressaltados por suas relações de cooperação, envolvimento, entrega, cumplicidade, dedicação entre aqueles que se consideram amigos. Tais situações foram bastante lembradas como algo desenvolvido e valioso no ambiente esportivo:

A amizade e a confiança. Até hoje levo amizades que construí no tempo do projeto, e amizades boas. E a confiança que tinha nos professores e amigos, me ajudou e aos outros também, a ter outros pensamentos de vida. (Ex-aluno 20)
Aprendi várias coisas, mas uma interessante é as amizades que eu fiz que levo até hoje. (Ex-aluno 23)
Sim, sem dúvidas. Aprendi muitos valores éticos como amizade e cooperação. (Ex-aluno 25)
 [...] sim, claro, principalmente na questão de trabalhar em grupo que é uma coisa bem difícil. Hoje em dia você vai numa empresa e o que eles mais questionam é se você trabalha em grupo. ( Ex-aluno 1)
Trabalhar em equipe no mundo corporativo é essencial para meu crescimento e da área que trabalho. Acho que o mais importante é que sempre tive em mente que não se pode pensar em mim, então vejo que o mundo que vivemos é extremamente egoísta e sempre as pessoas só querem se dar bem. A minha postura sempre foi a mesma nunca passarei por cima de ninguém para crescer profissionalmente, e isso enxergo com uns ensinamentos, pois nas aulas sempre éramos um grupo e não era correto pensar somente em mim. (Ex-aluno 16)

O respeito mútuo, as fortes relações de amizade formadas e o trabalho coletivo indicam a existência do sentimento de pertencimento, que segundo Hirama e Montagner (2012) é um dos fatores decisivos para tornar o aprendizado por meio do esporte significativo, valoroso. Para corroborar com esta afirmação os autores citam Gomes (2002, p. 102):

[...] o ser humano, para manter sua saúde mental, precisa se sentir “em casa”, ou seja, pertencer a algo- ser reconhecido e reconhecer, ser identificado e identificar seus pares e ter certa relação de ser parte de um todo maior, que o colhe e o protege. Pertencer a algo, além de nos descentrar de uma onipotência egocêntrica, acalenta um sentimento de prazer, de comunhão, já que o ser humano não pode responder sozinho pelas suas questões existenciais. (Gomes, 2002, p. 102)

Os valores destacados até o momento logicamente não são estanques, pois se relacionam de forma a se estimularem ao serem vivenciados. Desta forma, o sentimento de pertencimento pode ser reforçado por valores já mencionados anteriormente como a autonomia e a responsabilidade com o outro e com o ambiente, como reforça Castro (2001, p. 492):

Sentimento de “pertence” é um construto valorizado no universo cognitivo das entidades e também o debate sobre o protagonismo juvenil. A idéia é estimular os jovens para que remodelem referências e valores, identificando-se com as práticas, princípios e produtos dos projetos, situando-se como parte deles, em um momento, e como parte de uma comunidade com responsabilidades sociais, em outro. (Castro, 2001, p. 492)

Ao serem perguntados sobre as atividades que lhes foram marcantes e que relacionavam com os aprendizados em valores, em geral, os entrevistados apresentaram dificuldade em descrever alguma em específico. No entanto, ações com caraterísticas mais gerais foram amplamente citadas como as campanhas de arrecadação de verba, participação em campeonatos e a atuação como monitores nas turmas dos alunos mais novos.
As campanhas eram proporcionadas com o objetivo de desenvolver o valor da cooperação e do trabalho em grupo. Como resultado e reforço ao empenho, os valores arrecadados, em geral, eram utilizados para a compra de materiais específicos da modalidade, a contratação de transporte para campeonatos ou os custos de algum evento esportivo no próprio projeto.

