PONENCIAS
Formar pesquisadores qualitativos em saúde sob o regime produtivista: Compartilhando inquietações
Forming researchers in qualitative health under productivism: Sharing concerns
Formar investigadores cualitativos en salud bajo el régimen produtivista: compartiendo inquietudes
Maria Lúcia Magalhães Bosi 1
1 PhD. en Ciencias de la salud, Universidad de Toronto; doctora en Salud Pública, Fundación Oswaldo Cruz; magíster en Ciencias Sociales, Universidad Federal de Río de Janeiro; especialista en curso internacional en ciencias de los alimentos y nutrición, Universidad de Wageningen; especialista en nutrición, Ministère des Affaires étrangères y en nutrición materna e infantil, Universidad Federal de Río de Janeiro; licenciada en psicología, Universidad de Fortaleza, y en Nutrición, Universidad Federal de Río de Janeiro. Correo electrónico:malubosi@ufc.br
Recibido: 27 de noviembre de 2014. Aprobado: 16 de febrero de 2015. Publicado: 20 de octubre de 2015
Magalhães Bosi ML. Formar pesquisadores qualitativos em saúde sob o regime produtivista: Compartilhando inquietações. Rev. Fac. Nac. Salud Pública 2015; 33(supl 1): S30–37. DOI: 10.17533/udea.rfnsp.v33s1a04
RESUMO
Objetivo: Analisar a formação de pesquisadores no enfoque qualitativo em saúde, sob distintas perspectivas, conferindo destaque aos impactos do regime produtivista preponderante na avaliação académica.
Método: Trabalho conceitual, explorando mediante método reflexivo, aspectos epistemológicos, éticos, políticos que, sob a ótica complexa, se conjugam. O cenário é o contexto atual do campo saúde coletiva brasileiro, tomado como ilustração do que também vem ocorrendo em vários outros países, nos quais a formação em pesquisa qualitativa em saúde sofre importantes constrangimentos ante a atual concepção de produtividade.
Resultados: No contexto social contemporâneo, os valores fundantes do produtivismo se evidenciam, não somente na academia, mas em várias esferas e espaços da vida social. Questões intrínsecas e extrínsecas ao enfoque se apresentam como desafio à formação, envolvendo problemas relativos à codificação do conhecimento; as formas de relação com a alteridade e o plano mais concreto da prática científica incluindo o acesso ao financiamento e a sustentabilidade das linhas e iniciativas de formação. Especial destaque é conferido às barreiras crescentes à publicação e aos desafios que se interpõem à inventividade, ao rigor, em um modo de produção cientifica cujo ritmo é, cada vez mais, intensificado.
Conclusão: A análise evidencia um conjunto de desafios oriundos de contradições entre a natureza, os fundamentos e valores do enfoque e os ditames avaliativos na academia. Muitas são as interrogações sobre a formação nesse enfoque específico, escassos os espaços de discussão e de troca de experiências, sem falar na escassez de literatura sobre o tema nas dimensões aqui focalizadas.
Palavras–chave: pesquisa qualitativa, formação em pesquisa, saúde coletiva, metodologia qualitativa em saúde, pesquisa em saúde.
ABSTRACT
Objective: To analyze, from different perspectives, the formation of qualitative health researchers giving special emphasis to the productivist regime and its impacts on academic assessment.
Method: conceptual construction exploring through reflective method, epistemological, ethical, political aspects which combine their aspects under a complex view. The scenario is the current context of the Brazilian collective health field, taken as an illustration of what has been happening in many other countries, where training in qualitative health research suffers major constraints due to the current conception of productivity.
Results: In the contemporary social context, the founding values of productivism are evident, not only in the academic field, but in several spheres and spaces of social life. Intrinsic and extrinsic questions are presented as a challenge to this specific training, involving problems related to encoding knowledge; forms of relation with alterity and more concrete aspects of the scientific practice including access to financial support and the sustainability of lines and training initiatives. Special emphasis is given to the barriers imposed to publishing this kind of research and the challenges that interpose inventivity, rigor, in a scientific mode of production whose pace is increasingly intensified.
