Na história do pensamento intelectual ocidental moderno, discursos alinhados com o desprezo por grupos alijados do centro do poder -como as classes socioeconômicas desfavorecidas, mulheres e povos escravizados- constituíram formas de manutenção da posição que cada um destes grupos possuía na sociedade (Hirschman, 1992). A ideia de que o sufrágio universal -entendido como o direito que garante o poder de voto a todos sujeitos em determinada idade-, por exemplo, iria de encontro à noção de cidadania política nos idos do século XIX, pois delegaria o destino político da sociedade à estupidez das classes mais baixas, ilustra a medida que discursos intelectuais incidem na conservação do status quo (Hirschman, 1992).
Neste contexto e sob a influência destes discursos, a escola figura como importante locus de (con)formação dos sujeitos ao ser responsabilizada pelo desenvolvimento e divulgação de conhecimentos, em grande parte no âmbito de produção intelectual e científica. De acordo com Taborda (2006), a escola é um respeitável vetor para a inscrição de características e de valores nos sujeitos, sendo espaço de (re)produção cultural e social e de legitimidade na sociedade contemporânea.
Surge então a preocupação, relevada, dente outros autores, em Dubet (2004), sobre como uma escola que preze pela justiça e igualdade deve atuar -ainda que o autor considere estes conceitos difusos. Fundada no princípio meritocrático, a escola foi idealizada como espaço nas sociedades democráticas no qual todos os alunos poderiam visar o máximo de suas potencialidades acadêmicas. Para tanto, bastaria a igualdade de oportunidades no acesso a esta instituição para que houvesse uma competição justa entre os alunos, rumo à excelência individual (Dubet, 2004).
Entretanto, esta lógica possui expressivos empecilhos. Dentre alguns, Dubet (2004) cita: as desigualdades construídas a partir das condições econômica e social dos pais/responsáveis destes alunos e a forma como os mesmos conduzem a vida escolar de seus filhos; a desigualdade constituída com base naquilo que se define previamente para pessoas de diferentes identificações sexuais, de gênero e/ou raça; a desigualdade nas possibilidades de conhecimento sobre e acesso (geográfico) às melhores escolas, onde lecionam os melhores professores, comumente situadas em espaços mais abastados e distantes das regiões periféricas; a própria desigualdade gerada no espaço objetivo da competição dentro da escola, na qual, a reprodução de mecanismos de exclusão daqueles com menor desempenho -ao invés de reinserção- diminui as chances de sucesso acadêmico, justamente da população com maior dificuldade em dominar as condutas que facilitam o desenvolvimento acadêmico.
Para esse autor, a escola deve promover, mais do que uma justiça calcada na meritocracia, uma justiça distributiva. Nessa direção, a discriminação positiva torna-se um mecanismo compensatório para lidar com as discriminações reais. Afinal, a educação é um dos principais meios de acesso a posições ocupacionais e de renda hierarquicamente superiores (Ribeiro, 2011).
Portanto, ao invés de legitimar as desigualdades e excluir aqueles desautorizados pelo insucesso acadêmico, é papel da escola fornecer caminhos para seu desenvolvimento no meio escolar. Para isso, deve-se buscar a estabilidade e qualidade da equipe docente, o uso de estudos dirigidos para compensar eventuais resultados inadequados e atividades culturais e esportivas (Dubet, 2004).
No que se refere a essas desigualdades, dentre os diferentes grupos marginalizados no seio de nossa sociedade, espaço social em que, naturalmente, a escola está inserida, podem ser destacados os papeis atribuídos às diferentes conotações de raça e gênero (Fraser, 2011). A autora encontra explicação das injustiças acometidas a estes grupos tanto pelo viés econômico quanto pelo viés cultural ou simbólico.
Em relação ao primeiro, pode-se citar o papel subalterno designado ao negro, em muitas sociedades ocidentais, na escolha de ofícios e profissões. Já no que tange ao viés cultural, no modo da valorização positiva ou negativa das diferentes identidades culturais, podendo ser exemplificadas na forma depreciativa como a identificação nas relações homoafetivas é valorada por grupos sociais hegemônicos.
