Original article
Ricardo Bruno Santos Ferreira1
Climene Laura de Camargo2
Maria Inês da Silva Barbosa3
Maria Lúcia Silva Servo4
Marcia Maria Carneiro Oliveira5
Juliana Alves Leite Leal6
1 Enfermeiro, Mestre. Professor da Universidade do Estado da Bahia,
Brasil e Enfermeiro no Hospital do Rim de Guanambi, Bahia, Brasil.
Email: ricardobrunoenf@gmail.com.
Autor para correspondência https://orcid.org/0000-0003-0614-4817
2 Enfermeira, Doutora. Professora Titular da Universidade Federal da
Bahia, Brasil. Email: climenecamargo@hotmail.com.
https://orcid.org/0000-0002-4880-3916
3 Assistente Social, Doutora. Professora aposentada da Universidade
Federal do Mato Grosso, Brasil. Email: maria.br@terra.com.br
https://orcid.org/0000-0002-6604-284X
4 Enfermeira, Doutora. Profesora Pleno da Universidade Estadual de Feira
de Santana, Brasil. Email: mlsservo@uefs.br
https://orcid.org/0000-0003-4809-3819
5 Enfermeira, Doutora. Professora Assistente da Universidade Federal da
Bahia, Brasil. Email: marcia.carneiro@ufba.br
https://orcid.org/0000-0003-2294-0872
6 Enfermeira, Doutora. Professora adjunta da Universidade Estadual de
Feira de Santana, Brasil. Email: julileite@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0003-4744-4832
Conflictos de interés: ninguno.
Recibido: Abril 15, 2020.
Aprobado: Junio 12, 2020.
Como citar este artículo: Ferreira RBS, Camargo CL,
Barbosa MIS, Servo MLS, Oliveira MMC, Leal JAL. Implications of
institutional racism in the therapeutic itinerary of people with Chronic
Renal Failure. Invest. Educ. Enferm. 2020; 38(2):e09.
DOI: https://doi.org/10.17533/udea.iee.v38n2e09.
https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/
Abstract
Objective. To understand the implications of institutional
racism in the therapeutic itinerary of patients with chronic renal
failure (CRF) in the search for diagnosis and treatment of the disease.
Methods. Descriptive, qualitative study developed with
23 people with CRF in a regional reference hospital for hemodialysis
treatment in Northeast Brazil. Two techniques of data collection were
used: semi-structured interview and consultation to the NEFRODATA
electronic medical record. For systematization and analysis, the
technique of content analysis was used. Results. Black
and white people with CRF showed significant divergences and differences
in their therapeutic itineraries: while white people had access to
diagnosis during outpatient care in other medical specialties, black
people were only diagnosed during hospitalization. In addition, white
people had more access to private health plans when compared to black
people, which doubles the possibility of access to health services.
Moreover, even when the characteristics in the itinerary of black and
white people were convergent, access to diagnosis and treatment proved
to be more difficult for black people. Conclusion. The
study showed the presence of institutional racism in the therapeutic
itinerary of people with kidney disease in which black people have
greater difficulty in accessing health services. In this sense, there is
a need to create strategies to face institutional racism and to
consolidate the National Policy for Comprehensive Health Care of the
Black Population.
Descriptors: racismo; renal insufficiency, chronic;
health services accessibility; ethnic inequality.
Resumen
Objetivo. Comprender las implicaciones del racismo
institucional en el itinerario terapéutico de pacientes con
insuficiencia renal crónica (IRC) en la búsqueda del diagnóstico y
tratamiento de la enfermedad. Métodos. Estudio
descriptivo, cualitativo, desarrollado con la participación de 23
personas con IRC en un hospital regional de referencia para tratamiento
de hemodiálisis en el noreste de Brasil. Se utilizaron dos técnicas de
recolección de datos: entrevista semiestructurada y consulta a la
historia clínica electrónica NEFRODATA. Para la sistematización y el
análisis, se utilizó la técnica de análisis de contenido. Resultados.
