DOI: 10.17533/udea.efyd.v39n2a05
NACIONALIDADE ESPORTIVA VS. NACIONALIDADE ESTATAL: O DESAFIO DE ATLETAS TRANSNACIONAIS EM UM MUNDO GLOBAL
SPORTS CITIZENSHIP VERSUS STATE CITIZENSHIP: A CHALLENGE FOR TRANSNATIONAL ATHLETES IN A GLOBAL WORD
NACIONALIDAD DEPORTIVA VERSUS NACIONALIDAD ESTATAL: EL DESAFÍO DE LOS ATLETAS TRANSNACIONALES EN UN MUNDO GLOBAL
William Douglas De Almeida1
Katia Rubio2
1 Doutorando na Universidade de São Paulo / Escola de Educação Física e Esporte Membro do Grupo de Estudos Olímpicos da Universidade de São Paulo e membro da Academia Olímpica Brasileira. Jornalista pela Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação / Universidade Estadual.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9838-0934
E-mail: williamdouglas@usp.br
2 Pós-doutora em psicologia social. Professora Associada na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo e pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Grupo de Estudos Olímpicos da Universidade de São Paulo e membro da Academia Olímpica Brasileira.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5632-6494
E-mai: katrubio@usp.br
Cómo citar este artículo:
Douglas De Almeida, W. y Rubio, K. (2020). Nacionalidade esportiva vs. nacionalidade estatal: o desafio de atletas transnacionais em um mundo global. Educación Fïsica y Deporte, 39(2), XX-XX. DOI: http://doi.org/10.17533/udea.efyd.v39n2a05
Resumo
A Carta Olímpica exige que, para participar de uma edição dos Jogos Olímpicos, um atleta seja vinculado a um Comitê Olímpico e seja nacional daquela localidade. O que é aparentemente simples, mas que torna- se um elemento importante em tempos de grande mobilidade e circulação de pessoas. Apesar de não ser um fenômeno recente, o aumento no número de atletas naturalizados nas últimas edições olímpicas chama a atenção de gestores e outros personagens envolvidos com o esporte. Este estudo se baseia em uma revisão teórica e em dados sobre a participação de atletas que não nasceram no Brasil e representaram o país nos Jogos Olímpicos, discute o conceito de nacionalidade esportiva e seu diálogo com a nacionalidade estatal ao longo da história, ressaltando que esta é uma temática com grande relevância nos dias atuais.
Palavras-chaves: emigração, imigração, grupos étnicos, construção social, identidade étnica.
Abstract
The Olympic Charter requires that, to participate in an edition of the Olympic Games, an athlete must be linked to an Olympic Committee, and must be a native of that locality. Something apparently simple, but it becomes an important element in times of high mobility and movement of people. Although not being a recent phenomenon, the increase in the number of naturalized athletes in the last Olympic editions commands the attention of managers and other persons involved with the sport. This study, based on theoretical review and data on the participation of athletes who were not born in Brazil and represented the country at the Olympic Games, discusses the concept of sports nationality and its dialogue with state nationality throughout history, emphasizing that it is a theme with great relevance today.
Keywords: Emigration, Immigration, Ethnic Groups, Social Construction, Ethnic Identity
Resumen
La Carta Olímpica requiere que, para participar en una edición de los Juegos Olímpicos, un atleta debe estar vinculado a un Comité Olímpico y debe ser nativo de ese lugar. Lo que es aparentemente simple, se convierte en un elemento importante en tiempos de gran movilidad y movimiento de personas. A pesar de no ser un fenómeno reciente, el aumento en el número de atletas naturalizados en las últimas ediciones olímpicas atrae la atención de los gerentes y otros personajes involucrados en el deporte. Este estudio, basado en una revisión teórica y datos sobre la participación de atletas que no nacieron en Brasil, y representaron al país en los Juegos Olímpicos, discute el concepto de nacionalidad deportiva y su diálogo con la nacionalidad estatal a lo largo de la historia, enfatizando en que esto es un tema de gran relevancia hoy.
Palabras-clave: Emigración, Inmigración, Grupos Étnicos, Construcción Social, Identidad Étnica.
Introdução
“Quem sabe, em vez de falar sobre identidades, herdadas ou adquiridas, estaria mais próximo da realidade do mundo globalizado falar de identificação, uma atividade que nunca termina, sempre incompleta, na qual todos nós, por necessidade ou escolha, estamos engajados.” (Bauman, 2009, p. 193)
Consciente, ou inconscientemente, vivemos em busca de criar uma identificação. Se encontrarmos um desconhecido e precisamos nos apresentar, vamos falar sobre o nosso nome e local de origem. Afinal, estas são marcas que não escolhemos, mas que carregamos por toda a nossa vida. Ao crescermos, outros fatores de identificação passam a fazer parte de nossa vida: os locais que frequentamos (clubes, igrejas, escolas), a nossa formação profissional e até mesmo os nossos laços de família.