Conclusion: This analysis highlights a set of challenges arising from contradictions between the nature, the foundations and values of qualitative approach and the hegemonic evaluative model in the academic setting. There are many questions about training in this specific view; spaces for discussion and exchange of experiences are quite limited, not to mention the lack of literature on the subject focused here.
Key words: qualitative research, research training, public health, qualitative methodology in health, health
RESUMEN
Objetivo: Analizar la formación de investigadores en el enfoque cualitativo en salud, bajo distintas perspectivas, confiriendo realce a los impactos del régimen produtivista preponderante en la evaluación académica.
Método: Trabajo conceptual, explorando mediante método reflexivo, aspectos epistemológicos, éticos, políticos que, bajo la óptica compleja, se conjugan.
Resultados: En el contexto social actual, los valores fundacionales de productivismo son evidentes, no sólo en el ámbito académico, sino en varias esferas y espacios de la vida social. Cuestiones intrínsecas y extrínsecas al enfoque se presentan como un desafío a la formación, involucrando problemas relacionados con la codificación; formas de relación con la alteridad y el plan más concreto de la práctica científica, incluido el acceso a la financiación y la sostenibilidad de las líneas y las iniciativas de formación. Se hace especial hincapié en las barreras a publicaciones y los retos que se interponen al ingenio, rigor, en un modo de producción cuyo ritmo es cada vez más intenso.
Conclusión: El análisis pone de relieve una serie de problemas que surgen de las contradicciones entre la naturaleza, los fundamentos y los valores del enfoque cualitativo ante el modelo evaluativo preponderante en la academia. Muchas son las preguntas acerca de la formación y limitados los espacios específicos para la discusión e intercambio de experiencias, por no hablar de la falta de literatura sobre el tema.
Palabras clave: investigación cualitativa, formación en investigación, salud pública, metodología cualitativa en salud, investigación en salud.
Introdução
A pesquisa qualitativa apresenta–se como uma tradição/ orientação cada vez mais difundida no âmbito da Saúde (Coletiva), contatando–se um incremento expressivo nas últimas décadas [1–3]. Uma rápida consulta às bases bibliográficas na saúde e aos Anais e sites de Congressos testemunha a expansão do enfoque, envolvendo tanto estudos conceituais/ epistemológicos como aproximações empíricas cobrindo uma extensa gama de objetos.
Tal ascensão, vale lembrar, não caracteriza legitimidade ou hegemonia ante os demais paradigmas que compõem o leque de pesquisas na saúde; deve ser creditada a desafios que se colocam envolvendo todas as áreas do saber, conforme os objetos de que vem se ocupando as pesquisas qualitativas evidenciam. A complexidade [4] e multidimensionalidade do fenômeno saúde humana, faz com que, simultaneamente ao avanço de soluções técnicas, busque–se uma compreensão mais profunda dos processos simbólicos, intersubjetivos, domínio dos estudos qualitativos.
Não obstante seu crescimento, o enfoque qualitativo ainda se depara com um conjunto de desafios para sua consolidação e afirmação plena do seu estatuto científico no campo da Saúde [5]. Dentre eles, um dos mais preocupantes refere–se à formação nesse enfoque. Atuando há mais de duas décadas na formação em pesquisa qualitativa (PQ) no campo da saúde (coletiva) no Brasil, meu propósito nesta explanação é, conforme anuncia o título, compartilhar reflexões, experiências e, sobretudo, inquietações concernentes a distintos planos, estabelecendo um diálogo com o cenário “produtivista” e seus impactos na formação nesse enfoque.
Consoante a “missão” subjacente ao que concebemos como “formação”, nesta análise examinaremos questões que, de um ponto de vista formal, denominamos como extrínsecas e intrínsecas ao enfoque. O cenário em que se moverá a análise é o contexto contemporâneo do campo saúde coletiva brasileiro, tomado como ilustração do que também vimos assistindo em vários outros países, de distintos continentes, nos quais a formação em PQ em saúde sofre importantes constrangimentos face ao regime produtivista, cujas características serão analisadas.