Na esteira do que foi exposto, refletir sobre como a escola, que se pretende justa em sociedades democráticas, tem tratado grupos e identidades culturais históricamente marginalizadas do centro da sociedade é tarefa importante nas investigações do campo científico da educação. Empreendimentos nesse sentido têm auxiliado a compreensão da temática, como no estudo de Mont'Alvão (2011), que alerta sobre a vantagem de brancos sobre negros em avançar nas diferentes etapas do ensino básico no Brasil, e Carvalho (2001), que investigou os impactos das hierarquias de gênero na forma em que professoras do ensino fundamental avaliam meninos e meninas.
Ademais, destaca-se a Educação Física nesse contexto. Esta disciplina trabalha com diversas práticas corporais oriundas de diferentes etnias e com o reforço ou desconstrução acerca das diferentes identidades de gênero. Para Lüdorf et al. (2018), o professor de Educação Física possui uma condição privilegiada na escola por trabalhar diretamente com/no/para o corpo, o que torna os significados implícitos nas práticas corporais mais evidentes. Em outras palavras, a Educação Física se constitui como um espaço privilegiado para reflexão sobre corpo, raça e gênero (Darido, 2014).
Monteiro (2017), em artigo que analisou o papel da Educação Física frente à construção identitária de alunos de ensino médio, obteve como resultado, a partir da fala dos alunos, o reforço da noção do masculino como superior frente àquilo que é considerado do universo feminino. Já Ferraz & Correia (2012) focalizaram o diálogo entre Educação Física escolar e os cursos de formação inicial na área. Conceituação importante para o presente artigo, os autores colocam como ponto em comum, ao longo da história dos debates sobre teorias curriculares, a ideia de currículo enquanto organização das experiências de aprendizagem dentro do processo educativo.
Cabe mencionar que o próprio currículo não é algo dado, mas uma área de conflito social que caracteriza uma produção, reprodução e negociação na qual há um significado no estabelecimento de normas e regras (Goodson, 1995). Aliás, Ranniery (2016), nessa linha, evidencia como as disputas em torno dos códigos narrativos ainda estão presentes nos espaços de discussão sobre o currículo, inclusive atentando e deslegitimando determinados assuntos, como as questões de gênero e sexualidade, e forças de imaginação de determinadas correntes conceituais.
Dada a importância e atualidade do debate, como os professores de Educação Física têm sido estimulados para refletir e lidar com temas que versam sobre identidade de gênero e questões raciais em sua formação inicial? Em que medidas estes assuntos aparecem no currículo de sua formação para atuação no meio escolar? Quais experiências de aprendizagem têm sido organizadas, em formas de currículo, para abordagem destes temas? Como as ementas das disciplinas abordam estas temáticas?
Para responder a estes questionamentos, o presente artigo objetivou analisar as ementas das disciplinas obrigatórias que compõem a grade curricular do curso de Licenciatura em Educação Física da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEFD/UFRJ), com enfoque nas temáticas de gênero e raça.
Tal instituição é sucessora da primeira escola civil brasileira de formação de professores de Educação Física ligada a uma universidade1 e serviu como uma escola modelo, inclusive em aspectos curriculares, para outras na área até meados dos anos 1960 (Baptista, 2015).
Para o presente estudo, a análise curricular ocorreu a partir das informações fornecidas -quanto às disciplinas obrigatórias que compõem cada período e seus respectivos códigos- pelo Sistema Integrado de Gestão Acadêmica da UFRJ2, na aba "Currículo", opção "Grade Curricular". Dentro desta opção, foi selecionado o curso "Licenciatura em Educação Física" e o ano referente à versão mais atualizada da grade curricular, 2007/1 em diante. É oportuno destacar que o corrente Projeto Pedagógico de Curso (PPC)3 da EEFD corresponde ao ano de 20064, ao menos até onde o sítio oficial da instituição informa.
Em posse de cada nome e código das disciplinas, acessou-se o site5 da EEFD para obtenção das ementas na íntegra. De acordo com Lakatos & Marconi (1991), as fontes primárias de documentos oficiais se constituem como importantes elementos para a análise do objeto de estudo no que diz respeito a sua fidedignidade. No entanto, concorda-se como Bacellar (2011) quando argumenta que “documento algum é neutro, e sempre carrega consigo a opinião da pessoa e/ou órgão que o escreveu” (p.63). Com isso, houve a preocupação de analisa-los perante aos olhares críticos que considerem os elementos envolvidos em sua produção. Ademais, sublinha-se que a escolha das ementas como fontes de estudo justifica-se por conterem, comumente, informações a respeito da bibliografia da disciplina, bem como de sua carga horária, seus objetivos, seus conteúdos, sua metodologia e métodos avaliativos.