E quais os limites desta identificação? Ela pode ser pessoal, familiar, ou até mesmo nacional. Anderson aponta que a nação, na realidade é
Uma comunidade política imaginada –e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana. Ela é imaginada porque mesmo os membros das mais minúsculas das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos eles tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles. (Anderson, 2008, p. 32)
No campo esportivo, os Jogos Olímpicos são o grande momento desta comunhão de pensamentos e de representações nacionais. Não por acaso, um dos momentos mais marcantes é a cerimônia de abertura. O país sede apresenta sua cultura, música e tradições. O ápice da identificação entre atletas e nações ocorre durante o desfile das delegações, quando atletas de todos os países entram seguindo suas bandeiras. Os rituais que ligam atletas a países não param por aí: após cada vitória um hino nacional é entoado e as cores usadas por atletas e equipes representam uma determinada nação. Para Gangas (2016, p. 107), isso faz com que os Jogos Olímpicos sejam “o maior fenômeno político, social, econômico e cultural dos dias atuais”.
Nossa proposta é discutir um dos critérios de elegibilidade dos atletas que participam da competição: a vinculação a um Comitê Nacional, prevista no item 41 da Carta Olímpica (IOC, 2017, p. 78), a que diz que “Qualquer competidor nos Jogos Olímpicos deve ser nacional do país da NOC[1] que o registra”. Algo aparentemente simples, mas que se tornou um desafio na atualidade, tendo em vista que é cada vez maior o número de atletas com múltiplas nacionalidades e que, por isso, têm o direito de escolher qual país defender. Além disso, Guillaumé (2013) lembra que nem sempre a identidade esportiva acompanha a identidade civil dos indivíduos, o que pode gerar confusões.
Antes de prosseguirmos com a análise, porém, é preciso retomar uma orientação de Gangas (2016): tentar traçar um paralelo entre as regras do Comitê Olímpico Internacional (COI) e de outras organizações transnacionais, é um caminho perigoso e que pode levar a uma série de conclusões equivocadas, tendo em vista que o comitê é uma entidade de interesse privado, que dita suas próprias regras. Isso não significa que a organização esportiva esteja à parte daquilo que ocorre na geopolítica mundial, ou que as nações estabelecidas diplomaticamente não façam uso do esporte.
Por ser uma entidade privada, o COI usa de suas atribuições para reconhecer 206 nações, um número superior ao reconhecido pela organização das Nações Unidas (193 nações), por exemplo. É interessante ainda destacar que o COI concede às federações internacionais o poder de regular as suas respectivas modalidades e, inclusive, estas federações também têm autonomia para definirem seus critérios e reconhecerem nações e nacionalidades de um modo diferente. Assim, a Federação Internacional de Futebol (Fifa) tem 211 filiados, e a Federação Internacional de Natação (Fina) tem 209. No momento da disputa olímpica, porém, é preciso um diálogo para que atletas filiados a federações, mas que não são reconhecidas pelo COI, possam participar dos Jogos.
Assim sendo, trazemos como questionamento alvo deste trabalho a discussão sobre a vinculação da nacionalidade esportiva a fatores de nacionalidade estatal, apontando para as aproximações e distanciamentos existentes entre estas duas condições. Tal equacionamento será realizado com o debate entre conceitos teóricos e excertos narrativos de atletas transnacionais –que trocaram de nacionalidade ao longo da vida, por diversas razões.
Metodologia e referencial
A escolha por trabalhar com os Jogos Olímpicos para discutir a nacionalidade esportiva, se dá tendo em vista que a nação ainda é um dos pilares da competição, diferentemente das disputas clubísticas, na quais os atletas tem uma grande liberdade de circulação e onde as barreiras da nacionalidade estão cada vez menos restritivas. Para tal discussão, optamos por uma revisão da literatura sobre o tema e a busca de exemplos no esporte brasileiro de atletas que passaram por processos de troca ou escolha de nacionalidade em diferentes períodos históricos. Assim, adotamos a periodização proposta por Rubio (2016), que divide os Jogos Olímpicos da Era Moderna em cinco fases distintas. Segundo a autora, as cinco primeiras edições, compreendidas entre 1896 e 1912 compõe a fase de estabelecimento dos Jogos –este período é marcado pela aceitação da proposta olímpica e a criação das estruturas do Movimento Olímpico, sob uma coordenação rígida do Barão Pierre de Coubertin. Já os Jogos realizados entre 1920 e 1935 compõe a fase de afirmação. Este período demonstra que o Movimento Olímpico conseguiu o reconhecimento da comunidade internacional, crescendo a cada edição e conquistando cada vez mais visibilidade –os últimos anos deste período já serviram como um prenúncio dos desafios que seriam enfrentados nos anos seguintes. Após um hiato provocado pela Segunda Guerra Mundial, chegamos à terceira fase da periodização olímpica proposta por Rubio: a fase de conflito, marcada pela polarização entre dois blocos –socialista e capitalista–, com grande politização dos Jogos, sendo refletida inclusive em boicotes por várias nações. O modelo amador e estatal demonstrou sinais de esgotamento, o que ocorreu no final dos anos 80. A partir 1988, em Seul, começa a fase de profissionalismo dos Jogos, marcada pela espetacularização e comercialização de marcas relacionadas ao Movimento Olímpico. Marcas, símbolos e imagens olímpicas passaram a ser regulamentadas de maneira mais rígida pelo COI. Este modelo suportou por três décadas, mas mostrou sinais de esgotamento claros em 2016, com os Jogos Olímpicos realizados no Rio de Janeiro. A partir de então, entramos na quinta fase proposta por Rubio: Uma Nova Ordem Olímpica, a Agenda 20+20. Tal agenda, produzida pelo COI, é uma tentativa de trazer ao debate temas sensíveis à entidade, que arranharam a imagem e os ideais olímpicos do comitê com o avanço do profissionalismo e da comercialização de espaços e produtos relacionados com a marca olímpica. Rubio (2016, p. 27) aponta que “dentre os temas centrais dessa discussão encontram-se o combate à corrupção dentro do ambiente olímpico, o controle sobre o agigantamento dos Jogos Olímpicos, a igualdade entre gêneros, o controle do doping e o empoderamento do atleta.” Assim, o papel dos comitês olímpicos nacionais e a discussão de definição de nacionalidades esportivas é um dos temas em pauta neste momento.