Cabe assinalar quanto ao tema da formação em PQ que muitas são as interrogações, escassos os espaços de discussão e troca de experiências, mesmo entre professores, entre alunos e entre os dois segmentos, notadamente no campo da saúde. Do mesmo modo, é absolutamente impressionante a lacuna de discussões sobre essa problemática na literatura científica e em documentos que circulam no meio acadêmico. Visitando alguns textos clássicos [6–8] apenas para ilustrar com uma pequena amostra, constata–se que muitos aspectos que até poderiam escapar a compêndios ou manuais são abordados; contudo, em nenhum deles consta “como formar”, ainda que algumas dificuldades da formação como, por exemplo, se situar em paradigma específico, sejam, pontualmente, aludidas.
Não obstante o silêncio sobre a formação em PQ em saúde, cabe reconhecer que Educação em Saúde é eixo temático em SC, dispondo de uma extensa bibliografia abordando aspectos conceituais, estudos empíricos, desenvolvimentos metodológicos vários e figurando em projetos voltados à educação médica; educação permanente; educação continuada e um sem número de outros termos e expressões circulantes nesse domínio. Entretanto, formação em PQ no campo da Saúde é um tema ausente do eixo educação em saúde.
Visitando o cenário da análise: a Saúde Coletiva Brasileira
Antes de passar à discussão do objeto específico, delinearei, em breves linhas, o campo no qual a análise se desdobrará. Longe de pretender recensear neste espaço o acúmulo de reflexões acerca da Saúde Coletiva, é preciso reconhecê–la, sobretudo, como um campo, conceito que, encontra uma definição estratégica na teoria dos campos sociais transversal à obra de Pierre Bourdieu, na qual campo corresponde a um “espaço de luta concorrencial no qual o que está em jogo são os monopólios da autoridade científica [...] e da competência científica [...] socialmente outorgadas” [9].
Ao lançar mão desse conceito, faço–o, como em outros momentos, para reafirmar a dimensão política da ciência, e do espaço no qual ela é produzida. Revelase, assim, como uma categoria analítica fortemente estratégica para entendermos a “economia interna” dos vários campos e as disputas que se expressam em debates conceituais ou metodológicos mas com reflexos decisivos nos planos político e econômico [9].
Quanto à constituição interna (epistemê) da SC, esta se fundamenta em três núcleos de saberes [10] ou espaços e formações disciplinares [11]: a Epidemiologia; Ciências Humanas e Sociais (CHS); e um terceiro domínio que — sob múltiplos rótulos — se ocupa da Política e do Planejamento ou da Planificação e da Gestão de Sistemas de Saúde.
Cabe ressaltar que a SC abriga um amplo leque temático e atrai um extenso conjunto de profissionais, de distintas origens. Se consideradas as etapas de sua consolidação, como desdobramento de projetos que a antecederam como o preventivismo e a medicina social, podemos afirmar que esse campo emerge como decorrência dos aportes das CHS aos objetos da Saúde Pública tradicional.
Não obstante esse lugar histórico das CHS na conformação do campo, a Epidemiologia persiste como o núcleo hegemônico nesse campo, na vertente descritiva, aspecto que subjaz a vários desafios com que se depara o enfoque qualitativo nesse campo. Consideradas “menos nobres”, as CHS, fundamento do enfoque qualitativo, por sua natureza guarda uma inadequação ao modelo hegemônico e ao regime produtivista, com impactos importantes na formação, conforme veremos adiante.
Assim, não obstante alianças epistêmicas e a tão propalada “natureza interdisciplinar da SC”, a presença de tensões paradigmática [10] nesse espaço representa um fenômeno de particular interesse para análises voltadas a certos desafios do enfoque qualitativo, dentre eles, a formação em PQ nesse espaço.
