A EXPERIÊNCIA DE UMA PROFESSORA ESCOLAR COMO POSSIBILIDADE DE PENSAR E FAZER DA ESCOLA UM LUGAR DE CULTURA: TRAJETÓRIA FORMATIVA E BOAS PRÁTICAS EDUCATIVAS.[1]

 

LA EXPERIENCIA DE UNA PROFESORA ESCOLAR COMO POSIBILIDAD DE PENSAR Y HACER DE LA ESCUELA UN LUGAR DE CULTURA.  TRAYECTORIA FORMATIVA DE BUENAS PRÁCTICAS EDUCATIVAS

 

THE EXPERIENCE OF A SCHOOL TEACHER AS A POSSIBILITY OF THINKING AND MAKING THE SCHOOL A PLACE OF CULTURE, CAREER TRAINING, AND GOOD EDUCATIONAL PRACTICES

 

DOI:

10.17533/udea.efyd.v33n2a06

URL DOI:

http://dx.doi.org/10.17533/udea.efyd.v33n2a06

 

Nenhuma ideologia é inteiramente absorvida por seus partidários: na prática, ela multiplica-se de diversas maneiras, sob o julgamento dos impulsos e da experiência.

Edward Palmer Thompson

Esse trabalho é dedicado à professora Mercedes Lopes Parrilha Kluge

 

Marcus Aurelio Taborda de Oliveira

tem Pós-Doutorado pela Universidad de Murcia (España) e Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil), é bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, e da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, além de Professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, Brasil)

marcustaborda@pq.cnpq.br

 

Taborda, M. A. (2014).  A experiência de uma professora escolar como possibilidade de pensar e fazer da escola um lugar de cultura: trajetória formativa e boas práticas educativas. Educación Física y Deporte, 33 (2), 343-379 Jul-Dic. http://doi.org/10.17533/udea.efyd.v33n2a06

 


 

RESUMO

¿O que seriam boas práticas no âmbito das aulas de Educação Física em escolas públicas brasileiras? Essa questão motivou o projeto que deu origem a este texto, o qual nos permitiu a imersão na rotina de uma professora de Educação Física de elevada reputação na comunidade na qual trabalhava. Aqui apresento uma interpretação do que consideramos, no interior daquela pesquisa, indícios de boas práticas pedagógicas no âmbito da educação física escolar, tendo como suporte analítico a trajetória profissional da professora Mercedes. Vali-me das observações de aulas feitas por uma equipe de colaboradores, dos documentos curriculares dan Escola que acolheu a nossa iniciativa e, fundamentalmente, dos registros de quatro seções de entrevistas, duas feitas com a professora e duas com a pedagoga da Escola. O objetivo foi articular a trajetória da professora com o desenvolvimento das suas aulas, a partir do diagnóstico que a sua comunidade a reconhecia como uma excelente professora.

PALAVRAS-CHAVE: boas práticas pedagógicas, educação física, trajetória, escola, pedagogia

 

RESUMEN

¿Cuál sería una buena práctica dentro de las clases de Educación Física en las escuelas públicas brasileras? Esta cuestión motivo el proyecto que dió origen a este texto, el cual nos permitió la inmersión en la rutina de una profesora de Educación Física de alta reputación en la comunidad en la que trabaja.  Aquí presento una interpretación de lo que considero, a partir de la investigación, indicios de una buena práctica pedagógica en el ámbito de la educación física escolar, teniendo como soporte analítico la trayectoria profesional de la profesora Mercedes.  Me valí de observaciones de clases realizadas por un equipo de colaboradores, los planes curriculares acogieron nuestra inciativa y, fundamentalmente, los registros de cuatro secciones de entrevistas, dos realizadas con la profesora y dos con la pedagoga de la escuela.  El objetivo fue artícular la trayectoría de la profesora con el desarrollo de sus clases, a partir del diagnóstico con el cual su comunidad la reconocía como una excelente profesora

PALABRAS CLAVE: buenas prácticas pedagógicas, educación física, trayectoria, escuela, pedagogía

 

ABSTRACT

What would be a good practice in Physical Education classes in Brazilian public schools? This question motivated the project that created this document and allowed the immersion into the routine of a very well-known Physical Education teacher.  Here is presented an interpretation of what is thought to be (from the research) evidence of a good teaching practice in the field of Physical Education, having as analytic support the career of professor Mercedes.  Classroom observations by a team of collaborators were made, and, fundamentally the recordings of four interview sections: two with the teacher and two with the school's pedagogue. The objective was connect the trajectory of the teacher to the development of her classes based on the diagnosis that her community recognized her as an excellent teacher.

KEY WORDS: good teaching practice, physical education, career, school, pedagogy.

 

 

INTRODUÇÃO

Nos diálogos que deram origem ao projeto maior que englobou todos os subprojetos desta pesquisa, uma das preocupações foi tentar ver como a escola pública não é apenas o lugar da incúria e do fracasso, como muitas vezes observamos nos discursos veiculados pela academia ou pela grande mídia. Partíamos do pressuposto, a partir de lentes distintas, que ocorrem boas práticas em muitas escolas públicas o que nos motivou a buscá-las, identificá-las e observá-las.

No caso da escola estudada em Curitiba, capital do Estado do Paraná, na região Sul do Brasil, tratou-se de uma Escola Municipal localizada em um grande bairro originalmente ocupado por trabalhadores pobres, más que hoje tem se caracterizado pela presença intensa da classe média. A população atendida pela escola ainda é majoritariamente de alunos oriundos de famílias pobres ou da clamada classe média baixa, com poucas exceções. A escolha daquela escola se deu pela conjunção de alguns motivos: 1) tratava-se de uma escola pública “comum”, no sentido de não ter projetos pedagógicos “exemplares” ou “modelares”. Nossa intenção foi fugir da ideia de escola modelo para tentar captar algo que pudesse representar a realidade cotidiana da maioria das escolas públicas brasileiras; 2) o reconhecimento no âmbito do município que aquela era uma escola que tinha definido com clareza um projeto pedagógico, o que supostamente deixava pouca margem para a improvisação, a incúria, para o “fazer por fazer”; 3) uma das professoras de Educação Física da escola ali trabalhava havia décadas e era reconhecida por desenvolver um trabalho sério e consistente nas suas aulas, o qual mirava a ampla formação dos seus alunos para além do seu desenvolvimento corporal.

Definidos os critérios sobre a ambiência que sería observada, a análise do que poderiam ser boas práticas educativas não poderia prescindir do entendimento do que sería uma aula, uma vez que a escola em sua diversidade nos apresenta um conjunto muito vasto de possibilidades de formação, muitas não necessariamente disciplinares (Taborda, 2009). 

Partindo da unidade “aula”, na investigação tentamos minimamente circunscrever esse espaço-tempo da escola, lembrando que a aula pode assumir diferentes configurações, de acordo com as concepções de currículo definidas por cada unidade escolar, em cada contexto específico. Assim, aqui não me refiro a aulas em geral, mas a um padrão específico de aula, mutável no tempo, motivo pelo qual me valho das considerações de André Chervel (1990) para caracterizá-la. Tenho clareza que ao adotar um determinado tipo explicativo, não necessariamente veremos a sua materialização in toto no ambiente escolar. Por isso mesmo admito operar com “indícios” de boas práticas, ciente que a dinâmica de uma aula é sempre fugidia e a sua realização conta com grande plasticidade, a qual é delineada pelo encontro experiencial entre professora e alunos, o qual não está isento de tensões e conflitos.