Outro referencial teórico importante é a classificação feita por Joseph Maguire (2007), que divide os imigrantes esportivos em cinco classes: pioneiros, nômades, assentados, retornados e mercenários. Segundo o autor, pioneiros são atletas responsáveis pro implementar ou aumentar a visibilidade de modalidades esportivas em um novo país, levando para lá o conhecimento adquirido no local de origem. Já os nômades são atletas motivados por um sentimento cosmopolita da migração –vão a busca de novas oportunidades e circulam pelo mundo, aproveitando o talento esportivo para visitar outras culturas e desfrutar da condição de estrangeiro. Esta classe é um pouco diferente dos mercenários, atletas que migram exclusivamente motivados pela possibilidade de maiores ganhos financeiros. Há ainda os assentados, migrantes que decidem pela troca de país e acabam permanecendo por lá não apenas por questões esportivas, mas por sentirem-se adaptados ao novo local. Por fim, existem ainda os retornados: pessoas que voltam ao local de origem, após um período em território estrangeiro. Desta forma, segundo Maguire (2007), a motivação dos migrantes esportivos é um processo complexo e multifacetado, sendo que cada indivíduo pode ter uma diferente motivação para atuar em um país diferente do que nasceu.
A construção deste texto será ainda baseada no diálogo entre os conceitos teóricos com a apresentação de exemplos de atletas que representaram o Brasil. Algumas falas de atletas apresentadas no texto fazem parte do projeto “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos Brasileiros”, pesquisa aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) por meio do processo 0052.0.342.000-09.
Discussão: Quando surgem as representações nacionais?
Para debatermos a relação entre nacionalidade e Jogos Olímpicos, é preciso que retornemos ao período em que o COI foi criado e, consequentemente, à realização da primeira edição olímpica da Era Moderna, em 1896, na cidade de Atenas. De acordo com Müller (2000), o momento era propício para a criação de um órgão internacional esportivo, tendo em vista que o internacionalismo social e a cultura do fim do século XIX eram pujantes. Hobsbawm (2014) aponta que uma série de entidades de caráter transnacional, como a União Telegráfica Internacional e a Organização Meteorológica Internacional, também foram criadas neste período e que o avanço dos meios de transporte também permitia aos indivíduos um deslocamento mais rápido e eficiente.
A primeira edição dos Jogos Olímpicos contou com 241 atletas de 14 países. Os convites foram disparados a várias entidades esportivas, e as inscrições foram feitas pelos competidores interessados em participar. Não havia comitês nacionais e, obviamente, a necessidade de vinculação dos atletas a uma determinada pátria para competir, algo que se repetiu quatro anos depois, na segunda edição olímpica, disputada em Paris. Rubio (2015) aponta que nesta edição dos Jogos de 1900, um competidor chamado Adolphe Klingelhoefer, filho de um diplomata brasileiro, participou das disputas de atletismo. Ainda não havia um comitê olímpico brasileiro, mas isso não impediu que ele se inscrevesse na prova –o que foi feito, por sinal, como atleta francês. O relatório oficial desta edição olímpica aponta que nesta mesma edição olímpica, a Grã-Bretanha registrou dois diferentes times para a disputa de esportes equestres, e as disputas de polo aquático envolveram dois times britânicos e quatro franceses. Quatro anos depois, em Saint Louis, os Jogos foram marcados por muita confusão. O evento conta com dois relatórios oficiais. Um dado interessante é que ambos trazem explícita uma divisão das conquistas dos atletas, que são separados não apenas pelos países de origem: no caso dos norte-americanos, que foram os vencedores da maior parte das provas, são apontadas quais as universidades de origem. Em várias modalidades, as finais foram disputadas entre atletas norte-americanos.