Podemos afirmar, concordando com vários autores [11–14] que a SC é hoje um espaço institucionalizado e cientificamente consolidado. Atualmente, conta com uma sólida rede de pós–graduação, abrangendo todas as regiões do país (ainda que com notável concentração no eixo Sul–Sudeste); cerca de 20 cursos de graduação em SC; uma forte entidade representativa do campo denominada Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), internacionalmente conhecida, contando com milhares de associados e um forte protagonismo acadêmico e no âmbito das políticas de saúde. Tal rede, assim caracterizada, sugere, à primeira vista, um elevado potencial difusor da formação metodológica, nos diferentes enfoques. Contudo, o ensino do enfoque qualitativo ainda se mostra frágil e ocasional, o que nos leva a interrogar se em um campo assumidamente interdisciplinar (trans?) tal pluralidade epistêmica se expressa na formação e como isso se relaciona com o regime produtivista.
Produtivismo: Do que estamos falando?
Ao me referir ao termo produtivismo , faço alusão a uma visão de mundo ou, se preferirmos, uma ideologia, segundo a qual a produtividade é entendida como intensificação do ritmo.
Nesse regime, que vem se instalando e se fortalecendo ao longo das últimas décadas, no Brasil e em vários outros países, o padrão–ouro a que, na academia, estamos submetidos, no que concerne ao perfil a ser atingido pelos produtores do conhecimento, se funda no maior número de publicações científicas indexadas em periódicos internacionais.
A despeito do discurso com que se reveste a SC brasileira e dos compromissos históricos que a marcam como movimento sanitário nascido em oposição à ditadura militar, o modelo de avaliação científica adotado nesse campo também tem sido o produtivista no qual a relevância social nem sempre conta ante o peso de outros parâmetros. Por conseguinte, não se valorizam devidamente produtos voltados para o sistema de saúde, aprofundando a dificuldade de apropriação das pesquisas pela sociedade, ainda que, nesse campo, sejam financiadas grosso modo com recursos públicos.
Alguns pesquisadores vem alertando para a falácia desse modelo comentando sua lógica interna, e sua nocividade levando ao desencantamento do trabalho científico e à impossibilidade de uma dedicação apaixonada [15], tanto à pesquisa quanto ao ensino, desdobrando–se no sofrimento e adoecimento dos pesquisadores [16].
Se por um lado, tal regime pode favorecer o crescimento quantitativo de publicações em alguns segmentos e mesmo elevar o fator de impacto – ainda que, por vezes, induzido por práticas questionáveis quanto à sua adequação e fidedignidade, o resultado tem sido barreiras à interdisciplinaridade e à cooperação, aprofundando o individualismo.
O processo de produção do conhecimento no regime atual marcado pela produtividade e as contradições geradas pelo ritmo veloz acarretam a desumanização das práticas na academia e a redução de relações entre pessoas a relações Eu–Isso [17], dentre outros desfechos que examinarei mais à frente. Essa intensificação do ritmo se faz, portanto, àscustas da dedicação ao ensino, já que grande parte das publicações deve ser realizada pelos mesmos pesquisadores que sustentam a produtividade dos programas, submetidos a magoantes contradições resultantes do conflito (mesmo quando cooptados pelo sistema) entre a dedicação ao ensino e a acumulação de capital (científico, econômico e social) advinda da produtividade em pesquisa. Nesse regime ensinar não é ser produtivo.
Ao colocar estas indagações, outras tantas se desdobram, configurando dilemas que se apresentam para a comunidade de pesquisadores qualitativos: Como (nos) formamos? Como formar com qualidade nesse enfoque, sob um ritmo veloz? Como expandir sem perder a qualidade? E, sobretudo, como reverter o modelo que nos oprime e sua ética específica?
O “meio de cultura” versus habilidades e valores da PQ
Ao me referir ao cenário de análise como sendo a SC brasileira, concebida como campo científico específico, precisamos, para não correr o risco de idealizar a análise ou torná–la ingênua, situar também esse cenário dentro de outro com o qual se entrelaça: refiro–me à visão de mundo contemporânea, que se capilariza no campo cientifico, mas, em verdade, domina todas as esferas da nossa vida. Só assim podemos construir uma compreensão mais balizada dos elementos que dão sustentação a esse regime.