A noção do que seria uma boa aula ou uma boa prática também não está isenta de problemas. Se apenas quisermos encaixar a teoria na realidade, então provavelmente nunca teremos uma boa prática, pois a realidade não se nos apresenta como gostaríamos nas nossas teorizações. Como lidamos com pessoas –professoras e professores, alunas e alunos–, com memórias e ações cotidianas, muito do que a teoria vê como harmonioso e equilibrado pode esconder fissuras e idiossincrasias próprias da “exploração aberta do mundo”, uma das maneiras como o historiador Edward Thompson (2002) definiu a experiência. Assim, mesmo seguindo as reflexões de Andre Chervel (1990), estou ciente que elas não definem um padrão absoluto, mas uma possibilidade com certa recorrência na história das disciplinas escolares. Por isso buscávamos indícios, vestígios de boas práticas, e não pretendemos buscar coerência absoluta nas ações da professora que muito gentilmente se dispôs a participar da pesquisa.[2]

A partir de um conjunto de inferências que não julgo necessário tratar aqui, de certa forma a noção de uma “boa aula” acabou se aproximando muito da ideia geral de uma aula com consequências formativas, que superasse, portanto, o fazer por fazer identificado por Souza (1999). Acompanhando os debates sobre os sentidos das aulas de Educação Física parti do entendimento que o que deveria ser o fim último da escola passou a ser, de algum modo, o diferencial para definir se uma aula poderia ser caracterizada como uma “boa aula”. Isso explica muito do que entendemos por boas práticas. Elas têm a ver com uma tentativa consciente e conseqüente dos professores escolares (portanto, organizada) de oferta de acesso à cultura aos seus alunos. Interessava menos, naquele contexto, como de resto ainda hoje, se o “modelo de aula” se baseia no esporte ou não, por exemplo. Um professor que ensina de fato e bem o esporte é, sem dúvida, uma alternativa melhor àquele professor detentor de um discurso bem articulado sobre as mazelas da escolarização e da Educação Física, crítico do esporte na escola, mas que não se preocupa nem mesmo com a organização de uma aula para os seus alunos. Se as múltiplas faces do currículo implicam um circuito de prescrição, interação e ação criativa, não se pode negar que em muitas escolas esse circuito simplesmente não existe para além de certas formalidades burocráticas (Gimeno, 2000). Desse modo, interessa bastante que uma intencionalidade, uma finalidade e uma ação minimamente organizada sejam manifestas nas práticas docentes.

Recentemente tive a oportunidade de tratar com mais vagar esse tema. Procurei definir as práticas da maneira que segue:

Uma prática, diferentemente do que supõe o senso comum acadêmico, não é simplesmente um fazer, mas um fazer balizado e estruturado a partir de certos elementos constitutivos, os quais, combinados, emprestam um sentido à ação, seja ela docente ou não. Uma prática pressupõe um conhecimento experiencial, tomado este como um diálogo permanente entre o agente e os condicionantes sociais e culturais da ação. Quando agimos, o fazemos em condições determinadas, ainda que nossa ação possa ser inventiva, criativa ou crítica em relação àquelas condições. Por exemplo, um professor não ensina o que quer, mas ensina algo a partir da definição curricular, da qual raramente participa; em condições infraestruturais comumente precárias quando se trata das escolas públicas brasileiras; afetado por um conjunto de problemas que extrapola as suas possibilidades de intervenção. Esse saber experiencial vai muito além da improvisação, do “fazer por fazer” ou do “deixar de fazer”.

Mas ele pressupõe, também, uma regularidade. A prática se define pela estabilização de certas maneiras de agir, o que não significa inércia, repetição mecânica ou apego a fórmulas congeladas. Prática é aquilo que fazemos porque nossas ações foram testadas, se mostraram potenciais, sofreram a pressão das condições mais ordinárias do cotidiano ao longo dos anos e... se estabilizaram! Por isso, por mais que seja fácil proclamar discursivamente, não é simples alterar ou transformar práticas. Elas estão encarnadas nas experiências, nas trajetórias de vida e nas memórias de cada agente em relação aos seus interlocutores ou detratores. Ao ignorar essas dimensões do ser professor, muitas teorias pedagógicas abstraem a concretude da vida na possibilidade de formação de professores e proclamam a existência de um tipo ideal de professor, como se isso fosse possível.[3]

Essas ações regulares e algo reguladas foram aprendidas e treinadas, exaustivamente repetidas, se quisermos. Uma prática, fundada no conhecimento experiencial não é uma ação espontânea, improvisada ou intempestiva. Ela é fruto de um lento processo de maturação, de afirmação de estabilização de um modo de agir em determinadas condições. Não raro, em choque com outras formas de compreender a ação e sua possibilidade. O fim desse processo pode ser a automatização de gestos, condutas, intervenções, o que implicaria reconhecer que alguém está preparado para realizar determinada ação, ensinar, por exemplo. A prática de cada agente pode ser –e normalmente é– diferente, mas deveria ser inimaginável conceber que um professor não tem um repertório de práticas que permita o desempenho ao menos satisfatório da sua função social, seja ela instruir, educar ou formar. Ou seja, ela é justamente aquele amálgama que permite a diferenciação de um indivíduo em um conjunto de ações que visam a realização de finalidades comuns estabelecidas pela sociedade. Essas ações –para nós, práticas– são comuns a uma corporação profissional, por exemplo, como a dos professores. A sua expressão, essa sim pode ser marcada pela singularidade de cada professor.

Da escola se espera que forme, dos professores se espera que atuem na direção de oferecer condições –ensinem– para que a formação seja possível. Logo, ”não fazer nada” não pode ser considerado uma prática, pois isso, por si, contraria a função primeira do professor: agir no mundo. Negar-se a agir, apenas rolando uma bola, por exemplo, é negar a própria condição de possibilidade de um processo educativo significante. Um professor pode ter práticas “incorretas” –dependendo do ponto de vista–, inadequadas, conservadoras, insatisfatórias. Mesmo assim, ele desenvolve determinadas ações, ele age articulando os três aspectos anteriormente explicitados. Um professor que não o faz, além de ferir um princípio ético básico, não pode ser tomado como alguém que produz práticas docentes. Néscio ou oportunista, ele abdicou da sua condição de docente ao negar-se a atuar no mundo (Taborda, 2013).

Para muitos, isso seria pouco para definir o que são boas práticas. No entanto, dado que além dos problemas inerentes à sua formação e valorização profissional, muito professores simplesmente “esqueceram” porque estão na escola pública, não me parece tão pouco assim. Por isso, optei por correr o risco de assumir que a pretensão é bastante modesta na tentativa de recuperar o que podem ser boas práticas pedagógicas.

O relatório de pesquisa que deu ensejo a realização desse texto, depois de concluído foi submetido ao escrutínio das professoras de Educação Física e da pedagoga da escola estudada. Algumas das suas ponderações foram incorporadas à sua versão final, por serem bastante pontuais. No entanto, muitas foram as discordâncias da escola com relação à interpretação da equipe de investigação. Infelizmente, no espaço aqui disponível não é possível explorar aquele rico diálogo De modo a apresentar às suas críticas à pesquisa, entendemos que sería enriquecedor destacar as suas ponderações de forma direta, o que farei na forma de citação.

No entanto, como o meu propósito é explorar a experiência de uma das professoras, apenas, os comentários da professora Mercedes foram incorporados à minha narrativa, ora como crítica à nossa forma de olhar, ora como complemento de alguma coisa que nos escapou no difícil processo de identificar e caracterizas o que podem ser boas práticas educativas e o que poderia ser uma boa aula de Educação Física.

 

Inquirindo as práticas escolares: o que é uma boa aula?

            Ao nos lançarmos ao propósito de estudar boas práticas educativas, de pronto nos deparamos com o desafio de definir de alguma maneira o entendimento dos elementos que caracterizariam essas boas práticas. No nosso horizonte tínhamos preocupações com a educação do corpo, tomada no seu sentido mais amplo, no ambiente escolar. No entanto, vários limitadores inibiram a pretensão de imergirmos em tempos, espaços e rotinas que extrapolassem a aula de Educação Física. Assim, por fatores alheios à nossa vontade –mas que compõem o universo dos limites de quem pesquisa–, fizemos um primeiro recorte e definimos que nos debruçaríamos não sobre práticas educativas genéricas no espaço escolar, mesmo aquelas afeitas à educação do corpo, mas sobre aquele momento do currículo que caracteriza a aula de Educação Física em um sentido estrito. Isso define a nossa mirada como necessariamente disciplinar, sabedores que as disciplinas escolares compõem apenas uma das facetas do currículo (Goodson, 1991a; Taborda, 2009).