O retorno dos Jogos à Europa, em 1908, foi marcado por algumas discussões. Algumas colônias britânicas quiseram enviar atletas e segundo Müller (2000), foi esta a primeira vez em que o COI declarou-se como uma entidade supranacional, evitando desta maneira tomar partido pelo pleito de uma nação ou outra. Quatro anos depois, com a Europa em intensa ebulição, o Movimento Olímpico foi colocado à prova por algumas questões políticas. Atletas finlandeses queriam competir sob a bandeira do país, mas a Rússia questionava a autonomia a região. Um problema similar ocorreu entre austríacos e representantes da Boêmia. A solução encontrada, neste caso, foi hastear juntas as bandeiras dos países. Segundo Coubertin, naquele momento o esporte passava a tomar um novo rumo:
A regra fundamental das Olimpíadas modernas baseia-se em duas palavras: All games, all nations, e nem sequer está em poder do Comitê Olímpico Internacional, autoridade máxima nessa matéria, mudar nada a respeito. Acrescento que uma nação não é necessariamente um Estado independente, e existe uma geografia desportiva que em certas ocasiões pode diferir da geografia política. (Coubertin, citado por Müller, 2000, p.581)
A decisão de adotar uma geografia própria do esporte, diferente da geopolítica mundial, acabou tendo impactos significativos nos anos seguintes, mas isso não significou um distanciamento ou alienação do Movimento Olímpico em relação ao que ocorria com a política mundial. Na retomada dos Jogos Olímpicos, em Antuérpia 1920, alguns países não foram convidados devido à Primeira Guerra Mundial. Neste ínterim, é fundamental destacar o Congresso de Paris, realizado em 1914, que deu algumas das novas diretrizes do Movimento Olímpico. Neste evento foi decidido que as Federações Internacionais seriam as responsáveis por regular as modalidades e também que os atletas seriam registrados nos Jogos Olímpicos por seus respectivos comitês nacionais. As inscrições individuais, como ocorriam antes, não seriam mais aceitas. A vinculação entre atletas e países passava a ser um critério de elegibilidade para a disputa olímpica. Rubio (2016) enquadra as cinco primeiras edições olímpicas dentro da chamada “fase de estabelecimento”, por conta das mudanças pelas quais os Jogos passaram, e o desafio de se manterem como uma competição importante no cenário mundial.
A nacionalidade durante a fase de afirmação
A partir de 1920, é inaugurada a fase de afirmação, na classificação de Rubio (2016), sendo esta marcada pela entrada de novas nações e o aprofundamento do uso político do esporte, que culminam com a realização dos Jogos Olímpicos em Berlim, em 1936. Sobre este período, pode-se observar que
O espaço entre as esferas privada e pública também foi preenchido pelos esportes. Entre as duas guerras, o esporte como um espetáculo de massa foi transformado numa sucessão infindável de contendas, onde se digladiavam pessoas e times simbolizando Estados-nações, o que hoje faz parte da vida global [...] Eles simbolizavam a unidade desses Estados, assim como a rivalidade amistosa entre suas nações reforçava o sentimento que todos pertenciam a uma unidade, pela institucionalização de disputas regulares que proviam uma válvula de escape para as tensões grupais. (Hobsbawm, 1990, p. 170)
Ainda de acordo com o autor, não era necessário sequer atuar para que o indivíduo se sentisse identificado com uma nação: o simples fato de torcer já ajudava a pessoa a se conectar com um local. Em tempos nos quais a mobilidade das pessoas de países ainda era pequena, a questão da nacionalidade estatal e esportiva ainda não era um problema, tendo em vista que as identificações dos indivíduos ainda eram claras.
Nestas primeiras edições dos Jogos Olímpicos, o Brasil era um país novo, com a república proclamada apenas em 1889. Dois anos depois, em 1891, a Constituição previu a naturalização de todas as pessoas naturais de outros países que viviam por aqui na data da proclamação da república e que não indicassem o desejo contrário. Foi assim que Sebastião Wolf, nascido na região da Baviera, na Alemanha, em 1869, tornou-se brasileiro –ele havia imigrado com a família e se estabelecido no Sul do Brasil. A presença na primeira delegação olímpica oficial do país já seria um fato histórico, mas foi coroada ainda com a medalha de bronze na disputa do tiro esportivo por equipes. Pelos conceitos de Maguire (2007), Sebastião Wolf é um imigrante assentado, tendo em vista que a mudança para o Brasil não esteve envolvida com o esporte.
As consequências das guerras e as múltiplas cidadanias
Na década de 1940 há um lapso de duas edições olímpicas, por conta da Segunda Guerra Mundial. Rubio (2016) considera que a retomada dos Jogos, em 1948, inaugura uma nova fase de conflito que perdura até 1984. Neste período, as questões políticas entre soviéticos e norte-americanos, são levadas para o campo esportivo. A representação nacional é reforçada ainda mais e as conquistas atléticas são usadas como propaganda política por diversos governos, que buscam aumentar a relação entre as conquistas esportivas e os regimes governamentais. O amadorismo ainda era o paradigma vigente, e, pelo menos em teoria, atletas profissionais não podiam competir.