Somos treinados para naturalizar o mundo, simplificá–lo. A ideia de certeza, controle, atrai o homem na modernidade. A mensuração e o fetiche da precisão como certeza, da média como norma, da norma como verdade [18], deslegitimam tudo aquilo que não se oferece à mensuração, como, por exemplo, os objetos de que se ocupa o enfoque qualitativo.
Nossos primeiros processos de socialização instauram um padrão que, apesar de contrariar a natureza qualitativa das nossas experiências, será, para nós, cada vez menos, estranho. Padrão que irá reger nossos hábitos e avaliar nosso desempenho e “adequação”, seja na esfera do trabalho ou de práticas singulares como se exercitar, se alimentar, ter suas escolhas e ritmos sexuais. Tudo é medido na base do número de vezes/unidade de tempo. Tal padrão favorece a tradição quantitativa, submetendo a sofisticadas operações estatísticas, tudo aquilo que se oferece à quantificação e, o que é mais grave, até mesmo experiências humanas que, por sua natureza, resistem a uma redução a mera variáveis. Contudo, o que se assiste, e incide sobremaneira na gênese do produtivismo, é a recusa à subjetividade, mesmo em domínios como a saúde humana – e o grifo importa, haja vista a visão hegemônica levar a que os objetos de ciência sejam, primordialmente, ou mesmo, exclusivamente aqueles passíveis de objetivação, mensuração, justificando intervenções fundadas nas hard sciences e seus produtos.
Do mesmo modo, na esfera da educação, da formação, os problemas tendem a ser reduzidos ao que se quantifica: “número de semestres”; “mais créditos”, “mais carga horária”. Tudo em torno de números.
Ao longo da “formação”, e Morin tem razão em sua crítica ao uso corrente desse termo [19], somos, aos poucos, “formatados”, transformados em mercadorias. Com data de vencimento. Mercadoria efêmera, exigindo para sua sobrevivência um constante esforço de adaptação, consoante as regras de cada processo produtivo.
Evidencia–se, portanto, o nexo entre o regime produtivista e a ética da sociedade de consumo, da qual o modelo avaliativo implantado na academia herda seus valores, aniquilando a duração dos, assim chamados, “produtos”, e acentuando sua efemeridade: Tanto os “produtos” científicos, quanto os próprios pesquisadores, entram na lógica/engrenagem da mercadoria sob o ritmo veloz do que Bauman [20] demarca como a sociedade de consumidores.
Desse modo, a produção científica se insere como mercadoria na lógica do consumo, não por acaso, mas pelo pertencimento histórico a uma época, com sua visão de mundo. O que vale para a sociedade de consumo, rege o movimento das mercadorias no campo científico, sob o regime produtivista. é preciso lembrar o efeito “positivo” para os que lucram nesse mercado, o que, em parte, nos ajuda a responder à seguinte indagação: Se há tanta nocividade, como explicar a permanência disso?
Por um lado, o dos “ganhadores”, o fetiche do reconhecimento e das distinções, capital simbólico que se desdobra em lucros, políticos e econômicos, sustenta o regime. De outro, o desejo de entrar nesse seleto grupo, também movimenta o mercado.
O efeito mais nefasto desse afastamento parece ser a perda da capacidade de crítica; entenda–se: dos alunos e dos docentes–pesquisadores. No campo da saúde, observase, cada vez mais, ao lado de conhecimentos empilhados, fragmentados, uma extrema dificuldade de os alunos efetuarem análises de conjuntura adequadas ao seu nível de formação, levando a uma paralisia ante o senso comum, sobretudo considerando–se o bombardeamento constante de informações que hoje circulam de forma cada vez mais eficiente e frenética. Além disso, cristalizam–se “doutrinas” que só retém o que as confirma – os “ismos” – rejeitando como erro ou ilusão o que as contraria ou não lhes é compreensível [19].