O total de 36 disciplinas obrigatórias -excluídas atividades complementares, de livre escolha e monografia- fica visível no Quadro 1. A escolha de analisar apenas as disciplinas obrigatórias alinha-se à ideia de que essa gama de disciplinas constitui o currículo básico e indispensável para a instituição, diferenciando-se das disciplinas de livre escolha. Nestas últimas, o discente opta em cursar apenas algumas das disciplinas oferecidas dentro das que compõem esse bloco. Nesse sentido, a escolha adotada respalda-se no entendimento de que os assuntos investigados são significativos para quaisquer análises sobre o corpo em sua esfera sociocultural, tratando-se, portanto, de temáticas imprescindíveis para a formação docente em nome do respeito à diversidade e pluralidade cultural6.
Das 36 disciplinas obrigatórias, as ementas das seguintes disciplinas estavam indisponíveis: "EFA 109 Introdução ao Estudo da Corporeidade EF" e "EFC 110 Prática de Natação". Totalizou-se, então, 34 disciplinas cujas ementas estavam acessíveis. É importante esclarecer que as disciplinas "EDF 240 Fundamentos Sociológicos da Educação", "EDF 120 Filosofia do mundo ocidental", "EDF 245 Psicologia da Educação" e "EDA234 Educação Brasileira" só puderam ser acessadas no site7 da Faculdade de Educação da UFRJ. Ressalta-se que essas disciplinas, tratadas como pedagógicas, são obrigatórias para todos os cursos de licenciatura na UFRJ e estão sob a responsabilidade da Faculdade de Educação.
Outro ponto relevante consiste na existência, em alguns casos, de diferentes ementas para a mesma disciplina (sempre que a quantidade foi superior a um foi sinalizado o número de ementas ao lado do nome da disciplina no Quadro 1). Quando isto ocorreu, todas as ementas foram analisadas. Portanto, o total de ementas investigadas foi de 68.
Aspecto inicial a ser pontuado, a análise das ementas revelou alguns desafios: ementas relacionadas ao código da disciplina que não possuíam o mesmo nome que constava na grade curricular do curso; falta de data da elaboração das ementas para checagem se eram pertinentes ao período no qual o currículo atual foi elaborado; ausência de algumas disciplinas no site da instituição; e, em alguns casos, múltiplas ementas para a mesma disciplina, sem que fosse possível distinguir a que se referiam -elaboração por diferentes professores ou em períodos diferentes.
Posto isto, o resultado da análise geral das ementas permite visualizar a escassez da discussão sobre o gênero nas diferentes práticas corporais, como também da questão racial em meio à cultura corporal8 vivenciada e discutida na sociedade atual. Não há nenhuma disciplina obrigatória cujo foco central seja a discussão de pelo menos uma dessas questões ao longo da formação do futuro professor de Educação Física. Diante deste cenário, referências bibliográficas, objetivos e conteúdos programáticos que de alguma forma pudessem dar margem à discussão sobre questões de gênero e/ou raciais foram elencadas para fomentar a análise.
A partir disso, das 68 ementas analisadas, constatou-se que apenas três abordam questões relacionadas à formação racial de determinadas práticas corporais. Apenas uma disciplina apresentou tópicos que poderiam efetivamente abordar questionamentos sobre identidade de gênero na Educação Física. Outras seis tocam temáticas que versam sobre igualdade ou sexualidade, mas, sem explicarem quais elementos seriam abordados neste contexto. Conquanto haja a compreensão de que nem todas as disciplinas possuem um alinhamento direto com as questões raciais e de gênero, entende-se que qualquer assunto que possua relação com as condições históricas, políticas, sociais e culturais é impactado, de certa maneira, com as temáticas investigadas.