Todavia, a tensão existente provocou algumas situações de deserções e abandonos de países. No caso brasileiro, o exemplo mais evidente é o jogador de polo aquático Aladar Szabó. Nascido na Hungria, Szabó defendeu a seleção de seu país entre os anos de 1953 e 1956 –ele abandonou se refugiou na Itália, por questões políticas, fugindo assim do regime comunista. Após três anos, Szabó recebeu um convite de João Havelange para migrar para o Brasil, onde atuaria como técnico da equipe do Fluminense –como ainda era jovem (tinha 26 anos de idade) acumulou as funções de jogador. Obviamente, por mais que o paradigma da época fosse o do amadorismo, não há como negar que Szabó deve ser considerado um profissional do esporte. Naturalizado em 1962, ele defendeu o Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964. Szabó chegou ao país já adulto, e com uma carreira profissional consolidada. Além do Fluminense, também atuou pelo Botafogo e, após o final da carreira esportiva, continuou vivendo no país, tendo trabalhado na Universidade de Brasília e também montado escolinhas de natação. O esporte foi o fator que desencadeou a mudança dele para o Brasil, mas não foi o único elo construído entre ele e a nação. Se tentarmos aplicar a classificação de Maguire (2007) aqui, teremos uma série de dificuldades. Seria possível considerar Szabó um nômade que se fixou no Brasil? Ou um imigrante assentado, tendo em vista que sua saída da Hungria por razões políticas não possibilitava a ele um retorno à pátria natal?
Além do caso de Szabó, que chegou ao Brasil já como atleta, durante a fase de conflito o esporte brasileiro também viu muitos atletas que chegaram crianças ou adolescentes ao país, durante a Segunda Guerra Mundial, tornarem-se competidores de nível internacional pelo país. Estas pessoas vieram para o país junto com as famílias, fizeram sua formação esportiva por aqui e, devido às relações com o Brasil, optaram pela naturalização. São os casos dos jogadores de basquete Victor Mirshawka (Ucrânia) e Radvilas Gorauskas (Lituânia), do velejador Burkhard Cordes (Alemanha) e dos remadores Francisco Todesco (Itália), Paulino Gonçalves Leite (Portugal) e Edgard Gijsen (Bélgica) que migraram para o Brasil na década de 40. O processo de naturalização de alguns remadores, por sinal, foi acelerado por interesses esportivos, como narra Francisco Todesco.
Quando eu comecei a remar, eu era italiano. Aí, uma, uma eliminatória do Pan-Americano de Chicago, nós tava no Rio e nós ganhemos dos cariocas a primeira. E aí, o general Vinholi aqui, nós tinha dois na guarnição, era eu e o Paulino Leite, português e eu italiano. Eles fizeram uma naturalização em menos de 24 horas. Eles saíram daqui com os documentos, levou numa sexta-feira, numa quinta-feira de noite, ele levou pro Rio, Juscelino assinou e saiu no Diário Oficial, da sexta-feira, e nós corremos na eliminatória, no sábado. (Francisco Todesco, comunicação pessoal, 4 de maio de 2016)
A fala de Todesco pode ser comprovada ao observarmos os números de processo de naturalização dos dois atletas, feitos de maneira muito próxima: o processo número 23.417-59 é referente à naturalização de Todesco. Já o processo número 23.419-59 é o de Paulino. No mesmo dia, o irmão de Edgard Gijsen, Walter, que também era remador, também foi naturalizado no processo número 23.416-59. Outro indício curioso é que a naturalização destes atletas não segue a ordem alfabética no Diário Oficial da União (1959), mostrando que provavelmente elas foram incluídas à parte.
Todos os indivíduos citados acima criaram uma relação com o Brasil. São migrantes que, adotada a classificação de Maguire (2007), podem ser considerados assentados, pois se fixaram no país e criaram relações com a nação além do esporte. Todavia, nem todos que se naturalizaram durante a fase de conflito tiveram este mesmo perfil. O velejador Peter Erzberger, por exemplo, nasceu na Suíça, aprendeu a velejar por lá, mas após um convite de amigos decidiu migrar para o Brasil. Participou dos Jogos Olímpicos de Moscou, em 1980, e foi técnico da seleção brasileira em competições internacionais, mas depois decidiu retornar à Europa. Um dos motivos que o fizeram desistir de continuar no Brasil foi a negativa do governo nacional em conceder o passaporte ao filho, Marc Erzberger, que era campeão brasileiro de vela na modalidade windsurf, e que também deseja naturalizar-se.
Nós achamos que mais fácil era que ele recebesse passaporte brasileiro, mas não recebeu. Eu estive até visitando o ministro Abi-Ackel, que era ministro da Justiça naquela época, mas ele falou que o Marc deveria ficar suíço. Era diferente. Quando eu fui receber o passaporte, foi ministro da Marinha, Maximiano Fonseca, que iniciou os contatos para que eu pudesse ser brasileiro. (Peter Erzberger, comunicação pessoal, 5 de agosto de 2016)
Mesmo tendo retornado ao país de origem, Peter se vê como um cidadão de múltiplas identidades, sentindo-se ainda ligado ao país.
A minha cidadania suíça, que eu tive como origem, é minha cidadania de educação, de educação, de aprendiz, e tudo isso, mas a cidadania de vida, é a cidadania brasileira. (Peter Erzberger, comunicação pessoal, 5 de agosto de 2016)
A naturalização de Peter pode ser considerada como instrumental, tendo em vista que, apesar de não ser um profissional do esporte, ele já veio ao Brasil com os objetivos esportivos e com um horizonte aberto para a participação em eventos internacionais pelo país. Este é ainda um caso que se aproxima muito mais de uma leitura de nomadismo e oportunismo –tendo em vista que a naturalização foi boa tanto para o atleta quanto para a delegação brasileira– do que de uma acusação de mercenário, tendo em vista que a vela ainda era um esporte amador e que não houve retorno financeiro para que ele defendesse o país.