Entendemos o currículo como um dispositivo ordenador de práticas, saberes, condutas, rotinas, enfim, como um artefato que dirige a vida escolar. Como artefato trata-se de uma construção social tangida por disputas em torno das finalidades sociais da escolarização, às quais são engendradas por grupos profissionais (professores), por gestores, pelos formuladores das políticas públicas, não esquecendo que a sua realização só pode se efetivar com o consórcio ativo dos agentes escolares, sobretudo, professores e alunos. Essa ênfase permitiu a Ivor Goodson (2007, p.248), recentemente, lançar a idéia de um currículo narrativo, o qual percorre memória e história de vida de professores, algo bastante caro ao autor, quem destacou a necessidade metodológica dos investigadores darem voz ao professor (Goodson, 1995b).

Do currículo fazem parte os rituais escolares, os tempos, os espaços, as formas de comunicação, de controle, de punição, além de tudo o que mobiliza o cotidiano das escolas. Já, cada disciplina é um dos elementos constituidores do currículo, uma das suas unidades não monolíticas que, ordena conjuntamente com outras disciplinas, o saber escolar. Veremos, seguindo as trilhas abertas por Chervel (1990), que as disciplinas se definem por determinados componentes historicamente contingentes.

Para a professora Mercedes, que se refere sempre à educação física e nunca à educação do corpo, “a escola toda educa: a sala, a quadra, os corredores, a cantina, até a aula de educação física (risos)” (Professora Mercedes, 2007). Sem teorizar sobre o currículo a professora tinha clara compreensão que a unidade aula (no seu caso, de Educação Física) era apenas um dos muitos momentos educativos da escola.

Assim, entendemos que o currículo atua sobre o corpo, por excelência, nas suas mais diversas dimensões, seja de forma deliberada ou subliminar. Daí podermos falar de uma educação do corpo na instituição escolar, tanto como a que podemos observar desde os momentos menos normalizados, como os recreios, as saídas e as entradas na ambiência escolar, quanto aquela que observamos em algumas disciplinas, especificamente. Já, nem todas as disciplinas educam o corpo, ainda que o corpo esteja sempre presente nas suas práticas. Mas certamente a disciplina Educação Física é, historicamente, um tempo e lugar chave para compreendermos como a corporalidade tem sido tratada na e pela escola.[4] Daí nossa opção pelo estudo das aulas de Educação Física, mesmo reconhecendo, como a própria professora, que a educação no corpo extrapola os seus estreitos limites.

Definida a ambiência e a escala da nossa intervenção se interpôs novamente a questão original: ¿mas o que seria uma boa aula de Educação Física, entendida a disciplina como um artefato curricular? Nesse terreno muitos ensaios são possíveis se pensarmos no debate recente no campo da Educação Física brasileira. Desde caracterizar uma aula em uma determinada perspectiva “progressista” ou “crítica”, passando pela possibilidade de uma aula “estimulante” para os alunos, tanto quanto pelo puro e “simples” desenvolvimento de uma aula, já que é notório que as chamadas “aulas livres” são uma realidade incômoda como praga em boa parte das nossas escolas públicas. Nesse ponto o problema inicial ganhou contornos ainda mais imprecisos: ¿o que seria uma boa aula, não apenas de Educação Física, mas de qualquer outra disciplina?

Foi nesse momento que, atentos à contribuição dos estudiosos do currículo e das disciplinas escolares, nos valemos das considerações de Chervel (1990) para caracterizar uma aula (boa ou não seria uma definição a posteriori). Para este autor, estudioso do processo de engendramento das disciplinas escolares como artefato cultural, um conjunto de elementos ajuda a definir o estatuto de uma disciplina, por extensão, uma aula. Entre eles podem ser destacados: a exposição pelo professor ou pelo manual de um conteúdo determinado; exercícios; práticas de motivação e incitação ao estudo; provas de natureza docimológica (avaliativa) (pp. 202-6). Chervel não deixa de enfatizar também o fato de as disciplinas escolares cumprirem certas finalidades sociais, definidas na tensão entre o processo de escolarização e os resultados que a sociedade espera daquele processo em cada período histórico.

Seguindo de forma bastante flexível essas indicações, partimos do entendimento que para caracterizar uma boa aula de Educação Física deveríamos primeiro evidenciar o que seria uma aula, mesmo correndo o risco de enfrentar o debate sobre a crise da disciplinarização dos saberes, posta no âmbito dos recentes estudos do currículo. Todavia, não é difícil reconhecer que a escola brasileira preponderantemente ainda se organiza em torno do modelo disciplinar, definindo tempos, espaços, materiais, rotinas, práticas, professores, em função de determinadas especializações. No caso da Educação Física na escola por nós analisada essa organização é evidente. A escola oferecia, no período da investigação, duas aulas semanais de Educação Física aos seus alunos da Educação Infantil ao 4º. ano do ensino fundamental, ainda que não oferecesse as demais disciplinas pelas mãos do chamado professor “especialista”.[5] Cada uma dessas aulas tinha uma duração de 50 minutos. A escola disponha de material e espaço próprios para a realização dessas aulas. Como já foi afirmado, essas aulas estão sob a responsabilidade de professores licenciados em Educação Física, ou seja, “especialistas”. Assim, partindo desse reconhecimento entendemos que uma aula de Educação Física deveria ocorrer de fato, satisfatoriamente, dadas as condições objetivas para a sua efetivação.

Não foi difícil o próximo passo: articular a disposição dessa unidade escolar para oferecer condições para a realização das aulas de Educação Física e definir um conjunto de elementos que ajudassem a caracterizar a realização efetiva de uma aula. Foi nesse ponto que passamos a caracterizar uma aula a partir da ocorrência de alguns elementos fundamentais, nem sempre no mesmo tempo e lugar, nem sempre com uma coerência absoluta. Definimos como elementos constituintes de uma aula os seguintes pontos: uma finalidade para o ensino; objetivos; conteúdos; metodologia; tempo e infraestrutura; avaliação; participação dos alunos. No roteiro definido para a observação desses elementos ainda agregamos as condições do professor (saúdem cansaço, empenho, disponibilidade, diálogo etc.), observações gerais (de cada aula observada) e outras questões relevantes. Esses elementos combinados de diferentes maneiras ajudariam a caracterizar uma aula no sentido disciplinar, para alguns, no sentido do currículo “tradicional”.

Mas entendemos que a ocorrência desses elementos não é necessariamente concomitante: elementos que definem uma avaliação podem ou não estar presentes em uma aula, por exemplo, assim como uma aula específica talvez não apresente uma finalidade bem definida. De alguma maneira, no entanto, consideramos que quanto mais elementos se combinarem durante uma aula mais estaríamos próximos de uma caracterização precisa do que seria uma boa aula. Um professor que organiza uma aula levando em consideração determinados conteúdos da cultura, deverá explicá-los/ desenvolvê-los (metodologia) com os alunos para que cumpram certos objetivos, submetê-los a um processo de apreensão (exercícios) e verificar os resultados do seu labor e do sucesso/fracasso dos alunos (avaliação). Esse processo se dará em um lugar e tempo específicos, ainda que variáveis, e contará com a participação –ativa ou não– dos alunos e com as próprias condições do professor (competência, saúde, desgaste, autoridade etc.). Normalmente em uma aula teríamos a presença combinada de vários desses elementos, ainda que não de todos.[6] Daqui emergiu o entendimento que uma aula, no sentido forte do termo, deve ao menos combinar alguns desses elementos.[7]

A aula, este tempo e este espaço específico que não se confunde com outros tempos e espaços da escola, de alguma maneira, pelo seu imperativo ainda hoje no ambiente escolar, ajudou a definir em larga medida os limites da nossa investigação. Forçoso reconhecer que os efeitos da escolarização propugnados por Chervel (1990) só podem ser objeto de verificação em termos geracionais, não a partir das particularidades e singularidades de uma aula ou de uma disciplina específica. Nesse sentido, não ousamos inferir se as aulas analisadas contribuíram ou não para o sucesso dos alunos, visto que a metodologia por nós adotada não permite estabelecer generalizações de quaisquer ordens.