Las personas negras y blancas con IRC mostraron divergencias
y diferencias en sus itinerarios terapéuticos: mientras que las personas
blancas tuvieron acceso al diagnóstico durante la atención ambulatoria
con otra especialidad médica, las personas negras solo fueron
diagnosticadas durante la hospitalización. Además, las personas blancas
tenían más acceso a planes de salud privados en comparación con las
personas negras, lo que les brindaba una doble posibilidad de acceso a
los servicios de salud. También se agrega que, incluso, cuando las
características en el itinerario de las personas blancas y negras eran
convergentes, el acceso al diagnóstico y al tratamiento fue más difícil
para las personas negras. Conclusión. El estudio
evidenció la presencia de racismo institucional en el itinerario
terapéutico de las personas con enfermedad renal, en el que las personas
negras tienen mayor dificultad para acceder a los servicios de salud. En
este sentido, es necesario crear estrategias para enfrentar el racismo
institucional y consolidar la Política Nacional para la Salud Integral
de la Población Negra.
Descriptores: racismo; insuficiencia renal crónica;
accesibilidad a los servicios de salud; inequidad étnica.
Resumo
Objetivo. Compreender as implicações do racismo institucional
no itinerário terapêutico de pacientes com insuficiência renal crônica
(IRC) na busca pelo diagnóstico e tratamento da doença. Métodos.
Estudo descritivo, qualitativo, desenvolvido com 23 pessoas com IRC em
um hospital de referência regional para tratamento hemodialítico no
Nordeste do Brasil. Foi utilizado duas técnicas de coleta de dados:
entrevista semiestruturada e consulta ao prontuário eletrônico
NEFRODATA. Para sistematização e análise utilizou-se a técnica de
análise de conteúdo. Resultados. As pessoas negras e
brancas com IRC apresentaram divergências e diferenças em seus
itinerários terapêuticos: enquanto as pessoas brancas tiveram acesso ao
diagnóstico durante o atendimento ambulatorial com outra especialidade
médica, as pessoas negras só foram diagnosticadas durante internação
hospitalar. Ademais, as pessoas brancas tiveram mais acesso a planos
privados de saúde quando comparados às pessoas negras, o que confere
dupla possibilidade de acesso aos serviços de saúde. Acrescenta-se ainda
que, mesmo quando as características no itinerário das pessoas negras e
brancas foram convergentes, o acesso ao diagnóstico e tratamento se
mostrou mais dificultado para pessoas negras. Conclusão.
O estudo evidenciou a presença de racismo institucional no itinerário
terapêutico de pessoas com doença renal, em que pessoas negras possuem
maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Nesse sentido, há
necessidade de criar estratégias para o enfrentamento do racismo
institucional e para consolidação da Política Nacional de Saúde Integral
da População Negra.
Descritores: racismo; insuficiência renal crónica;
acesso aos serviços de saúde; iniquidade étnica.
O processo de transição demográfica evidenciado na sociedade brasileira
nos últimos anos tem apresentado desafios para a gestão federal,
sobretudo no que diz respeito às novas necessidades de saúde, fruto da
mudança no perfil de morbimortalidade. Nesse contexto, houve uma redução
de óbitos por doenças infecciosas e aumento progressivo das doenças
crônicas não transmissíveis.(1) A insuficiência renal crônica (IRC) faz
parte do rol das doenças crônicas não transmissíveis que tiveram aumento
significativo em incidência e prevalência. Entende-se a IRC como o
estágio final da doença renal crônica, quando o rim não consegue manter
o equilíbrio hidroeletrolítico e os pacientes passam a necessitar de uma
terapia renal substitutiva. Trata-se de uma doença progressiva, que tem
como principais fatores de risco a hipertensão arterial sistêmica,
diabetes mellitus e o histórico familiar.(2) O tratamento pode ser
realizado a partir três modalidades terapêuticas: diálise peritoneal,
hemodiálise e transplante renal.(3) Entretanto, mesmo com a existência
do tratamento, a mortalidade dessas pessoas é alta, sendo superior a 20%
no primeiro ano de diálise.(4) Acredita-se que esse alto percentual de
óbitos no início do tratamento está relacionado às dificuldades no
acesso ao diagnóstico precoce.(3)
O aumento da incidência foi comprovado no Inquérito Brasileiro de
Diálise Crônica, onde foi constatado o aumento de 31,5 mil pacientes em
terapia dialítica entre 2012 e 2016, alcançando o total de 122 825
pessoas com IRC no final de 2016.(5) Salienta-se que esse crescimento no