Mas sempre me lembro de uma festa junina que fizemos para levantar dinheiro para pagar a van dos regionais. Foi uma vivência muito legal pois aprendemos a fazer coisas que não sabíamos para conseguir atingir o objetivo. (Ex-aluno 16)
Nossa a gente está aqui, mas se não fosse aquele bingo, aquele dia que a gente vendeu o lanche no jogo, eu acho que a gente não tinha juntado todo o dinheiro para a gente estar aqui! É uma conquista. A gente dava valor! (Ex-aluno 11)
Bom, às vezes a gente fazia, para campeonatos, a gente fazia a venda de doces, salgados, para arrecadar dinheiro para a gente participar de outros eventos, campeonatos, mesmo que locais ou em outra cidade. No caso, a gente aprendia a honestidade, tinha gente que pegava mas não pagava, então tinha a parte da honestidade e tinha a parte que não, mas todos estavam lá para aprender o certo . (Ex-aluno 11)
A forma como os alunos se envolviam para conseguir sustentar a ONG, campanhas de vender pizza, fazer pizza, o quanto os alunos se envolviam de verdade. Não era só porque a gente falou. Eles tinham liberdade de negar, tinha gente que não ia e continuava jogando do mesmo jeito mas quem se envolvia se envolvia de uma forma muito presente, muito forte e que de alguma forma demonstra esses valores que eles assumiram. (Professor 1)

Os campeonatos são salientados e relacionados aos esforços em busca da superação, a necessidade do trabalho coletivo e do clima de cumplicidade a apoio mútuo. Os professores também indicavam os campeonatos como extensão das aulas e, portanto, ótimos momentos para a estimulação de valores:

O que fica muito presente são os Circuitos de Festivais Pedagógicos. Os Festivais para mim eram o grande diferencial no envolvimento dos alunos neste sentido. O que pode, o que não pode, de construir estas relações, de como eles agiam quando viam outras pessoas fazendo...Mostra algumas ações...o que eles estão entendendo, o que é adequado, o que não é, o que eles já assumiram como comportamentos adequados e não adequados. (Professor 2)
Eu me lembro muito bem dos campeonatos que a gente disputava, da forma como a gente tentava trabalhar a questão do campeonato na vida deles. As dificuldades que a gente tinha naquela época com o campeonato e como a gente fazia para vencer estas dificuldades. Eu acho que todas estas ações que estavam em torno do treino e do campeonato, a gente conseguia ver claramente a aplicação dos valores na vida deles e o aprendizado pela parte deles. ( Professor 1)

Para os ex-alunos os campeonatos foram ricas experiências vinculadas às vitórias, derrotas, ampliação de seu universo de convívio, estreitamento das relações inter e intrapessoais:

Para mim, todos os dias de treino, dias de encontros com o grupo, dias que íamos jogar o campeonato, foi um ensinamento. Principalmente o campeonato, pois lembro de vários jogos, alguns jogos muitos bons que me lembro bem. Porém ganhamos poucos jogos que competimos, mas mesmo assim, éramos aguerridos, dávamos o máximo, nos jogos e nos treinos. E sempre com respeito e dedicação. (Ex-aluno 20).

Acho que duas coisas marcavam muito: os internúcleos, que nos proporcionava viajar, conhecer outras pessoas que faziam a mesma coisa que nós, contudo de uma maneira diferente às vezes, visto as condições locais e conhecer essas condições também era importantíssimo, porque nos ajudava a valorizar o que temos. As amizades e momentos vividos nessas viagens ficam pra sempre nas memórias. (Ex-aluno 22)

A monitoria foi também bastante destacada no discurso dos ex-alunos. Esta ação previa a participação voluntária dos adolescentes das turmas mais avançadas no auxílio como monitores nas turmas mais novas. Suas atuações não se resumiam a papéis secundários, visto que, depois de período de acompanhamento e formação, atuavam inclusive mediando atividades nas aulas. Os valores atribuídos decorrentes desta vivência são diversos:

Eu acho que quando a gente começou a ir para a monitoria a gente teve dois papéis diferentes, de aluno e de praticamente professor. A criança vai te ver com um outro olhar, não como outro aluno. Vai te ver como um espelho e daí vai ter mais responsabilidades, você está lidando com crianças, ela vai querendo crescer, vai querer chegar onde você está agora. Acho que isto foi bastante importante para a gente. (Ex-aluno 5)
Na verdade ajudou muito dos alunos da nossa época. E essa parte do espelho é interessante. A gente anda pela comunidade e escuta: ”olha o professor ali!”, “não, não, a gente não está mais dando aula!” Mas tem gente que ainda chama de professor. A gente se sente bem! (Ex-aluno 4)
E serviu também para, tipo para algumas pessoas, foi o futuro. Hoje o S., a B. e a F. estão na área, fizeram Educação Física e tomaram aquilo para a vida deles. Outros tentaram mas não deram certo, então ajudou bastante. (Ex-aluno 5)Então, com relação à monitoria, tem esta questão que o R. falou de ser referência, que naquela época a gente era referência para as crianças menores e foi com a monitoria que eu decidi a área que eu queria seguir, porque acho que eu me identifiquei. A questão da responsabilidade e de autonomia. Acho que os professores davam bastante autonomia para a gente dentro do núcleo e aí dava mais vontade da gente fazer aquilo porque a gente tinha espaço. (Ex-aluno 2)

Finalizando as discussões dos depoimentos, considerou-se importante destacar uma característica presente nas diversas ações descritas, que se refere ao estímulo do diálogo, tanto entre pares como na relação professor-aluno:

Então, dava a regra e daí a gente jogava. Daí um pedia um tempo para a gente conversar, uma equipe montava uma estratégia, a outra, outra, porque senão você dava as regras e agora toma a bola e joga não vai ter muito um objetivo com todo mundo. Tem que ter um tempo para conversar. Às vezes uma dava uma ideia de regra e daí jogava para o professor e ele adaptava. (Ex-aluno 10)
Às vezes tinha algum problema e a gente juntava todo mundo do núcleo e resolvia aquilo. Era toda a verdade na frente de todo mundo. Era assim, tinha algum problema, então vamos sentar e conversar. (Ex-aluno 12)
Era como uma queimada, você tinha que se defender e também tinha que defender a outra pessoa para não perder. Então um fala “ah, vem para cá para não ser queimado” então tinha um avisando o outro, sempre ajudando e isto era levado para a quadra e para nossa vida, dentro ou fora das quadras era do mesmo modo. Sempre tinha uma conversa no final da aula. Então cada um falava o que aprendeu, o que achou da brincadeira, sempre tinha uma reflexão.  (Ex-aluno 14)

Santana (2003, p.20) reforça a importância do diálogo no ambiente de ensino de esportes afirmando que:

Se a criança toma consciência do que faz quando fala do que fez, o professor pode utilizar a verbalização: estimular o diálogo, a troca de idéias, a pergunta, enfim, a proposição de trocas sociais como procedimentos que pretendem contribuir com o outro para a tomada de consciência. Essa troca não se dá apenas entre o professor e os alunos, mas também entre estes últimos. (Santana, 2003, p.20)

No entanto, mediar a situação, com o professor minimizando sua intervenção, permitindo com que os alunos busquem refletir, discutir e traçar estratégias de ação nem sempre é fácil, especialmente para a realidade brasileira em geral, onde a tradição educacional tem por característica a mera transmissão de conhecimento no sentido de quem conhece (o professor) para quem vai conhecer (o aluno), incluindo nesta lógica a própria formação acadêmica deste professor. O depoimento deste professor demonstra claramente este dilema:

A gente falava da atividade e deixava, no primeiro momento, eles fazerem para ver o que eles conseguiriam fazer ou não. Daí a gente escutava bastante o que eles tinham que fazer e fazia pequenas intervenções. Mas a gente se atropelava, isto acontecia. Na vontade de que eles entendessem as vezes a gente acabava falando. Mas com o tempo a gente vai aprendendo. (Professor 4)

Apesar da dificuldade em reordenar a intervenção do professor, as próprias respostas dos alunos podem reforçar a necessidade deste ajuste, caminhando no sentido contrário à tradição da educação que prevê o docente como único orientador do trajeto a ser tomado. Neste mesmo sentido, a educação moral que busca a construção da personalidade moral deve estimular o diálogo e a solução de problemas de forma autônoma. Puig (1998, p. 45), reforça esta afirmação:

[...] a educação moral tem como objetivo prioritário construir personalidades autônomas. É por isso que a intervenção educativa deve estar centrada na passagem da moral heteronômica para a moral autônoma. Para que esse objetivo seja atingido, deve-se proporcionar experiências que favoreçam o abandono da moral autoritária e convidem a valorizar e adotar a moral do respeito mútuo e da autonomia. (Puig, 1998, p. 45)

Como mencionado anteriormente, poucas lembranças específicas de atividades que estimulavam valores foram lembradas com clareza, de forma que pudessem ser classificadas como aproximações nos depoimentos. Referem-se a estas atividades jogos ou exercícios próprios do ensino do esporte aplicados durante as aulas. Apesar de vários deles terem sido aplicados também com o objetivo de estimular valores morais, o esquecimento por parte dos entrevistados, conforme defende Von Simson (2003), demonstra que estes não ocuparam posições centrais para serem mantidos disponíveis de imediato à lembrança.
No entanto, é possível afirmar pelas aproximações destacadas que o conjunto de características destas atividades como a estimulação pela resolução dos conflitos, a autonomia, a reflexão, o diálogo e o respeito ao outro permaneceram claras como elementos causadores de desequilíbrios e posteriores ajustes morais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os depoimentos levantados indicam que todos os ex-alunos atribuem o aprendizado de valores que contribuem para uma boa vida ao período em que vivenciaram o ensino do esporte no projeto. No entanto, as memórias mais marcantes relacionadas à moralidade foram as que se referiam ao ambiente criado nos projetos.
Apesar de não terem sido norteadas por referenciais teóricos da educação moral, talvez contando com certa posição intuitiva e com certeza, direcionadas a partir do juízo moral dos professores e coordenadores, o ambiente nos diferentes projetos foi desenvolvido através de propostas intencionais, discutidas, refletidas e implantadas a partir de reuniões formais e informais constantes e compartilhadas com alunos e seus pais.
Algumas características gerais comuns nas intervenções foram vivenciadas e estão presentes nos depoimentos, como a proximidade nas relações entre pares e entre professores e alunos, abertura permanente para o diálogo, a corresponsabilidade pela manutenção das atividades, a vivência de dilemas morais que colocavam alunos e professores em situações que exigiam a reflexão em busca da melhoria da convivência para todos e, finalmente, a intenção de relacionar constantemente as experiências vivenciadas dentro do ambiente esportivo com os demais ambientes da vida de cada participante, na esperança de que valores morais desenvolvidos ali pudessem ser compartilhados em qualquer lugar ou momento.
Entende-se que outro fator relevante para a criação de um ambiente denso moralmente [4], testemunhado pelos autores que na época atuavam como professores nos projetos investigados, foi a busca constante pela continuidade no aprendizado esportivo. Diversos autores [5] que tratam da moralidade afirmam que existe íntima relação entre o conhecimento adquirido de forma significativa e os valores morais. No caso dos ambientes estudados tal conhecimento foi composto em suas variadas dimensões, quer sejam as conceituais (aspectos históricos, fisiológicos, sociais, políticos, econômicos do voleibol e esportes em geral), procedimentais (especificamente como atuar na modalidade, aprofundamentos técnicos e táticos, individuais e coletivos) e atitudinais (como os tratados neste estudo).
O tempo percorrido entre as vivências esportivos e a coleta dos depoimentos permitiu indicar uma particularidade também considerada relevante: a incorporação[6] de valores morais estimulados no esporte e que, não só permaneceram como se tornaram centrais, segundo o próprio juízo dos participantes. É de se esperar que adolescentes imersos em um ambiente sociomoral tenham sua fala relacionada diretamente aos valores que permeiam aquele grupo. No entanto, após, em média, 10 anos de afastamento do meio esportivo daqueles projetos, as afirmações sobre valores vivenciados naquele tempo e que norteiam a vida na atualidade dão claros indícios de que foram, de fato, incorporados.
Desta forma, como a totalidade dos entrevistados afirmou que os aprendizados morais desenvolvidos com a vivência esportiva se manifestam em suas vidas na atualidade, reforçam-se as convicções dos professores de que é possível colaborar para a formação cidadã de boa convivência.
Finaliza-se apontando para a necessidade de outras pesquisas, em particular aquelas que enfrentem o desafio de investigar as propostas de intervenção em educação moral por meio do ensino do esporte, os detalhes, dilemas e dificuldades da construção do ambiente sociomoral e as respostas apresentadas pelos participantes. Desta forma, entende-se que um tema tão importante, atual e premente possa se tornar gradativamente mais acessível aos professores de educação física e técnicos esportivos na incumbência de auxiliar seus alunos e atletas na direção de uma adequada formação humana.