Assim, com aquela pesquisa pretendemos, basicamente, a partir de um mergulho empírico em uma realidade específica, indagar aquelas retóricas que afirmam a escola pública como lugar dos condenados ao fracasso, onde professores desestimulados e sem preparo passam os seus dias, onde grassa a incúria, a indiferença, o descaso, o descompromisso, uma escola pública que não é, enfim, um centro de transmissão e produção cultural. No nosso registro esse tipo de retórica olvida condições objetivas e efetivas de realização da ação pedagógica, sempre imaginando uma escola ideal isenta de idiossincrasias. Ao fazê-lo tira dos agentes escolares o seu protagonismo, reduzindo a sua experiência a um reflexo das determinações estruturais. Por fim, contribui para desqualificar a experiência docente como um compósito de expectativas, necessidades, desejos e possibilidades que raramente podem ser captados pelo discurso pedagógico seja de que matiz for. A experiência não pode ser plenamente apreendida; tampouco é redutível a qualquer esquema cognoscível simplista (Thompson, 2002).   

Nossas escolhas, sujeitas a toda sorte de questionamento, nos permitiu tentar articular uma interpretação da realidade de uma escola pública na periferia de uma grande cidade brasileira, a despeito das prescrições e das idéias à vezes tão voláteis que teorizam sobre a escola, ficando sempre além dos seus muros. Essa perspectiva,

 

Com efeito, colocando-se numa posição em que pode considerar apenas a vida consciente e racionalizada do grupo, deixa de lado a sua vida profunda, espontânea, fruto da integração dos seus membros e que nem sempre encontra modos de exprimir-se pelas normas racionalmente previstas (Candido, 1983, p.108).

 

Nossa pretensão não é construir um discurso sem fraturas, exato ou generalizante; mas pretendemos recuperar a idéia de que a escola, os professores e as aulas públicas podem ser “boas” experiências culturais, no sentido da sua qualidade e da sua possibilidade de acesso à cultura. Para isso, a experiência de uma professora se mostrou um estímulo a mais.

 

Ser professora “pública” de Educação Física

Edward Thompson (1987) caracterizou o processo de escolarização em sua obra clássica como “motor do distanciamento e da aceleração cultural”. A escolarização, essa experiência tipicamente “moderna” se afirmou como “lugar” de transmissão da cultura, de instrução, de formação. Ao longo desse processo se afirmou como possibilidade de domínio hegemônico e, sua contraparte, como possibilidade de esclarecimento e contra-hegemonia. Nesse sentido a experiência da escolarização é aberta, inacabada, encerra possibilidades, daí a sua paradoxal complexidade. Imagine-se essa experiência histórica a partir da trajetória de vida de uma professora singular.

Professora Mercedes nasceu de uma família de trabalhadores do interior do Estado do Paraná. Em seu depoimento afirmou que teve uma infância “bem divertida”, no que se refere ao universo lúdico das brincadeiras de rua. Quanto à sua trajetória escolar lembrou que sempre se deparou com “momentos de adaptação”, muitos dos quais produziam “pânico”. Sempre sorridente e afável, rememorou com minúcias algumas passagens daquela trajetória que a marcou. Por exemplo, gesticulava com os braços para mostrar um quadro repleto de conteúdos que “assustavam as crianças”. De alguma maneira a sua memória permite capturar algo daquilo que foi teorizado por Thompson: a escola a teria retirado de um mundo que lhe era muito familiar, estimulante e prazeroso, mundo muito ligado à tradição e ao afeto familiar. Esse estranhamento inicial parece que marcaria a sua ação como professora.

Ela lembra que ao chegar ao quinto ano teve outro susto: “fiquei maluca de novo!”. A escola a desafiava, mas era um mundo ainda estranho. Ela lembra da diferença entre as suas atividades com cordas, bolas, os jogos de amarelinha e pega-pega realizados com os amigos, na rua, e as aulas de Educação Física centradas no Método Francês e nos esportes. ¡Para ela “a Educação Física não era agradável!”. Lembra, lamentando, que as suas aulas de Educação Física eram utilizadas para a seleção de atletas para as competições estudantis, algo bastante comum na prática de muitos professores, no período, e motor do discurso oficial da ditadura militar brasileira sobre as finalidades das aulas de Educação Física (Taborda de Oliveira, 2003). Diante daquela realidade ela se valia de um conjunto de estratégias para não participar das aulas: “usava o argumento da saúde, da ‘menstruação’, dos óculos para não fazer as aulas”. Chegou a ser ridicularizada por um professor –a quem preferiu não identificar– pelo fato de usar óculos. Para “protegê-la” o referido professor permitia que não participasse das aulas...

Por falta de opção melhor na década de 1970 foi cursar o magistério, justamente em um período no qual aquela modalidade de formação de professores estava em crise. Seu projeto era cursar Engenharia Química, um curso considerado “para homens”. Estimulada por uma professora de quem se recorta com frequência, acabou mudando para Curitiba, a capital do Estado, em 1976, e se inscrevendo para o vestibular de Educação Física, mesmo sabendo que teria que enfrentar as traumatizantes provas prévias, aquelas onde eram mensuradas as capacidades físicas dos candidatos ao curso superior. Além disso, gostava da “teoria” e não associava o curso superior de Educação Física com algo mais que um conjunto de atividades físicas.

Teve várias experiências no curso superior, más se preocupava, mesmo, com as possibilidades de trabalho. Sem emprego, acabou trabalhando em bancos e no Sistema “S”, com a educação infantil, a “ginástica localizada” e atividades esportivas.[8] Em 1977 faz concurso para professora de Educação Física na Rede Municipal de Ensino de Curitiba, iniciando o seu trabalho docente em pequenas escolas. Logo chegou à escola que acolheu nossa pesquisa, lugar onde trabalhou por 30 anos ininterruptos.

Naquele momento o meu trabalho era com os jogos e os esportes. A gente tinha que mostrar a Escola para a sociedade, então participávamos dos Jogos Regionais do bairro e dos Jogos Municipais. Eu não sabia bem porque fazia aquilo... (Professora Mercedes, 2007).

Em 1985, com o fim da ditadura e a volta das eleições diretas para os postos políticos, o novo governo da cidade propôs transformações que, além de gerar momento de resistência, gerou instabilidade entre os professores. “Mudou o prefeito e tudo que você sabia não prestava mais...”. Lembra que teve vários embates, inclusive com autoridades da prefeitura, sobre a supervisão do trabalho docente, que considerava invasiva, sobre a constituição da equipe de supervisores por indicação política e não por reconhecida competência, sobre a definição de coisas que julgava absurdas (como, por exemplo, os professores serem obrigados a fazer croquis...) etc. “A gente questionava aquelas coisas porque fazia parte das coisas que acreditávamos...”. Recorda, entre os temas, um dos que provocava maior discordância: as tais progressões pedagógicas: “Não precisamos de 1001 repetições para aprender alguma coisa!”. A crítica à repetição exaustiva e inócua de exercícios foi uma constante no seu depoimento.

Podemos nos deter, aqui, por um momento. Aquela professora tinha uma experiência marcada pela difícil relação com o mundo esportivo e competitivo da Educação Física do período. Sem grandes considerações de caráter teórico, algo lhe dizia que a Educação Física poderia e deveria ser de outra forma, pelo menos aquela oferecida nas escolas públicas. Isso na metade da década de 1980, antes, portanto, do boom de estudos considerados críticos sobre as finalidades da Educação Física escolar, no Brasil. O seu depoimento parece coincidir com o de outros professores, os quais afirmam que aquele momento era de embates calcados em uma dimensão empírica, experiencial, ainda pouco refletida (Taborda, 2003).

Essas características observadas na trajetória de vida e profissional da professora Mercedes provavelmente a fez conceber uma forma de trabalho bastante diferente daquelas que observou na sua infância e no começo da sua atuação como docente. A sua intervenção, observamos, era algo que contornava cada parte das aulas. Sua presença foi sempre marcante e parecia ser indispensável (1) para que fossem ampliadas as possibilidades de experimentação e contestação sobre as práticas corporais, (2) para dirimir as dúvidas e alavancar o conhecimento dos alunos e (3) para resolver os problemas disciplinares, incluída, aí, a tentativa de promover a humanização das relações.