Como é possível notar, durante a fase de conflito dos Jogos diferentes perfis de imigrantes chegaram ao Brasil e optaram pela naturalização, tendo em alguns casos o esporte sido apenas mais um elemento na decisão dos mesmos, mas em outros sendo ele o fator fundamental pela escolha. Nos anos seguintes, o que podemos perceber é um aumento ainda mais expressivo no número de migrantes no esporte nacional.
A fase de profissionalismo e as novas situações
Rubio (2016) considera que os Jogos Olímpicos entram na fase do profissionalismo a partir de Seul, em 1988. O Movimento Olímpico passou por uma grande mudança durante a década de 1980, quando o COI esteve sob comando do espanhol Juan Antonio Saramanch.
Samaranch articulou compromissos com chefes de Estado e lançou os Jogos para um patamar superior de organização e de comercialização, garantindo um espetáculo de alta qualidade (paulatinamente, atletas profissionais puderam integrar as equipes olímpicas nacionais), ampliando a visibilidade dos grandes patrocinadores e cobrando alto pelos direitos de transmissão televisiva. (Proni, Araujo & Amorim, 2008, p. 7)
Um dos maiores símbolos da adesão ao profissionalismo, foi a participação da equipe principal de basquete masculino dos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de Barcelona, em 1992. Com atletas que atuavam pela principal liga de basquete dos Estados Unidos, a National Basketball Association (NBA), não havia mais dúvida sobre o profissionalismo dos jogadores.
Giulianotti e Brownell (2012) apontam que o esporte é um catalisador da globalização. Segundo os autores, o esporte atual é transnacional por promover uma relação entre indivíduos de diversos pontos do globo e uma constante troca, seja de bens materiais, seja pela promoção da circulação de pessoas, ideias e valores. Inserido em um ambiente profissional, porém, o esporte torna-se um ambiente com alto nível de mobilidade dos indivíduos pelo globo, em busca de oportunidade de trabalhar em clubes nos quais os salários e as condições de trabalho sejam melhores. Shachar (2011) avalia que em ambiente de profissionalismo, há uma verdadeira corrida pelos talentos e as equipes economicamente mais poderosas investem para ter os melhores atletas, independentemente da origem étnica dos mesmos. A autora aponta que tal questão ganha novos contornos, porém, quando a busca por novos talentos passa do âmbito dos clubes para as equipes nacionais.
Poulton e Maguire (2012) abordam que a Grã-Bretanha viveu um grande debate sobre a naturalização de atletas em 2012, quando Londres foi a sede olímpica. Não por acaso, no Brasil discussões semelhantes foram feitas às vésperas dos Jogos Olímpicos Rio-2016. No caso brasileiro, a delegação contava com 23 atletas nascidos em território estrangeiro. Destes, porém, apenas quatro não possuíam parentesco com brasileiros antes de obter a naturalização. Outros quatro foram naturalizados com a facilidade de serem casados com brasileiras e os quinze restantes são considerados brasileiros natos, por questões consanguíneas. Ter a origem familiar, porém, não garante a estes indivíduos um laço mais forte com o Brasil de quê os naturalizados, como poderemos ver com alguns exemplos.
A começar por Gui Lin, jogadora de tênis de mesa que na Rio-2016 representou o Brasil pela segunda vez. Ela migrou para o país quando tinha 12 anos de idade, convidada por um técnico para treinar na cidade de São Bernardo do Campo. Apesar de ser uma adolescente, ela mudou-se sozinha para o Brasil e terminou de completar sua formação esportiva no país. Assim que completou 18 anos, Gui conseguiu o passaporte do país e foi inscrita para os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Naquela edição olímpica, das 48 mesa-tenistas inscritas, 23 eram nascidas na China, segundo levantamento de Maguire (2015). Uma análise superficial sobre o caso, poderia fazer considerarmos Gui Lin meramente uma mercenária que, sem espaço na China, optou por jogar profissionalmente em outro país e “vendeu” sua nacionalidade. Todavia, é preciso considerar a naturalização da perspectiva da história de vida da atleta, que migrou cedo para o Brasil, completou aqui o seu desenvolvimento profissional e criou uma relação com o país. É preciso ainda citar que houve um grande interesse por parte da Confederação Brasileira de Tênis de Mesa para que a atleta representasse o país.
Outro caso relacionado à delegação brasileira na Rio-2016 é o de Ernst Rost Onnes, capitão da seleção brasileira de hóquei sobre a grama. Ele nasceu na Holanda, mas tem a nacionalidade brasileira devido à ascendência, pois o pai nasceu no Brasil na década de 1940. Antes de ser convocado para a seleção nacional, Ernst não tinha contato com o país –tendo em vista que toda a família vivia na Europa. As primeiras convocações vieram logo após os Jogos Olímpicos de Londres, quando ele procurou a Confederação Brasileira de Hóquei e demonstrou interesse em jogar pelo país. O curto período em que viveu em solo brasileiro foi durante a preparação para as competições internacionais. Todavia, a oportunidade de representar o país nos Jogos Olímpicos, segundo ele, foi importante para ajudar a criar uma conexão maior com o país. Tentando trazer os conceitos de Maguire (2007) para este caso, talvez Ernst fosse considerado um retornado. Todavia, ele parece fugir a este enquadramento, pois o retorno é feito para um lugar no qual ele pessoalmente nunca esteve, mas sim à terra natal de seu pai.