Uma vez que sob a visão de mundo hegemônica, os conteúdos fundamentais que regem nossas ações são os de base quantitativa, as ferramentas necessárias ao raciocínio crítico, território da filosofia e das ciências humanas e sociais, ficam relegadas ao plano das inutilidades.
Conclui–se, mediante os aspectos que ilustram nossa análise até aqui, que os conteúdos (e valores, habilidades correlatos) transmitidos ao longo dos ciclos pré–universitários, e, mais tarde, na universidade, quase nada aportam como base para o enfoque qualitativo e para o que se concebe como postura qualitativa: “O modelo formador nega a subjetividade como objeto e neutraliza a subjetividade do educando” [5].
Os fundamentos: paradigmas, conceitos, nomenclaturas, vertentes
Conforme vimos, a visão de mundo hegemônica leva à desvalorização, para não dizer exclusão, das CHS do elenco dos “conteúdos nobres” na formação no campo da saúde, e não só neste. Tal fenômeno favorece a hegemonia do paradigma da biomedicina, ou modelo biomédico, base da formação em saúde, exigindo, para quem deseja ingressar no enfoque qualitativo rupturas epistemológicas profundas.
Recuperando o que vimos há pouco, no lastro dos processos de formação no ensino fundamental, também o modelo biomédico, base das graduações em saúde, aprofunda o abismo existente entre os conteúdos transmitidos e valorizados pelo sistema de ensino e os fundamentos e, por extensão, os valores, que pavimentam o solo qualitativo. Dessa falta de fundamentação derivam sérios equívocos que incluem desde os conceitos mais elementares à compreensão do enfoque, passando pelas vertentes, até chegar a operações epistemológicas centrais, como é do caso da construção de informações submetida à reflexividade ou a interpretação aliada ao rigor. Um desdobramento que exemplifica os efeitos dessa precariedade de compreensão das bases epistemológicas do enfoque, ainda frequente no campo da saúde, é a ideia de que um estudo qualitativo é de mais fácil execução por não exigir cálculos ou trabalhar com amostras pequenas, e/ ou ser pouco dispendioso. Tal posição deriva, ao tempo em que a reproduz, da visão falaciosa de que estudos qualitativos são meramente descritivos, negligenciando a necessidade de rigor e de um sólido referencial teórico, incluindo sua complexidade ético–política, levando a que esse enfoque seja menos valorizado e, por conseguinte, menos publicado no campo da saúde.
Na impossibilidade de examinar aqui esses aspectos em toda a sua amplitude, comentarei apenas alguns, de modo a evidenciar a magnitude dos desafios que se impõem, a um só tempo, ao ensino e ao aprendizado do enfoque no interior do campo da saúde (coletiva).
Destaco, mais uma vez, a problemática alusiva ao que se concebe como qualitativo, mas não me alongarei neste assunto, haja vista, já ter me estendido sobre o tema, abordado em outros textos voltados à demarcação do conceito ‘qualitativo’ nesse escopo [21–22].
Passando a um segundo aspecto atinente ao uso indiscriminado de conceitos, observam–se não apenas problemas quanto o emprego intercambiável dos mesmos, como falta de clareza no que tange ao nível a que cada um faz referência [13–14]. Cabe ressaltar ainda o uso indiscriminado de: metodologia, enfoque, desenho, método, técnica, análise, dentre outros [9,23].
Tais fragilidades geram consequências nefastas como o fato de a natureza do estudo ser, muitas vezes, definida pela técnica empregada, sem o necessário fundamento epistemológico.
Finalizo este tópico com um terceiro aspecto: as frequentes disputas e a polêmica, a meu ver, infundada, qualitativo–quantitativo, já amplamente analisada na literatura [7,24,25]. Na práxis da pesquisa e nos debates o problema, a meu ver, deriva, sobretudo do fato que tais paradigmas são considerados enfoques “alternativos” para uma mesma questão, ou seja, paradigmas em disputa pelo status de approach superior.