Em vários momentos e em diversas aulas a professora buscou oportunizar aos seus alunos diferentes formas de experimentação das práticas corporais, não reduzidas à sua dimensão motriz. Houve sempre o incentivo para que os alunos testassem diferentes meios/formas de fazer o que se propunha. Além de incentivar outras maneiras de fazer, também existiu o incentivo pelo novo, pela descoberta ou “construção” do conhecimento. Isto, certamente, toca à uma preocupação que vai além da execução de movimentos, uma vez que a corporalidade parece orientar as preocupações da professora, ainda que para ela essa noção teórica não fosse familiar. Logo, a repetição que ela já criticava desde os anos 1980 não fazia sentido nas suas práticas.

 Aqui cabem dois exemplos: em um jogo intitulado “gafanhoto”, além da possibilidade dos alunos conhecerem o jogo e sua dinâmica, existiu uma abordagem de todo o conhecimento que o envolve. A professora propiciou aos alunos uma conversa aberta sobre as características do animal que dá nome ao jogo; incentivou a busca por mais informações sobre este animal; estabeleceu uma distinção entre as cores primárias e secundárias da bola que compõe o jogo; e, formulou ainda um questionamento sobre a quantidade de repetições que podem ser feitas, diante de uma relação com gasto energético e possível excesso de atividade física.

Ao ser confrontada com esse exemplo, que eu considerei uma boa prática, a supervisora da Escola afirmou:

Algo bem presente no projeto da escola e nas práticas da Professora Mercedes é o compromisso de garantir sempre, a todos os alunos, a oportunidade de vivenciarem as práticas pedagógicas propostas, seja no jogo, na dança, na luta ou na ginástica. Este aspecto é muito relevante, pois garantir a participação dos alunos na aula é garantir-lhes novas oportunidades de desenvolvimento e de escolha (Pedagoga Waldenir, 2007).

Em outro exemplo, ao ensinar uma determinada dança a professora trabalhou desde a letra da música, o significado das palavras que eram desconhecidas para os alunos, o ritmo, até a experimentação da dança, denotando uma aguda preocupação com a transmissão da cultura no sentido mais amplo. Como durante a sua entrevista a professora Mercedes fez questão de destacar que as aulas de Educação Física para ela serviriam para propiciar aos alunos o acesso à cultura como possibilidade de afirmação humana, acreditamos que esta prática pedagógica tenha no seu horizonte a formação humana para além do ensino do movimento corporal, como os exemplos permitem inferir.

Para a “tradição” da Educação Física escolar isso pode parecer banal ou indiferente, posto que a motricidade marcou essa tradição. No entanto, a professora demonstrava preocupação com o alargamento do horizonte intelectual dos alunos (conteúdos e objetivos), com as suas efetivas possibilidades de apreensão (metodologia e avaliação), e mesmo com a sua formação moral (diálogo, respeito às divergências etc.) (finalidades). O conjunto das observações permite afirmar que as aulas de Educação Física para esta professora eram muito mais do que um tempo e espaço de passar tempo, descansar ou catalisar energias. Sua aula nos aparecia, assim, como um projeto de transmissão da cultura e se organizava conforme os preceitos que definimos anteriormente, ainda que nem sempre houvesse a contemplação de todos e cada um dos elementos em cada aula observada. ¡Mas combinados de maneiras diferentes aqueles elementos estavam lá! Suas aulas representam, efetivamente, boas aulas, até porque essa professora assumia com vigor as suas responsabilidade pedagógicas e políticas diante do sentido e da finalidade da escolarização em uma sociedade de pobreza e exclusão, material e simbólica (Moreira, 1995).

Comentou a pedagoga da Escola

Mercedes é o que chamo de Professora com “P” maiúsculo. Embora já tenha tido a oportunidade de trabalhar com ótimas professoras de Educação Física na difícil tarefa de ser Pedagoga, conhecer a professora Mercedes foi um privilégio. Sua presença é instigante, explicitadora dos conflitos e das contradições subjacentes; é aquela que desacomoda, coopera e prima pelo compromisso ético; zela pelas ações democráticas e pela democracia não poupa argumentos; respeito ao aluno é palavra de ordem. Sua prática é pedagógica, é educativa, seu olhar realmente transcende a prática da Educação Física e atinge a arte do ser gente: gente que humaniza e se humaniza nessa terra de duras batalhas.

Entretanto, o caso específico do conteúdo “dança”, presente nos documentos curiculares, nos faz pensar no que significa a adaptação no âmbito da escolarização. A dança desenvolvida pela professora parece ter tido como objetivo principal a apresentação de uma coreografia durante a festa junina da escola. Este é um fato comum nas escolas brasileiras, o qual não nos permitimos chamar de “tradição”. Claro que as festas juninas fazem parte da tradição e do folclore, não só brasileiros, mas neste país ganharam ares de “genuinamente” nacionais ao “festejar” a cultura caipira (criolla). No entanto, o que se vê ano após ano na maioria das escolas é uma festa que cumpre um papel de tratar como caricatura a cultura da gente do campo, além de servir para angariar fundos que ajudarão na manutenção da própria escola. Tem-se como desdobramento que os professores de Educação Física em geral assimilaram os meses de maio e junho como um período de preparação para a malfadada festa junina, que normalmente ocorre em um sábado do mês de junho.

Assim, a escola se depara com a seguinte situação: transmitir a cultura também pelo reconhecimento das tradições de um povo, manifestas na alimentação, na vestimenta, no vocabulário, nos seus costumes, mas fazê-lo de forma estereotipada, sem levar os alunos à compreensão do que significam, por exemplo, as culturas rurais, as formas de ser da gente do campo ao longo da história. É raro observar alguém questionando o sentido da festa junina em um projeto de formação, seja na Educação Física ou na escola em geral.[9] Ao contrário, ela é quase uma atividade intocável das escolas, que se repete ano após ano. A expectativa da dança como espetáculo escolar cria embaraços para a própria escola e, por conseguinte, para a professora de Educação Física. Conforme foi comentado em sala de aula pela professora, não houve da parte dos alunos a participação esperada na festa, pois muitos não compareceram. Mesmo assim, parecendo imune às demandas dos seus próprios alunos, os ensaios aconteceram tanto para os que foram à festa como para os que não foram. Mas a professora Mercedes não concorda plenamente com esta avaliação.

Por um lado, a escola espera essa atividade, a comunidade espera. É um momento de reunião da comunidade para ver as suas crianças se apresentarem na festa. ¿Por que isso seria um problema? Por outro lado, como vocês viram as crianças participam da produção das suas danças. Desde a coreografia, até a música, são apresentadas opções aos alunos e eles podem escolher. E durante todo o período de ensaio eles podem sugerir novos passos, novos movimentos. Como se trata de uma dança que será apresentada, então é preciso um bom preparo, porque ninguém quer uma atividade mal ensaiada. Mas a partir da dança nós desenvolvemos uma série de elementos corporais e comportamentais com os nossos alunos. A vergonha, o medo, o preconceito com relação ao outro, tudo isso aparece durante a preparação. Sem contar que o dançar implica na aprendizagem de vários elementos corporais (Professora Mercedes, 2007).

Ao considerarmos um destaque significativo dado pela professora, ao afirmar que a dança deve ser concebida dentro de outras possibilidades que não somente a do espetáculo, como, por exemplo, para sentir-se bem e fazer amigos, é preciso refletir: ¿porque ensaiar coreografias para as festas juninas se nem todos os alunos participam do momento da apresentação? ¿Seria essa uma tarefa da Educação Física? Qual o sentido desse tipo de ritual para a cultura daquela escola e daquela comunidade? Entendemos que essas reflexões fazem parte do esforço de questionar justamente a dimensão sócio-histórica do conhecimento escolar, uma vez que nos permite a crítica daqueles conteúdos naturalizados no ambiente escolar, bem como o entendimento dos dispositivos de poder que os perpetuam na escola. Os preparativos que envolvem as festas juninas, tanto quanto as gincanas, os torneios etc., assim como a presença de determinados conteúdos, são algo certo nas aulas de Educação Física e na escola, com poucas possibilidades de colocar em discussão a sua permanência. Insistimos que não se trata de negar determinados componentes da cultura, mas de refletir sobre o formato de sua continuidade, bem como dos interesses e das relações de força que favorecem a sua perpetuação.