Apesar dos fatores consanguíneos, podemos citar aqui também como uma cidadania de oportunidade. Houve um ganho tanto para o atleta, que pode disputar uma edição olímpica, o que lhe deu grande prestígio, e um ganho para a confederação brasileira, que pode contar com um atleta de alto nível. É claro que não podemos desconsiderar o fator financeiro, mas em entrevista, Ernst se descreve como um semi profissional, pois sempre precisou conciliar o hóquei com outras atividades. Friamente, estes dois casos ajudam a pensarmos sobre a complexidade da nacionalidade: por quais motivos Gui Lin, que é naturalizada, seria considerada “menos” brasileira de que Ernst, que tem pouquíssima relação com o país, apesar dos fatores consanguíneos.
A seleção brasileira masculina de polo aquático que esteve na Rio-2016 é outro caso que merece atenção. O time contava com dois jogadores que não tinham relação prévia com o país: Slobodan Soro, oriundo da Sérvia, país pelo qual já havia jogado duas olimpíadas, e Josip Vrlic, da Croácia, e fez ainda um trabalho de busca de filhos de brasileiros que pudessem, por meio da ascendência, representar o país. Assim, atletas como Adrià Delgado e Paulo Salemi, que nunca haviam vivido no Brasil, ou atuado por clubes do país, tiveram a oportunidade de representar o país. Outro atleta, Yves Alonso, que tinha passagens pela seleção cubana, era casado com uma brasileira, vive no país e também optou por defender o Brasil. Pelo regulamento da Fina (2017), além de terem a nacionalidade estatal brasileira todos os atletas, deveriam ter morado pelo menos um ano no Brasil, condição que foi cumprida, tendo em vista que durante o processo de naturalização estes jogadores foram contratados por clubes brasileiros. Os casos acima, referentes apenas à participação brasileira, mostram o quão complexa a questão da nacionalidade e das representações nacionais se tornou nos últimos anos.
Conclusões: A nacionalidade no Movimento Olímpico atual
Retomando a periodização de Rubio (2016), a fase de profissionalismo se esgotou em 2016, com os Jogos do Rio, tendo em vista que o COI faz um movimento em busca da retomada de alguns dos pilares que foram deixados para trás nos últimos anos. A base destas mudanças está sendo construída em documento chamado pelo COI de Agenda 20+20. Apesar de sugerir uma série de mudanças, tal documento não entra na discussão das representações nacionais. Mas isso não indica que o tema tenha sido ignorado pelo comitê.
O primeiro passo importante que indica mudanças nesta área, ocorreu em 2016, com a introdução de uma delegação de refugiados nos Jogos Olímpicos, formado por dez atletas. Apesar dos países de origem dos mesmos serem membros do COI (Síria, Congo, Etiópia e Sudão do Sul), estes atletas competiram sob a bandeira olímpica, tendo em vista os problemas que os afastaram de suas nações de origem. Celebrada pelo viés inclusivo, a presença da delegação de refugiados abre espaço para um novo debate sobre o conceito de nacionalidade e da necessidade dos atletas representarem uma determinada nação, tendo em vista que, em um mundo onde as pessoas conseguem se mover com uma velocidade cada vez maior, é difícil usar um critério objetivo que as obrigue a defender determinada bandeira.
No caso das modalidades coletivas, o debate também fica em aberto, pois a participação em uma edição olímpica depende de uma convocação feita por um selecionador e envolve uma estrutura, sendo que esta não existe para os refugiados (pelo menos até o momento). Apesar de reconhecer o esporte como uma área privada, é preciso traçar um paralelo com outros setores e questionar-se: se uma pessoa pode ter direitos em dois países como natural, por que no esporte isto seria um impeditivo? Apesar da existência de negociações meramente comerciais, em muitos casos a mudança de nacionalidade ocorre porque há uma identificação, ou um laço entre o atleta e o país de destino.
Este é um dos argumentos utilizados pelo jogador de polo aquático Felipe Perrone, que nasceu no Rio de Janeiro, mudou-se para a Espanha e, utilizando-se da ascendência de uma avó, defendeu o país europeu entre os 18 e os 28 anos. Após isso, sabendo da oportunidade de defender o Brasil nos Jogos Olímpicos, pediu afastamento da seleção espanhola para defender o país de nascimento. E agora, após os Jogos do Rio, pediu novamente para defender a Espanha. Mas, em entrevista concedida ao jornal El Mundo, publicada em 7 de junho de 2018 (Sánchez, 2018), o jogador se defende
Para mim o esporte é uma oportunidade de demonstrar meu patriotismo, não gosto que usem por nacionalismo. No meu ponto de vista, o nacionalismo é excludente: ou é daqui, ou não. O patriotismo, a troca, supõe identificação com o país, com a cultura. Eu nasci no Brasil, vivi lá até os 15 anos e minha avó é espanhola. Me identifico com ambos países.