BIBLIOGRAFIA

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  3. Bauman, Z.(2001). Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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  6. Damon, W. (2009). O que o jovem quer da vida? Como pais e professores podem orientar e motivar os adolescentes. Tradução Jacqueline Valpassos.  São Paulo: Summus.
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  8. Fernandes, R. (2007).  Educação Não-Formal: memória de jovens e história oral. Campinas, UNICAMP/CMU Publicações; ed. Arte Escrita.
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  10. Gomes, C .(2002). Feuerstein e a construção mediada do conhecimento. Porto Alegre: Artmed.
  11. Hassenflug, W. (2004). Educação para o desenvolvimento humano pelo esporte. São Paulo: Saraiva.
  12. Hirama, L; Montagner, P. (2012). Educação Moral e Pedagogia do Esporte: dimensões que coexistem? Revista Portuguesa de Ciência do Desporto, vol 12, suplemento, 2012, p. 103-106.
  13. Hirama, L..; Joaquim, C.; Montagner, P. (2011). Pedagogia do Esporte e estimulação de valores humanos: relato de intervenção. In: Intervenções pedagógicas no esporte. Montagner, Paulo C. (org.) São Paulo: Phorte.
  14. La Taille, Y. (1998). Limites: três dimensões educacionais. São Paulo: Ática.
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  16. Martin García, X.; Puig, J.M. (2010). As sete competências básicas para educar em valores. São Paulo: Summus.
  17. Piaget, J. (1994). O Juízo moral na criança. 4. ed. São Paulo, SP: Summus.
  18. Puig, J. (1998) A Construção da Personalidade Moral. Educação. São Paulo, Ática.
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  22. Santana, W. (2003)  A pedagogia do esporte e a moralidade infantil. 146 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Fisica, Campinas, SP. Disponível em: http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000310997. Acesso em: 1 nov. 2014.
  23. Stigger, M.; Thomassin, L. (2013). Entre o “serve” e o “significa”: Uma análise sobre expectativas atribuídas ao esporte em projetos sociais. Licere, Belo Horizonte, v.16, n.2, jun.
  24. Vivaldi, F.(2014). Pesquisas empíricas sobre práticas morais nas escolas brasileiras: o estado do conhecimento. 2013. 224 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000927725. Acesso em: 8 dez. 2014.
  25. Von Simson, O.(2003). Memória, cultura e poder na sociedade do esquecimento. Augusto Guzzo Revista Acadêmica/ Fac. Integradas Campos Salles, São Paulo, n. 6, p. 14.

 

Recepción 16-02-2015
Aprobación: 30-11-2015


1. Bauman (2001) chama de Modernidade Líquida as relações da contemporaneidade vividas que se caracterizam pela superficialidade, instantaneidade, fuga dos compromissos, busca por satisfação dos prazeres, não permanência ao enfrentamento de dificuldades, entre outros.

2. Para detalhes de tais ações ver: Hirama, Joaquim, & Montagner (2011)

3. DaMatta (1978, p.30) salienta a importância do afastamento da realidade vivida, afirmando que apreensão local é realizada menos via intelecto e mais via sentimentos. O distanciamento permitirá gradual inversão desta apreensão: “do estômago para a cabeça”.

4. Termo utilizado por Puig (2003)

5. Ver Puig (1998); LaTaille (1998); Martín García & Puig (2010); Reverdito & Scaglia (2009).

6. Sobre valores incorporados e valores centrais ver Vivaldi (2014); Stigger & Thomassin (2013).