No entanto, a professora tem clareza do sentido daquela prática no seu planejamento anual. Sua disposição para o diálogo e a sua postura crítica em relação às minhas conclusões parecem denotar a consciência de que aquelas atividades não estão ali por acaso, por mera formalidade, mas são suportes possíveis para o desenvolvimento dos seus alunos. O conjunto de valores que atribui à atividade, a maioria deles ligados a elementos que extrapolam a motricidade ou a esportividade, ênfases tão comuns nas aulas de Educação Física, parecem atestar uma ação reflexiva sobre o sentido da dança nas aulas. Nesse sentido, mais do que adaptar-se ao que seria a tradição, a professora parece ter clareza que da tradição emergem elementos fundamentais para a formação dos alunos, independente do juízo que a equipe de pesquisa fazia daquele trabalho. Sua atitude dialógica parece coadunar com a força da sua larga experiência.

Algo semelhante à problemática levantada em torno da dança poderia ser citado diante de algumas práticas corporais nas quais a competição foi evidenciada. No trato dos dois elementos –a dança e a competição– nosso argumento se fundamenta na fala da própria professora. No caso da competição, mesmo quando a contagem de pontos em um jogo, por exemplo, partia da professora e levava à declaração de um vencedor, foi possível notar que a sua vontade impressa ali era a de que houvesse uma experimentação, uma apropriação de conhecimento por parte dos alunos, muito mais que a exacerbação da dimensão agonística. Nas aulas a professora sempre procurou deixar isso bastante claro. Contudo, algo parece estar “truncado” na efetivação daquela experiência, pois no próprio reconhecimento do saber dos alunos, assim como nas referências feitas à mídia, a tentativa de relativizar o peso das atividades competitivas parece ser meramente retórica, posto que as próprias atividades escolhidas pela professora davam vazão ao sentimento de competição. Não encontramos uma crítica clara à competição, ainda que se procurasse sempre amenizar os seus efeitos. ¿Seria um caso de má consciência de uma professora marcada, afinal, pela história da disciplina e da sua própria formação? Note-se que a professora Mercedes não tem uma experiência esportiva na sua vida, mesmo tendo se licenciado como professora no ano de 1976. Como vimos, as motivações para a sua chegada à Educação Física vêm do seu contado com o magistério e com a vivência de uma cultura da rua, desenvolvida ainda na sua cidade natal no interior do estado do Paraná, e não com o mundo esportivo.

Um traço importante na ação pedagógica da professora é o seu caráter diretivo, no que isso tem de mais relevante de uma opção pela qualidade da educação oferecida aos alunos. Os seus alunos sempre tinham à sua disposição a disposição da professora para resolver as situações difíceis, principalmente, quando se tratava de conflitos entre eles. Não se trata de casos repetidos de violência, pois eles não eram uma constante nas aulas analisadas. Os casos mais recorrentes de conflitos tratavam de queixas de alguns alunos que chegavam à professora, ou algum fato que ela mesma observava e sobre o qual intervinha. Assim, a professora acabava por “julgar” a situação de conflito e os alunos não tinham necessidade de resolver os seus problemas de maneiras violentas ou agressivas. No entanto, freqüentemente recorriam a ela para resolvê-los, o que denotava, segundo entendo, o reconhecimento da sua autoridade.

Essa diretividade se manifestou, também, ainda que de maneira sutil, em outro tipo de situação comum nas aulas. Trata-se da solicitação recorrente dos alunos para trocarem de parceiro porque não queriam realizar as atividades com determinados colegas. A tendência observada era pela anuência da professora diante a solicitação dos alunos. Ficam as dúvidas: ¿como lidar com a seleção de pessoas que os alunos fazem? Selecionar colegas na própria turma deve ser visto como algo normal/bom? O encaminhamento para tais questões depende dos conceitos que o professor tem e acredita, certamente. No nosso entendimento, uma educação física escolar que almeja por possibilidades de formação humana não pode deixar de problematizar situações como estas nas aulas. No entanto, para a professora essas situações pareciam não ter muita relação com as finalidades específicas da disciplina Educação Física, ainda que em diferentes momentos enfatizasse a necessidade de formação, a perspectiva de transformar as relações sociais etc. Por exemplo, é difícil avaliar se uma risada pode ser produto de discriminação e/ou preconceito. Mas quando duas meninas adentraram pela primeira vez na roda de capoeira, improvisada durante uma das aulas, e alguns colegas começaram a dar risadinhas é possível que estivessem à mostra os sinais de algo que se esconde em formas sutis, como a discriminação, o preconceito, o escárnio. Como lembra Zuin (2001, p.15) recorrendo a Theodor Adorno, “ela [a barbárie] também é notada no sorriso conivente daquele ‘indivíduo’ que acha graça da anedota preconceituosa, pois teme não ser considerado membro do grupo ao qual pertence caso não proceda dessa forma”. Deixar que tal situação passe despercebida ou simplesmente recriminar a atitude de um aluno que age de maneira preconceituosa, pode acabar por não atingir o que se espera realmente de tal prática corporal. No caso em apreço, certamente contraria tanto o que vem exposto nos documentos prescritos da escola, quanto naquilo que a professora manifestou ser a uma forma de conceber o processo de formação e o sentido da Educação Física na escola.

Neste ponto é possível fazer outro comentário sobre as práticas da professora. Na necessária ação cotidiana de “julgar” que a professora precisava fazer, despontava a questão que respeita ao tratamento dispensado às regras, as quais balizam mais do que os jogos e brincadeiras, pois estão por toda parte no cotidiano escolar. Observou-se que as regras apareciam freqüentemente somente como algo a ser cumprido, não como uma dimensão necessária da vida em uma sociedade complexa. Isso não significa uma ausência de orientações quando ocorria o seu descumprimento ou quanto à necessidade de cumprimento das regras, mas parecia caracterizar um distanciamento em relação ao diálogo sobre o significado das regras para a convivência social. Aqui seria necessário aprofundar o tema da formação como motor da escolarização, o que não é possível fazer em função dos limites deste texto. Mas é possível pensar na relação entre regras, heteronomia e autonomia como uma das promessas não cumpridas do processo de escolarização, o qual, certamente, não se realizou em toda a sua potência. A simples aceitação de regras, ou a sua contestação vazia, da parte de professores e alunos engrossam o caldo das incertezas com relação ao papel que a escola cumpriria no processo de formação.

Todavia, de acordo com aquilo que a professora Mercedes, e a sua colega Marcela manifestaram nos seus depoimentos, o tratamento das regras precisa seguir um caminho de crítica para não sucumbir à pura heteronomia e para levar os alunos a aproximarem-se cada vez mais de uma atitude autônoma. No entanto, no dia-a-dia o que se observou foi a simples imposição e cobrança de determinados modelos de comportamento e de certas regras. Sabemos que não é uma tarefa fácil tratar desse aspecto da formação apostando na autonomia, pois são inúmeras situações que ocorrem, dentro da aula e fora dela, no atribulado cotidiano das professoras. Por suposto, conversar com cada aluno que transgride uma regra, por exemplo, demandaria muito tempo e muita energia das professoras. Mas considerando os preceitos da proposta da escola, bem como dos planos de trabalho das professoras, parece que estamos diante de uma típica situação na qual o que está escrito pouco tem a ver com o que foi ou é realizado.