No primeiro período do curso de licenciatura da EEFD/UFRJ, por exemplo, a disciplina “EFJ 110 História da Educação Física” considera no conteúdo programático o debate sobre higienismo relevante na formação dos futuros professores de Educação Física em uma de suas ementas. De acordo com Mendes & Nóbrega (2008), é possível compreender o movimento higienista, aflorado no Brasil entre o século XIX e XX, em sua fundamentação teórico-epistemológica alicerçada no discurso médico-científico. Dentre alguns aspectos, tal movimento preconizava a instituição de hábitos higiênicos para a população como forma de promoção da saúde e da moral do povo. Neste contexto, a Educação Física poderia ser utilizada desde a eliminação de vícios até a prática ginástica.
Este mesmo movimento era carregado, em seu discurso, por concepções de mundo e de sujeito que legitimavam o papel da mulher enquanto ser dócil e frágil -ou, nas palavras de Mendes & Nóbrega (2008, p.214), "Fragilidade, delicadeza e submissão tornam-se atributos da natureza feminina, enquanto na masculina imperam a força, o vigor e a altivez".
Portanto, se a temática for submetida ao escrutínio e reflexão gerada no âmbito da formação inicial, pode se tornar potente momento de desconstrução de naturalizações sobre o papel do homem e da mulher na sociedade, bem como suas representações e identificações de gênero. Seria este uma forma de exemplificar um dos "remédios" receitados por Fraser (2001) para reversão da injustiça cultural praticada contra a mulher.
Outro debate gerado no âmbito higienista é a associação entre indolência e inferioridade a certos povos, etnias e/ou raças, como os povos indígenas, portugueses e negros. Sobre os dois últimos, Mendes & Nóbrega (2008, p.212) afirmam "que os portugueses e os negros eram considerados inferiores, incultos e retrógrados [...] Frequentemente era relacionada à dificuldade de evolução do povo brasileiro, enquanto sociedade, ao fato de mestiços negros serem grande parte numérica de habitantes do país”.
Entretanto, dado o vínculo histórico entre Educação Física e a reafirmação das práticas higiênicas (Mendes & Nóbrega, 2008), somado ao escopo deste artigo que consistiu apenas na análise de ementas de disciplinas curriculares, o momento de afirmação ou desconstrução do discurso higienista depende da abordagem feita pelo professor formador. É ele quem mobiliza os conteúdos estabelecidos e direciona o debate no cotidiano de sala de aula (Cruz & Castro, 2019). Em outras palavras, a discussão sobre o movimento higienista pode ser levada tanto com um olhar saudosista, reforçando preconceitos historicamente construídos com relação à mulher, ao negro e a outros grupos ou povos, como também pode aparecer enquanto forma de reflexão e reconstrução de um novo entendimento sobre o tema.
Ainda no primeiro período do curso investigado, a disciplina “EFL 221 Fundamentos da Capoeira” trazem em seu conteúdo programático a necessidade de reconhecer etnias africanas no Brasil e no uso da capoeira como inclusão e integração sócio-educacional. Na denominada bibliografia, referencia-se Soares (1994) cujo título da obra é "A negragada instituição. Os capoeiras no Rio de Janeiro".
Soares (1994) aborda a capoeira como parte da cultura e resistência escrava no Rio de Janeiro do século XIX. Chama ao debate o uso da capoeira como forma do que na época era considerado como ameaça à ordem social e suas formas de ser dentro do contexto temporal recortado. Ao retomar Fraser (2001), é possível vislumbrar a ideia de que a desconstrução do vínculo entre o negro e a marginalidade constituída, na época, pode auxiliar em uma nova compreensão sobre as origens e condições sociais a que certos grupos sociais são submetidos no Brasil.
Embora não fosse do escopo de análise deste artigo, no segundo período do curso em questão, a disciplina “EFC 471 Educação Física Adaptada” traz, na ementa, questões como a diferença entre sujeitos. Aparentemente atrelada à inclusão pessoas com deficiência nas aulas de Educação Física, fez-se importante pontuar esta preocupação ao longo do percurso curricular avaliado. Destaca-se que a deficiência, notadamente a física, foi tratada historicamente na Educação Física como um estigma9 por romper com o perfil identitário tradicional do saber fazer associado ao professor (Baptista, 2019).