acometimento da doença é evidenciado principalmente na população negra,
em que a taxa de incidência é três vezes superior quando comparada a
pessoas brancas.(6) Estudos internacionais também apontam que a
prevalência da IRC é quatro vezes maior nas pessoas de etnia africana,
quando comparada com a etnia européia.(7) Algo semelhante ao encontrado
nos Estados Unidos, onde a doença renal afeta prevalentemente
afro-americanos.(8) A problemática se estende ao transplante renal,
modalidade de terapia renal substitutiva que aumenta a qualidade de vida
dos pacientes. Quando comparados aos pacientes brancos, os
afro-americanos possuem menos da metade de chance de terem acesso a essa
modalidade terapêutica.(4)
Salienta-se que é comum verificar na literatura a existência de estudos
que discutem a prevalência da IRC e suas principais doenças de base,
como a nefropatia diabética, a partir de uma vertente exclusivamente
biológica, justificando a maior prevalência entre negros devido à
predisposição genética,(9) sem levar em consideração o agravamento do
quadro devido à precária condição de vida dessa população. Ademais, é
fundamental destacar que a IRC possui evolução agravada ou tratamento
dificultado na população negra, em consequência do racismo estruturante
que impacta nas condições de saúde desse contingente populacional.(10)
Acrescenta-se que o racismo, além de impactar nas condições de
nascimento, vida e morte de pessoas negras, opera produzindo e
reproduzindo acesso desigual a pessoas em decorrência da sua
raça/cor.(11) Com isso, ao ser institucionalizado, o racismo atua como
um determinante para o acometimento da doença, busca pelo diagnóstico e
tratamento da IRC.
Por tratar-se de uma doença progressiva e assintomática nos estágios
iniciais, o acesso amplo aos serviços de saúde deve estar presente em
todo caminho percorrido pelos pacientes para que seja possível realizar
o diagnóstico precoce e o tratamento correto. Chama-se itinerário
terapêutico (IT) esse caminho traçado pelos pacientes na busca pelo
diagnóstico e tratamento de uma determinada patologia.(12)
Acredita-se que o estudo do IT de pessoas negras e brancas com IRC pode
ser utilizado com o intuito de auxiliar as equipes de saúde que
acompanham essa população a compreender o contexto racial, social e
cultural em que esses indivíduos estão inseridos, identificar fatores
que facilitam e/ou dificultam o acesso aos serviços de saúde de cada
grupo, visando contribuir para a tomada de decisões quanto às abordagens
adotadas em diferentes linhas de cuidado. Nesse sentido, o estudo tem
como objetivo compreender as implicações do racismo institucional no
itinerário terapêutico de pacientes com insuficiência renal crônica na
busca pelo diagnóstico e tratamento da doença.
O estudo se configura como um produto da dissertação de mestrado do
primeiro autor do estudo intitulada “Implicações do racismo no acesso de
pessoas com insuficiência renal crônica aos serviços de saúde”,
desenvolvida em 2019 no Programa de Mestrado Profissional em Enfermagem
(MPE) do Departamento de Saúde da Universidade Estadual de Feira de
Santana (UEFS), Bahia, Brasil. Como caraterística do MPE, as
inquietações com a temática emergiram da realidade vivenciada na
assistência a pessoas com IRC, cuja maioria é de raça/cor negra.
Trata-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa, desenvolvido
em um hospital de referência regional para o tratamento hemodialítico,
localizado em um município da região nordeste do Brasil. A referida
unidade hospitalar é uma instituição de direito privado, conveniada ao
Sistema Único de Saúde (SUS) e planos de saúde privado. O serviço atende
pessoas com diagnóstico de insuficiência renal aguda e crônica, além de
realizar acompanhamento conservador para pacientes com DRC em fase não
dialítica.
Participaram do estudo 23 pessoas com diagnóstico de IRC, com idade
superior a 18 anos, que realizam tratamento hemodialítico na
instituição. Foram excluídas as pessoas com diagnóstico de insuficiência
renal aguda e as pessoas com doença renal crônica em fase não dialítica.
A coleta de dados ocorreu nos meses de junho e julho de 2019. Os
pacientes foram abordados na sala de espera de forma aleatória, antes da
realização do tratamento, onde foi apresentado o estudo e após
assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) foi
realizada a entrevista. Foram utilizadas duas técnicas para coleta de
dados: entrevista e consulta a dados secundários através do prontuário
eletrônico.