Sobre isso também se manifestou a pedagoga da Escola:

Quanto ao cumprimento das regras pelos alunos, fazem-se necessários alguns esclarecimentos. O projeto de pesquisa começou a ser desenvolvido na escola no mês de junho. Em 2007, a primeira unidade de trabalho na escola com os alunos foi multidisciplinar, visando: conhecer a escola; conhecer o grupo de alunos; estabelecer vínculo positivo entre professores, alunos e funcionários; definir acordos de convivência e a organização didático-pedagógica, entre outros aspectos. De forma sistemática, nos meses de fevereiro e março, todos os professores, com temáticas específicas, desenvolveram atividades pedagógicas em função desses objetivos, articulando-os aos conteúdos iniciais das diferentes disciplinas. Os acordos de convivência foram sendo discutidos e definidos com os alunos. Foi um trabalho intenso, mas importante, pois a definição de regras implica em se discutir o que é melhor para todos, a fim de se assegurar a todos as condições básicas de convivência. Sabemos que cabe ao professor avaliar permanentemente com os alunos a necessidade, a viabilidade das regras e o respeito ao que o grupo decidiu. Assim, mesmo que alguns alunos não tenham se apropriado dos acordos de convivência (o que é perfeitamente normal nessa faixa etária, por isso os acordos são retomados o ano inteiro), o que se estava cobrando dos mesmos não era necessariamente um conteúdo estranho para eles. Logo, pergunto: ¿seria democrático ignorar o conjunto das regras discutidas e definidas por alunos, funcionários e professores, regras consideradas importantes para o coletivo, para assegurar interesses individuais de alguns alunos, que demonstravam desrespeito ou incompreensão sobre o que se estava solicitando? Não seria mais viável fazer uma mediação de tal forma que o assunto pudesse ser retomado assim que possível (ou com a criança ou com todas as crianças), se necessário?

A observação da pedagoga Waldenir ajudar a dimensionar os limites de uma pesquisa que só é capaz de capturar fragmentos da cultura escolar. Isso, por sua vez, remete ao problema da teorização que não leva em conta o dia-a-dia da Escola, conforme alertou Antonio Cândido (1983). Sem saber daquela dinâmica os pesquisadores generalizavam uma observação em função de problemas de ordem teórica, muitos deles alheios ao cotidiano das professora. Claro, as falas da professora e da pedagoga poderiam ser, também, autojustificadoras, de modo a produzir um efeito positivo sobre a análise do pesquisador. Longe de ser um problema, isso apenas reforça a potência da experiência, uma vez que, como “diálogo entre ser e consciência social” (Thompson, 1981), nossas reações diante do emaranhado do mundo não são necessariamente conscientes, ou mesmo, coerentes, pois a experiência não pode ser definida por um esquema causa-efeito simplista.

Constantemente alguns momentos vislumbramos as tentativas das professoras de superar essa dificuldade. Em algumas aulas nas quais as práticas corporais realizadas requeriam a formação de grupos de alunos, se abriram duas frentes interessantes para se problematizar questões de ordem social. A primeira foi sobre a possibilidade que os alunos teriam de decidir algumas coisas em conjunto, sabendo que certamente o resultado das suas decisões não contemplaria o desejo de todos. Devidamente trabalhada essa questão, as professoras, em situações distintas, levavam os alunos ao reconhecimento e à aceitação das normas definidas pelo grupo, mesmo que ferissem o anseio particular. Por si esta problemática já validaria o trabalho em grupo, uma forma metodológica importante na perspectiva da escola e das próprias professoras. Mas as professoras ainda foram capazes de enfocar os valores de grupo durante as conversas com toda turma.

A segunda frente diz respeito a composição dos grupos, quais alunos poderiam ou não compor este ou aquele grupo mediante o consentimento dos demais. Isto recupera a pergunta sobre a seleção de pessoas e revela um caminho para a conscientização dos alunos a partir da exploração das diferenças. Nesse sentido, novamente estamos diante de evidências muito claras que ambas as professoras desenvolvem boas práticas no que se refere à coerência com um determinado princípio de formação. A professora Mercedes, sobre esse ponto, no seu depoimento deu amplo destaque ao jogo como possibilidade de fomentar as relações sociais a partir da mediação dos conflitos. Nessa direção incluía os esportes, uma vez que “...valores não são coisas de hoje! Os alunos precisam aprender sobre desafios, diferenças, possibilidades e limites” Talvez essas práticas não sejam “revolucionárias” ou “inovadoras”, mas denotam uma clara preocupação com a transmissão da cultura e com valorização do respeito ao convívio solidário e respeitoso, algo que caracterizaria boas práticas educativas.

No caso das aulas da professora Mercedes, uma determinada prática corporal que a professora desenvolveu junto com os alunos antes de sair para um período de licença, chamou a atenção por ter evidenciado os sentimentos daqueles que participavam. Os alunos foram “forçados” a enfrentar seus medos e desejos. Foi perceptível a tensão que acompanhava o momento em que os alunos precisavam escolher um colega para passar um objeto e lhe dizer algumas palavras. Todavia, na conversa realizada logo após a prática corporal a professora vai direto ao ponto, abrindo discussão sobre a escolha de uma pessoa do sexo oposto, fato que, segundo ela, “não determina que haja um relacionamento ‘amoroso’”, além de questionar os processos de sujeição de alguns alunos que faziam suas opções a partir da vontade dos colegas.

Ainda ao comentar sobre aquela prática, a professora não se conteve e se emocionou, chorando ao afirmar que se pudesse escolheria todos os alunos, independentemente do lugar que ocupam em uma atividade corporal. Com isso, entendo, mais uma vez delatou o seu comprometimento com o trabalho docente. Esse aspecto pôde ser percebido a cada aula, sendo uma pista de que existe uma preocupação da professora com a formação dos alunos, por mais que não nos tenha sido possível identificar uma filiação teórica precisa o que, destaco, evita que o professor se enrede em discursos esquizofrênicos que não dão conta da problemática que ele enfrenta no seu cotidiano. Estou de acordo que para o bom andamento do seu trabalho docente o professor deve ser capaz de refletir sobre este mesmo trabalho, assumindo o seu papel de intelectual pensador da cultura, independentemente de proclamar um engajamento epistemológico qualquer. Ademais, deve ser levado em consideração, como aponta Goodson (2007), que “professores com um forte comprometimento e senso de missão são bens de valor inestimável em qualquer sociedade”. Nesse aspecto a professora Mercedes é a própria expressão de uma professora pensadora da cultura, com todas as possíveis contradições que os modelos teóricos porventura possam captar nas suas práticas.

 

À MODO DE REFLEXÃO...

            A frase que dá título a este trabalho procura demonstrar: 1) a expectativa que tenho no que se refere a escola como um lugar de trato da cultura, o qual pode ou não ser crítico, o qual pode ou não ser ocupado, 2) o reconhecimento que “boas práticas” educativas ocorrem cotidianamente em muitas escolas a despeito das metaformulações que não cansam de atestar o fracasso dessa forma cultural na sua dimensão pública.

            A tentativa de localizar boas práticas não poderia prescindir de um reconhecimento da experiência dos professores, no meu caso, de uma professora. Se a experiência é “uma exploração aberta do mundo”, não podemos insistir no diagnóstico que a escola pública brasileira faliu sem ver e ouvir os seus agentes principais, os professores. Ao fazê-lo, a partir de certos parâmetros, não me surpreende perceber quantas coisas relevantes, significativas, “boas”, ocorrem em uma escola pública. Não no sentido romântico da expressão “bom/boa”, como algo isento de fissuras, de fraturas, de contradições, homogêneo e estável. Ao contrário, coisas boas que trazem as marcas das expectativas e das necessidades daqueles que as constroem cotidianamente, mesmo que todas as condições conspirem para que a experiência da escolarização seja um fracasso absoluto. Pois mesmo sob os efeitos de salários aviltantes, de condições de trabalho estapafúrdias, do descaso sistemático da sociedade e de toda sorte de governos com a formação das novas gerações, ainda assim é possível localizar professores que são capazes de levar aos seus alunos uma proposta de formação que passa necessariamente pelo acesso à cultura, como é o caso da professora Mercedes.

Tratando à sua maneira o que podemos chamar de acervo cultural sobre as manifestações corporais, as professoras que nos receberam, diferentes desde a sua formação, o seu tempo de atuação, até a sua forma de conceber a escola e o ensino, nos oferecem mostras claras –às vezes contraditórias– que a escola pode formar, mais de que manter sob a sua guarda crianças e adolescentes com poucas perspectivas. Mas o que é formar? Entre as professoras daquela Escola parecia não haver muito consenso sobre isso. Mesmo assim a professora Mercedes corajosamente afirmou em uma reunião pública que “a gente não acha que é importante parar para pensar”.