Neste mesmo propósito, a disciplina do terceiro período “EFN 221 Educação Física Ludicidade”, centrada nos temas de Lazer e Recreação, traz pontualmente a noção de "esporte para todos" e algumas questões acerca da importância e do uso social do tempo livre, o que poderia indicar uma preocupação com a ideia de inclusão, inclusive no que se refere às problemáticas de gênero e raça. Todavia, não há investimentos claros nesse ou em outros pontos sobre as temáticas analisadas.
No que tange à expressão “esporte para todos”, presente na ementa, é importante historicizá-la. A redação do documento ao trazer como referência o trabalho de Cavalcanti (1984) sobre esse ponto dialoga com o movimento que surgiu no Brasil em 1973, marcado pelo discurso de democratização das atividades físicas e desportivas com o objetivo de aprimorar a aptidão física da população (Teixeira, 2009).
Embora tenha a intenção de massificação da atividade física, Cavalcanti (1984) alerta que esse movimento surge como a divulgação de um discurso que enaltecia as vantagens do esporte para a criação de um modelo de corpo que satisfazia às exigências do mercado, em detrimento da autonomia dos sujeitos. Em outras palavras, a expressão “esporte para todos” não estava alinhada com princípios de humanização e inclusão, mas respondia a lógica de mercado.
Por outro lado, a ementa da disciplina “EFA 123 Perspectivas Filosóficas da Educação Física”, também do terceiro período, traz em sua redação a intenção de questionar o papel da Educação Física como interventora na sociedade, calcada nos princípios de humanização a partir de algumas concepções filosóficas. Além disso, expõe a tentativa de explorar as relações em torno do corpo, do ser humano e da sociedade, o que poderia perpassar pelos aspectos de gênero e raça, embora não cite em seus objetivos nem e em suas referências essa preocupação. Contudo, ao evidenciar o intuito de problematizar os discursos em torno do corpo em sua historicidade, abre um campo de possibilidades para discussão dessas questões no interior da disciplina.
No quarto período, a disciplina “EDF 245 Psicologia da Educação”, e no quinto período, a disciplina “EDF 120 Filosofia do mundo ocidental” mencionam questões atreladas à sexualidade e educação e, também, sobre o termo igualdade. Novamente, os termos são brevemente mencionados em toda a ementa, sem deixar ver maior profundidade nos temas. Importa salientar que estas duas disciplinas são oferecidas no âmbito da Faculdade de Educação, fora dos domínios da EEFD.
Ainda no quinto período, a disciplina “Fisiologia do Exercício I” elenca as marcações entre desempenho feminino e masculino. Assim como colocado no debate sobre higienismo, a forma como o professor formador aborda essas questões podem levar o licenciando a naturalizar preconceitos ou refletir sobre diferentes formar de ser e agir no mundo, principalmente no âmbito escolar.
No sexto período, a disciplina “EFA 360 Folclore Brasileiro: danças e folguedos” aborda um tópico que se refere às diferentes etnias formadoras do povo brasileiro e as suas influências na cultura nacional. Para além da discussão empreendida anteriormente, cabe ressaltar a necessidade de pensar em como estas relações étnico-raciais que constituíram a sociedade brasileira devem estar presentes no objeto da educação física: a cultura corporal.
Em Darido (2014), pensar em uma Educação Física que se pretende olhada na abordagem cidadã dos conteúdos, face aos princípios de inclusão e diversidade, requer trazer os tópicos sobre as desigualdades raciais e de gênero para as aulas no âmbito escolar. As possibilidades não são poucas. Desde os conteúdos capoeira, maculelê, e jongo, até o futsal, voleibol e basquetebol, podem ser feitas intervenções sobre como estas manifestações culturais, corporais e esportivas são valorizadas (ou não) em nossa sociedade, contextualizando a origem de cada uma, ou qual o papel atribuído aos diferentes gêneros nestas práticas corporais.
No contexto da última afirmativa, é notável a inexpressividade de discussões que se efetivem acerca da mulher e do homossexual no esporte, por exemplo. Disciplinas destinadas aos esportes, que abordam fundamentos do futebol, handebol, basquetebol e voleibol, ao menos nas ementas analisadas, sequer tangenciam esta temática. Cabe então questionar se estas disciplinas residem na estrita formação técnica do licenciando, partindo da concepção de "ensina melhor quem melhor faz/sabe", processo denunciado como ineficaz por Roldão (2007), no campo da educação, e dito como superado por Darido (2014), na área da Educação Física.