Na sequência do que acabo de expor, deslizarei agora para um plano mais especifico já que “intrínseco” ao enfoque qualitativo, relativo à questão da codificação na pesquisa qualitativa, abrangendo desafios conceituais, bem como taxonomias e terminologias utilizadas pelos pesquisadores qualitativos em suas diversas atividades.
O tema da codificação no enfoque qualitativo merece investimentos e não pode ser excluído em uma discussão sobre formação, portanto, dirigida também a desafios pedagógicos atuais com que se depara o enfoque qualitativo. Qualquer um que se aproxime do enfoque qualitativo de pesquisa em saúde, e mesmo aqueles que frequentam esse âmbito há algum tempo, provavelmente se sentirá em meio a uma “confusão de idiomas”, tendo em vista as características da sua codificação, na qual transitam um sem número de termos, conceitos, expressões, rótulos.
É fato que o enfoque qualitativo é marcado pela interdisciplinaridade, e não deve surpreender que sua codificação seja plural, não homogênea. Contudo, cabe reconhecer serem ainda necessários investimentos e uma cuidadosa reflexão sobre o assunto, uma vez que problematizações mais densas acerca da terminologia nesse enfoque são ainda escassas na literatura, ainda que se localizem alguns registros [8,9,23].
Busquemos agora desvelar o modus operandi desse regime e examinar como esse processo, em sua práxis, afeta as iniciativas de formação de pesquisadores no enfoque qualitativo.
Produtividade científica: desfechos na formação em pesquisa qualitativa em saúde (coletiva)
Inicio este tópico retomando o critério preponderante de avaliação cientifica centrado, quase exclusivamente, no número de publicações científicas indexadas em periódicos internacionais de elevado impacto (a maioria deles editada nos países centrais). Há que assinalar o acesso desigual dos pesquisadores brasileiros no campo da saúde (e em vários outros) aos periódicos internacionais sediados nos países centrais, aspecto que se estende aos países da América Latina e a outras regiões periféricas. Mais grave ainda é a situação se considerados os distintos núcleos de saberes que compõem a saúde coletiva.
Se os veículos internacionais mais valorizados no “mercado científico” já se mostram indiferentes ou resistentes ao que escapa aos seus contextos de origem no âmbito dos estudos experimentais, clínicos e epidemiológicos, muito mais frequentes são as recusas de artigos qualitativos, sob a alegação, de falta de pertinência ao âmbito do periódico (e seu contexto) e, mais frequentemente, de pouca aplicabilidade para além de seu contexto de origem.
Acrescente–se o imperialismo do idioma inglês nos periódicos de mais alto impacto – fenômeno quase naturalizado no campo científico, mas que é construção social, sendo quase herético interrogá–lo como faço agora. Tudo deve ser publicado em inglês! Ocorre que este detalhe, decisivo para o nosso enfoque, simplesmente exige que certos estudos sejam traduzidos para outros idiomas, desconsiderando que, em muitos casos, esta é uma “missão quase impossível”, tendo em vista os repertórios culturais.
A questão das traduções é um problema ético, epistemológico e metodológico, Ou seja, um problema que impõe teorização e não um “serviço prestado” previsto nos orçamentos das pesquisas.
Pensemos no desafio que representa para estudantes em formação, e, mais que isso, na desvantagem dos seus orientadores e professores nesse enfoque no que se refere à legitimação no espaço dos programas, que exige um patamar mínimo (mais uma vez, números de artigos), quando os artigos mais valorizados no mercado da ciência só aceitam material em inglês. Evidentemente, isso impacta na formação ao servir de incentivo e expansão aos enfoques que se coadunam com esse requisito.
Acrescentem–se os limites de extensão das publicações —cada vez mais exíguos— que exigem da pesquisa qualitativa o mesmo nível de concisão do modelo da ciência biomédica. No que concerne aos periódicos que publicam pesquisa qualitativa em saúde, além de constituírem minoria nos rankings que definem as avaliações, não respondem aos parâmetros ditados pela visão de mundo da ciência dominante.