Para tanto utilizou-se dois instrumentos de coleta de dados: entrevista
semiestruturada acompanhada de um roteiro, contendo questões fechadas
acerca de aspectos sociodemográficos e questões abertas relativas ao
objeto estudado e um roteiro para apreensão das informações clínicas nos
prontuários. No que tange a caracterização sociodemográfica dos
participantes, buscou-se informações sobre: sexo, raça/cor,
escolaridade, renda, recebimento de benefícios sociais, forma de entrada
no serviço de nefrologia e acesso ao tratamento conservador. Para as
entrevistas, as questões norteadoras foram: conte-me o que aconteceu com
você até descobrir que possuía insuficiência renal crônica; descreva as
facilidades e dificuldades enfrentadas para o acesso ao diagnóstico e
tratamento. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra para
análise do seu conteúdo.
A coleta de dados foi finalizada quando se atingiu a saturação empírica
das informações. Após as transcrições, as entrevistas foram devolvidas
aos participantes para comentários e/ou correções. A fim de garantir o
rigor na pesquisa qualitativa, adotou-se o check list da pesquisa
qualitativa em todas as etapas dos 32 itens presentes nas diretrizes do
Consolidated Criteria For Reporting Qualitative Research (COREQ). Os
dados foram organizados em dois quadros a partir da raça/cor
autodeclarada: negros e brancos. Em seguida, foi elaborado um quadro
comparativo do itinerário entre os grupos, organizados a partir das
convergências, divergências e complementariedades para que fosse
possível apreender as manifestações do racismo e suas implicações no
itinerário terapêutico dos pacientes. Essa sistematização obedeceu às
características da proposta de análise de conteúdo, sendo tratados a
partir das etapas de: pré-análise com a transcrição e leitura flutuante
das entrevistas; exploração do material com a codificação e estruturação
das convergências, divergências e complementariedades; e tratamento dos
resultados com a construção de inferências e confronto com a literatura
existente.
O estudo atendeu aos preceitos éticos, com respeito à autonomia dos
entrevistados, confidencialidade dos dados e aceite em participar do
estudo por meio da leitura e assinatura do TCLE. Para garantir o
anonimato, os participantes foram identificados pela letra “E”, seguida
de um número crescente, de acordo a ordem da entrevista e sua respectiva
raça/cor autodeclarada. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética
e Pesquisa da UEFS com CAAE 90202618.0.0000.0053.
Dentre os 23 participantes do estudo, 52.2% eram mulheres, 52.8% se
autodeclararam brancos e 48.2% negros. Com relação à escolaridade, 25%
os pacientes brancos cursaram o ensino superior, enquanto apenas 9.1%
dos negros tiveram acesso à universidade. No que se refere à renda,
81.8% das pessoas eram negras e 66% das pessoas brancas tem renda de até
1 salário mínimo (US$ 235 dólares = R$ 1045 reais). Além disso,
apenas 18,2% dos participantes negros não recebem o benefício de
prestação continuada destinada a pessoas de baixa renda, contrastando
com 41,7% de pessoas brancas que não recebem o benefício.
No que tange à forma de entrada no serviço de nefrologia, 81.8% das
pessoas negras foram encaminhadas após agudização dos sintomas e
internação hospitalar, enquanto 58.3% das pessoas brancas foram
encaminhadas pela atenção ambulatorial (Estratégia de saúde da família,
tratamento conservador ou outra especialidade médica). Destaca-se ainda
que, dentre a assistência ambulatorial, apenas pessoas brancas tiveram
acesso ao acompanhamento na ESF (8,3%) e ao tratamento conservador
(50%), que se trata do acompanhamento ambulatorial com equipe
especializada de nefrologia antes do início da hemodiálise.
A partir das entrevistas foi evidenciado que pessoas com características
raciais distintas possuem itinerário terapêutico distinto. A Tabela
1, descrita abaixo, apresenta de forma sistematizada os aspectos
do conteúdo das falas das pessoas negras e brancas, estruturadas a
partir das convergências, divergências e diferenças das falas.