Nesse sentido, ao se levar em consideração a proposta sobre a definição de currículo de Ferraz & Correia (2012), o conjunto de experiências destinadas, pelo docente formador, no processo educativo do licenciando, na maioria absoluta das disciplinas analisadas, remete-se a uma formação técnico-desportiva ou à fragmentação curricular. Portanto, deixa apenas alguns pontos esparsos para abordagem de temas que urgem no contexto educacional de alunos do ensino básico e influenciarão na prática docente do futuro professor.
Essa explicação foi corroborada a partir a análise da escassez de disciplinas que tratam as questões relacionadas à formação racial e à identidade de gênero de determinadas práticas corporais na formação de professores da EEFD/UFRJ. Em outras palavras, é inegável que as discussões do corpo como vivência e expressividade de um interior de sistemas culturais particulares (Porter, 1992) no que se refere a essas temáticas ainda não adquiriram espaço de maneira explícita nas ementas das disciplinas.
A discussão sobre relações afeitas à identidade de gênero e de raça é urgente no debate educacional nacional. Nesse sentido, o presente artigo objetivou discutir a presença de temáticas relacionadas à questão racial e de gênero nas ementas de disciplinas obrigatórias no currículo da EEFD/UFRJ.
Entre os resultados, apenas três ementas explicitamente abordaram questões de raça vinculadas à cultura corporal expressa nas diferentes manifestações corporais dentro da Educação Física. Apenas uma disciplina tangenciou o higienismo e poderia derivar uma possível discussão sobre a construção do papel do homem e da mulher em meio à cultura corporal e esportiva. Outras seis mencionaram palavras afeitas às temáticas investigadas, sem aprofundar a discussão.
Assim, mesmo perante a solidificação da ideia de que o corpo é uma construção sobre o qual são conferidas “diferentes marcas em diferentes tempos, espaços conjunturas econômicas, grupos sociais, étnicos, etc.” (Goellner, 2005, p.28), desde os anos 1980, pouco se observou sobre esses referenciais para as discussões das referidas temáticas na formação docente. Parece haver, ainda, no curso de Licenciatura em Educação Física um “fascínio” por um olhar interpretativo naturalista/essencialista que desconsidera ou distancia os impactos das marcas sociais e culturais nas questões de gênero e de raça nas análises das relações e dos fenômenos da sociedade contemporânea. Isso fica mais evidente ao analisar que mesmo diante da urgência e da importância educacional desses assuntos para a área nenhuma disciplina cumpre o papel de discuti-los como um ponto indispensável.
Conclui-se, portanto, a necessidade de que as questões de gênero e de identidade racial estejam presentes no currículo da formação de Professores de Educação Física, como forma de sensibilizar os futuros professores para atuação no ensino básico. Como alerta Goellner (2005), desestabilizar certos preconceitos e romper com os essencialismos é um papel das contribuições que tomam o corpo como um objeto de estudo. Em contrapartida, aponta-se a dificuldade de revelar práticas docentes apenas por análise de ementas, carecendo de haver investigações sobre os discursos proferidos pelos professores formadores que atuam nas disciplinas analisadas e de observação sobre como suas aulas abordam ou não estes temas.
1. Azevedo, A., & Malina, A. (2004). Memória do currículo de formação profissional em Educação Física no Brasil. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 25(2), 129-142.
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3. Baptista, G. (2015). A formação de professores na Escola de Educação Física e Desportos de 1979 a 1985: a educação do corpo e os territórios de diálogo (Dissertação de mestrado). Escola de Educação Física e Desportos - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil.
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10. Ferraz, O., & Correia, W. (2012). Teorias curriculares, perspectivas teóricas em Educação Física Escolar e implicações para a formação docente. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 26(3), 531-540.
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11. Fraser, N. (2001). Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça da era pós-socialista. Em: J. Souza (Org.), Democracia hoje (pp.245-282). Brasília, Brasil: Editora Universidade de Brasília.