Em outras palavras, no campo da saúde (e também da saúde coletiva, a despeito de em seu discurso postular interdisciplinaridade) os rankings unificados para avaliar veículos ontologicamente distintos desqualificam os periódicos que disseminam pesquisas qualitativas. Uma rápida consulta ao elenco de revistas que divulgam a produção em SC permitirá confirmar essa assertiva.
Evidentemente, isso tem efeitos sobre a formação, tanto no que concerne à sustentabilidade de linhas qualitativas como na avaliação do percurso do aluno, não raro, submetido a um ritmo inadequado ao ensino do enfoque.
Toda essa dinâmica gera impactos também no círculo restrito dos avaliadores, originando mais um fato preocupante: avaliadores que, dada a auto reprodução do enfoque hegemônico no campo, não sabem avaliar pesquisas qualitativas o que conduz às seguintes indagações: Como vem sendo avaliada a qualidade das pesquisas qualitativas? Têm sido efetivamente avaliadas consoante os critérios de qualidade do referido enfoque? Como isso repercute na qualidade e, por extensão, na validade dos pareceres e, por conseguinte, na perpetuação da hegemonia de uma visão sobre as demais?
Quanto à agenda de Ciência & Tecnologia brasileira, que tomamos como ilustração, evidencia–se o lugar reservado à pesquisa qualitativa na concepção de ciência e de tecnologia: são quase inexistentes os temas que admitem uma aproximação qualitativa e são irrisórios os recursos se comparados a outros núcleos de conhecimentos da Saúde Coletiva. Isso vem impondo sérios limites à amplitude de estudos como, por exemplo, à realização de projetos multicêntricos e colaborativos internacionais, eventos ou cooperações com outros centros orientados por esse enfoque, aspecto que impacta na formação.
Por último, mas não menos importante: esse complexo processo para que possa existir precisa ser protagonizado; e quem o protagoniza? No caso brasileiro, e creio não ser diferente nos demais países, quem decide o destino dos recursos e quem tem ou não ‘mérito’ são os bolsistas de produtividade, e ainda mais fortemente, os poucos membros assentados nos comitês, regulados pela burocracia científica, consoante à visão de produtividade já antes comentada. Não por acaso, e evidenciando a conexão entre ciência e interesse, do total das bolsas dos estratos superiores (PQ–1), na área da Saúde Coletiva, não chega a 10% o número de bolsistas que fogem ao núcleo da Epidemiologia, sendo muito poucos os que dentre estes operacionalizam e publicam pesquisas qualitativas.
Não surpreende, portanto, que a distribuição dos recursos, em todas as modalidades, o estabelecimento de prioridades nas agendas de C & T, acompanhem a composição dos Comitês das agências, perpetuando–se um ciclo que constitui talvez um dos mais importantes desafios a serem enfrentados pelo enfoque no campo tendo em vista a amplitude das consequências. Para reverter esse cenário, um dos aspectos centrais é chegarmos às esferas decisórias, nas quais ainda somos minoria.
Conclusion
O atual regime de produtividade exclui processos fundamentais e desumaniza, desencanta a ciência, haja vista gerar interdição do encontro humano, sob o ritmo frenético da produtividade: “A ‘produtividade’ tal como atualmente concebida é profundamente nociva à interdisciplinaridade e à consecução de processos dialógicos, sobretudo em domínios complexos como a Saúde” [26].
A reversão desse cenário depende de um projeto que ofereça novas respostas e nisso se inclui necessariamente a formação de quadros: um monumental desafio para quem protagoniza o ensino deste enfoque, o que implica responder a uma série diversificada de demandas, dado não contarmos no Brasil com formações consolidadas em PQSC que possam responder às necessidades atuais, como ocorre em outros campos e em outros países. é um extraordinário desafio formar um doutor no enfoque qualitativo capaz de produzir efeitos no campo, ou seja, influenciar os mecanismos, agendas e processos específicos que operam na produção de conhecimento e nas definições relativas à pesquisa e sua difusão, ou seja, na distribuição do capital cientifico e social no campo.
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