Este é um ponto fundamental do projeto desenvolvido. Em muitas medidas ele permitiu um diálogo mais efetivo entre a escola e a universidade, ambos revendo suas finalidades e seus procedimentos. Longe da plêiade de possibilidades de definir o que seria “formação”, as professoras reelaboram à sua maneira a cultura para oferecê-las aos alunos sob sua responsabilidade. E ao procurar transmitir a cultura, preocupação patente na Escola investigada, fazem opções metodológicas, desenvolvem processos de acompanhamento e avaliação, ensinam preceitos éticos, fomentam o diálogo. Oferecem, talvez, pequenos indícios que nos permitem pensar que é possível percorrer o longo processo que poderia levar o indivíduo à autonomia.

Após ter conhecimento do conteúdo deste trabalho a professora Mercedes ponderou:

O dia-a-dia da escola é tão corrido, são tantas coisas uma atrás da outra, que negligenciamos os momentos para parar e refletir sobre o que fazemos. Isso na quer dizer que a gente não pense, que a gente não tenha a teoria para fazer as coisas. Mas a gente vai agindo achando que é o melhor. Tudo o que a gente faz tem alguma teoria por trás. Mas acho que às vezes seria necessário refletir mais sobre o que acontece na escola...

Ora, a sentimento expresso pela professora é uma das marcas mais tangíveis do que é ser professor em uma escola pública brasileira. Amálgama de múltiplas experiências, as suas práticas não abdicaram de refletir, nas condições que lhe foram impostas, sobre os limites do seu fazer cotidiano. Professora que abraçou a sua condição de agente sem ressentimentos aparentes, mas que reconheceu o quanto sofreu para realizar minimamente o seu papel. Sua atuação não era casual ou espontânea, no que essa expressão tem de pejorativa. Antes, as suas boas práticas parecem ser a síntese entre diversos fatores tais como origem de classe, estranhamento com a escola, pouca habilidade esportiva, crença no papel formativo da escola, crítica a uma formação eminentemente técnica, disposição para pensar sobre as suas próprias práticas etc.

            Talvez a escola tenha sido uma das muitas promessas não cumpridas pela modernidade. Mas se nos abstivermos dos modelos ideais de formação para inquirir a escola possível no seu próprio tempo, é difícil não reconhecer que a escola pode ser uma rica experiência cultural, pelo menos em um país no qual, em muitas regiões, a escola é o único lugar onde a cultura pode ser tratada em toda a sua complexidade. Além disso, muitos professores e professoras têm feito dessa experiência uma possibilidade para pensar uma vida mais digna, como é o caso da professora Mercedes. Afinal, para que se pretende formar alguém?

 

REFERÊNCIAS

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Recepción: 01-12-2013

Aprobación: 01-05-2014

 



[1] A pesquisa que originou esse trabalho, denominada Recuperación de Buenas Prácticas Educativas escolares en los niveles inicial, primario y medio, feito a partir de 2007, articulou três grupos de investigadores de duas universidades brasileiras e uma Argentina, a saber: Universidade Federal de Santa Catarina, sob a coordenação de Alexandre Fernandez Vaz; Universidad Nacional de La Plata, sob a coordenação de Ricardo Crisório, também coordenador geral do projeto integrado; e Universidade Federal do Paraná, sob a coordenação de Marcus Aurélio Taborda de Oliveira. Compuseram a equipe paranaense ao longo da pesquisa, Francis Madlener de Lima, Leandro de Oliveira Belgrowicz, Luziana Cardoso e Nicole Roessle Guaita. Nos seus princípios também participaram da pesquisa os professores Luciane Paiva Alves de Oliveira e Rubens Meggetto Junior. Nenhum dos colaboradores é responsável pela interpretação aqui desenvolvida.

[2] O acesso à escola e às suas práticas se deu de acordo com o que estabelecem os protocolos usuais dos estudos de corte etnográfico. Inicialmente a direção da escola foi consultada e nos remeteu à coordenação pedagógica da escola. Essa, representada pela pedagoga Waldenir Alves Singh, inteirou-se dos nossos propósitos e manifestou apoio às iniciativas, condicionando o desenvolvimento do estudo à aceitação das duas professoras de Educação Física. As professoras Mercedes e Marcela, foram especialmente receptivas, abrindo suas aulas e os seus planos de ensino para a observação dos pesquisadores. Ao final de mais de um ano de convivência as professoras ainda contribuíram com o estudo através do seu relato oral, fornecido através de entrevistas individuais por mim conduzidas. Cabe observar que a coordenação pedagógica, que também foi entrevistada, solicitou ao Conselho Escolar formalmente a autorização para o desenvolvimento do estudo, o que foi concedido sem quaisquer ressalvas. Todo o percurso acima identificado já representou, naquele momento, a confirmação de que a escola pública não é lugar do abandono e do descuido. Ao contrário, o zelo e a preocupação com a preservação dos alunos, das professoras e da própria escola foram uma constante nas reuniões periódicas realizadas com a equipe pedagógica, que acompanhou todo o desenvolvimento da pesquisa sem, contudo, intervir no seu andamento.

[3] Sobre esse ponto vale à pena conhecer o estudo de Isabel Lelis (2001).

[4] Com o propósito de compreender as relações entre currículo e educação do corpo, há mais de dez anos desenvolvo o projeto Currículo e educação do corpo: história do currículo na instrução pública primária paranaense (1882-1926), o qual contou com financiamento do CNPq. Alguns dos resultados alcançados com esta investigação estão disponíveis em Taborda (2006,2009).

[5] À época o 4º ano estava denominado como Ciclo II-2ª Etapa, correspondente à antiga 4ª série. Hoje corresponde ao 5º ano do Ensino Fundamental.

[6] Conforme os processos de planejamento do professor e da própria escola, a avaliação pode se dar em aulas específicas, um mesmo conteúdo pode ser desenvolvido em diferentes aulas, seqüenciais ou não, a exercitação pode ser postergada em benefício de uma explicação mais detalhada etc. Ou seja, a unidade “aula” é apenas uma das possibilidades de organização de uma disciplina na escola. No caso que analisamos, a escola se organizava exatamente em torno dessa unidade, daí a necessidade de destacarmos a primazia do objeto em detrimento de elucubrações que nos levariam a indagar se essa é a melhor forma de organização a transmissão da cultura no âmbito escolar. Se tomarmos o currículo na sua dimensão “ativa”, então, apesar das prescrições, é preciso reconhecer que cada escola mobiliza de diferentes maneiras o que está prescrito.

[7] Todos esses elementos constam do nosso protocolo de pesquisa. A sua observação e o seu registro minucioso se deu através da adoção de cadernos de campo nos quais todos os eventos de uma aula possíveis de serem captados foram registrados pela equipe de observação. Depois, os dados brutos foram classificados segundo as categorias acima identificadas para posterior análise. Foram observadas um total de 37 aulas de Educação Física, sendo 20 da professora Mercedes. Outros tempos e espaços da escola também foram considerados, mas não tratarei deles, aqui.

[8] O sistema “S” compreende aquelas agências de caráter associativo-assistencial, financiadas pelo patronato brasileiro e criadas durante a vigência da ditadura do Estado Novo (1937-1945) como suporte das políticas de redefinição das relações entre capital e trabalho na sociedade brasileira. Designam o Serviço Social do Comércio SESC, o Serviço Social da Indústria SESI, o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial SENAC e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial SENAI. Ainda hoje, e por muitas décadas, este sistema define boa parte do que podemos chamar de lazer do trabalhador no Brasil (pelo menos daquele trabalhador que goza de emprego formal na indústria ou no comércio), além de ter um sistema de educação próprio e bastante ativo. Um dos aspectos centrais da sua atuação são as práticas esportivas e recreativas.

[9] Não se trata de sermos contra ou a favor da festa junina nas escolas. Trata-se, apenas, de questionar o sentido de uma atividade que busca a espetacularização de uma forma de vida, a do mundo rural, para os viventes da cidade. Além disso, cabe perguntar as razões que levam professores de Educação Física a destinar um quarto dos seus dias letivos a um processo de “treinamento” de uma dança específica. Assim, podemos afirmar que a dança como patrimônio cultural tem sido tratada nas nossas escolas? Destaque-se que no projeto da Escola pesquisada a festa junina é uma das atividades que unifica o conjunto das disciplinas da escola, contribuindo para a integração curricular.