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12. Goellner, S. (2005). A produção cultural do corpo. Em: G. Louro, J. Felipe & S. Goellner (Orgs.), Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação (2ª ed., p.28-40). Petrópolis, Brasil: Vozes.
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18. Mendes, M., & Nobrega, T. (2008). O Brazil-Medico e as contribuições do pensamento médico-higienista para as bases científicas da educação física brasileira. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 15(1), 209-219.
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22. Porter, R. (1992). História do corpo. Em: P. Burke (Org.), A escrita da história: novas perspectivas (2ª ed., pp.291-326) [Magda Lopes: tradução]. São Paulo, Brasil: UNESP.
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23. Ranniery, T. (2016). Corpos feitos de plástico, pó e glitter: currículos para dicções heterogêneas e visibilidades improváveis (Tese de doutorado). Faculdade de Educação - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil.
T. Ranniery 2016Corpos feitos de plástico, pó e glitter: currículos para dicções heterogêneas e visibilidades improváveisTese de doutoradoFaculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de JaneiroRio de Janeiro, BrasilRio de Janeiro, Brasil
28. Taborda, M. (2006). A título de apresentação Educação do corpo na escola brasileira: teoria e história. Em: M. Taborda (Org.), Educação do corpo na escola brasileira. Campinas, Brasil: Autores Associados.
M. Taborda 2006A título de apresentação Educação do corpo na escola brasileira: teoria e história M. Taborda Educação do corpo na escola brasileiraCampinas, BrasilAutores Associados
[1]Ressalta-se que já havia outras escolas de Educação Física civis antes fundação da ENEFD, como, por exemplo, nos estados de São Paulo, Pernambuco, Pará e Espírito Santo. No entanto, funcionavam sem regulamentação e não tinham relação oficial com nenhuma Universidade (Azevedo & Malina, 2004).
[2]Esse sistema permite a visualização de currículos antigos e atuais dos cursos de graduação da UFRJ, inclusive da EEFD. Esse serviço está disponível para alunos, professores e funcionários da Universidade através do sítio. oMais informações em: https://intranet.ufrj.br/
[3]Entende-se o PPC enquanto documento que organiza e direciona um curso de nível superior. Demonstra objetivos, demanda para oferta de curso e vínculo com as Diretrizes Curriculares Nacionais da área em que se situa. Mais informações em: http://download.inep.gov.br/educacao_superior/avaliacao_institucional/apresentacao/glossario_3_edicao.pdf
[4]Mais informações em: https://www.eefd.ufrj.br/files/Projeto_Pedag%C3%B3gico%202006.pdf
[5]Mais informações em: https://www.eefd.ufrj.br/ementa/graduacao
[6]Embora a opção metodológica seja trabalhar com as disciplinas obrigatórias, ressalta-se a presença de disciplinas eletivas que dialogam com as questões de gênero e raça aqui discutidas, tais como “Educação Física escolar e formação para a diversidade” e “Gênero e Sexualidade na Educação Física e Esporte”. No entanto, essas disciplinas são apenas optativas e não são necessariamente ofertadas em todos os semestres, podendo variar sua oferta de acordo com a disponibilidade dos professores e os interesses e possibilidades institucionais.
[7]Mais informações em: http://www.fe.ufrj.br/portal/educacao.php?pst=2&pgn=disciplinaslic
[8]“Cultura corporal” é um termo largamente utilizado no campo da Educação Física brasileira desde a publicação da obra de Soares et. al (1992). Este termo tem por objetivo associar a dimensão corporal à cultura de maneira geral, o que possibilitou a superação da perspectiva naturalizada e biológica do corpo.
[9]De acordo com Goffman (2008), o estigma é a situação que o sujeito está impossibilitado de aceitação social de maneira plena, notadamente por motivos ligados a sinais corporais que teoricamente rompem com determinada expectativa social.
[10]Cómo citar este artículo: Zubcich Caiado de Castro, P. H. & Gonçalves Baptista, G. (2019). Gênero, raça e formação docente: análise das ementas da Escola de Educação Física e Desportos-UFRJ. Educación Física y Deporte, 38(2), XX-XX. DOI: http://doi.org/10.17533/udea.efyd.v38n2a05