A fala de Felipe nos remete ao pensamento do filósofo Zygmunt Bauman que diz o seguinte sobre a formação de identidades e identificações dos indivíduos no mundo atual:
Idealmente, nada deveria ser abraçado com força por um consumidor, nada deveria exigir um compromisso ‘até que a morte nos separe’, nenhuma necessidade deveria ser vista como inteiramente satisfeita, nenhum desejo como último. Deve haver uma cláusula ‘até segunda ordem’ em cada juramento de lealdade e em cada compromisso. O que realmente conta é apenas a volatilidade, a temporalidade interna de todos os compromissos; isso conta mais que o próprio compromisso, que qualquer forma não se permite ultrapassar o tempo necessário para o consumo do objeto de desejo. (Bauman, 1999, p. 77)
Assim sendo, o Movimento Olímpico e as representações esportivas se veem em um momento de grande pressão: afinal de contas, se por um lado as nações ajudam ainda a sustentar o imaginário olímpico, atraindo o público e criando um ambiente de representação nacional, por outro a nossa sociedade atual é construída também de cidadãos que não ficam mais fixos a um só ponto. Houlihan (2016) aponta que neste contexto, cada vez mais, serão vistas identidades turvas, fundidas ou até mesmo ambíguas. Assim sendo, cada caso ganha contornos individuais e, a tentativa de criar um único padrão, pode acabar restringindo o direito de pessoas que tem a oportunidade de participar de uma edição olímpica –sendo que em alguns casos, esta representação é carregada de simbolismo, como o resgate de uma tradição familiar.
Nosso objetivo aqui não é encontrar uma solução imediata e única para o fenômeno da nacionalidade esportiva, mas sim discutir e apontar para os rumos que as representações nacionais estão tomando e mostrar que este não é um fato genuinamente novo, apesar de ter ganhado importância nos últimos tempos.
É importante observar que mesmo em tempos de amadorismo, houve influência política para facilitar processos de naturalização, como pudemos constatar no caso de Francisco Todesco –apesar de já viver no Brasil há algum tempo, o processo de naturalização foi acelerado por conta do esporte. A situação de Szabó, apesar do contexto de fuga da guerra, foi resolvida mais rapidamente devido ao interesse dos brasileiros em contar com o jogador na equipe nacional.
A discussão entre o caráter privado do esporte, e sua consequente autonomia para a criação de regras que possam divergir das estatais das concessões de nacionalidade, naturalmente esbarra no caráter público do fenômeno esportivo, que é o da representação nacional. Segundo o regulamento do COI, um dos itens necessários para que o atleta obtenha a elegibilidade esportiva é justamente ter a nacionalidade estatal. Inicialmente previsto para regular as representações, este artifício acabou tornando-se um problema, tendo em vista que em alguns casos, os países podem simplesmente flexibilizar as legislações locais, tornarem os atletas cidadãos “nacionais” e, com isso, colocar o COI em situação delicada, tendo em vista que, mesmo sabendo-se que aquela é uma naturalização instrumental, as regras estão sendo cumpridas. Vide os casos de Slobodan Soro e Josip Vrlic, pelo Brasil.
Dentro das federações internacionais, o debate sobre a mudança de nacionalidades cresceu nos últimos anos. Jansen, Oonk & Engbersen (2018) apontam que, em fevereiro de 2017, a Federação Internacional de Atletismo suspendeu o processo de mudanças de nacionalidade, por considerar que países com alto poder financeiro estavam fazendo transferências com base apenas no poder econômico, sem levar em conta aspectos esportivos. O aspecto econômico não pode ser ignorado, mas é preciso levar em conta que as naturalizações meramente comerciais ainda representam um número pequeno. O COI é um agente importante neste sistema, mas é preciso que as federações internacionais, assim com fez a de atletismo, se posicionem e tomem a dianteira neste discurso, tendo em vista que as diferentes modalidades apresentam especificidades.
A delegação de refugiados que vimos na Rio-2016, demonstra que nem sempre é possível estar dentro de um determinado “bloco” ou caixa identitária. Muito além daqueles dez atletas, outros ali talvez estivessem competindo sob uma bandeira, mas com identificações maiores com outras. O que ocorre, por vezes, é que não se busca a identificação ideal, mas sim a possível, ou a mais oportuna. Desta maneira, talvez seja possível seguir a linha de pensamento do professor Milton Santos, que diz
Nas condições atuais, o cidadão do lugar pretende instalar-se também como o cidadão do mundo. A verdade, porém, é que o ‘mundo’ não tem como regular os lugares. Em consequência, a expressão cidadão do mundo torna-se um voto, uma promessa, uma possibilidade distante. Como os atores globais eficazes são, em última análise, anti-homem e anticidadão, a possibilidade de existência de um cidadão do mundo é condicionada pelas realidades nacionais. Na verdade, o cidadão só o é (ou não o é) como cidadão de um país. (Santos, 2000, p. 55).
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