Tabela 1. Sistematização do itinerário
terapêutico de pessoas negras e brancas com IRC
Convergências |
1-Assistência a partir da exacerbação dos sintomas. 2-A insuficiência renal crônica como doença secundária. 3-Inexistência da atenção básica no itinerário terapêutico. 4-Presença do setor privado na busca pelo diagnóstico. |
Divergências |
1-Realização de tratamento conservador exclusivamente por pessoas brancas. 2-Acesso a planos privados de saúde exclusivamente por pessoas brancas. |
Diferenças |
1-Acesso ao diagnóstico a partir do atendimento em outra especialidade: pessoas brancas no atendimento ambulatorial e pessoas negras no intra-hospitalar. |
A partir do quadro de análise, emergiram duas categorias analíticas: 1)
A fragmentação da assistência e o racismo implicado nas convergências da
peregrinação de pessoas com insuficiência renal; 2) As divergências e
diferenças no itinerário terapêutico de pacientes negros e brancos e o
racismo materializado na falta de acesso às pessoas negras.
A fragmentação da assistência e o racismo implicado nas
convergências da peregrinação de pessoas com insuficiência renal
A busca pela assistência perpassa pela representação que os grupos
possuem sobre o significado de saúde.(13) Sendo assim, o fato das
pessoas negras e não negras buscarem assistência a partir da exacerbação
dos sintomas representa, em partes, uma possibilidade limitada de cuidar
da saúde, onde a procura por cuidado curativo ocorre em detrimento do
preventivo. Podemos afirmar, diante das falas, que a busca por serviços
voltados para a promoção da saúde e prevenção da doença é algo que foge
do rol de valoração desta população, considerando que somente em
momentos de real necessidade (situações de urgência e emergência) o
serviço de saúde é procurado.
Ademais, tanto o fato da descoberta da IRC ter sido realizada a partir
do tratamento de uma doença secundária, quanto à busca pela assistência
ter ocorrido no momento da agudização dos sintomas aponta para a
inexistência da atenção primária como parte integrante do itinerário
terapêutico dos pacientes de negros e brancos. Cabe salientar, que
segundo a portaria 389 de 13 de março de 2014, a Estratégia de Saúde da
Família (ESF) tem a responsabilidade de desenvolver ações de prevenção
dos fatores de risco relativos à IRC, realizar diagnóstico precoce e
fazer o encaminhamento para rede de cuidado especializado quando
diagnosticada. Além disso, cabe à ESF definir os critérios para
organização do cuidado às pessoas com IRC.(14) Nesse sentido,
acreditamos que a ausência da ESF no itinerário impacta de forma mais
significativa na assistência às pessoas negras, uma vez que esse público
apresentou maior vulnerabilidade econômica e menos anos de estudo,
constatada na descrição sóciodemográfica, o que implica em menor
possibilidade de acesso aos serviços de saúde.
Acreditamos que a inexistência da ESF no itinerário dos pacientes
impacta de forma negativa na busca pela consolidação da Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). A PNSIPN chama a
atenção para as doenças prevalentes na população negra, sobretudo a
diabetes mellitus e a hipertensão arterial sistêmica, principais causas
da IRC e que deveriam ser acompanhadas pela atenção básica.(15) Os
pacientes negros e brancos, ao buscarem assistência à saúde apenas
quando iniciam os sintomas urêmicos como dor abdominal, náuseas e
vômito, podem estar demonstrando que desconhecem a atuação da ESF como
referência de entrada no SUS, e/ou que não têm acesso a este serviço,
e/ou demonstram que ainda não superamos o modelo de atenção anterior ao
SUS, pautado na busca meramente curativa, hospitalocêntrica e centrada
na figura médica. Entretanto, tais constatações não explicam a essência
dos achados. Afinal, concordamos com Marx quando fala que os fenômenos e
acontecimentos são simples projeções do real, o que foi chamado por
Kosik(16) de pseudo-concreticidade. A busca pelo concreto perpassa então
pelo questionamento fundamental: por que após trinta anos da construção
do SUS, ainda não superamos o modelo hegemônico hospitalocêntrico de
atenção às pessoas, independentemente de sua raça/cor?
Acredita-se que a explicação da realidade perpassa pela presença do
setor privado na busca pelo diagnóstico. Apesar de serem postas como
complementares, os interesses do sistema público e privado parecem ser
antagônicos em várias de suas nuances, o que afeta o acesso e a
assistência à saúde de pessoas negras e brancas. Isso ocorre por que no
capitalismo, a saúde apresenta contraditoriamente duas faces, tanto como
direito, quanto como mercadoria para geração de lucro na iniciativa
privada. Diante disso, corrobora-se com Mészaros(17) quanto pontua que o
modo de produção capitalista afeta e influencia todos os setores da
sociedade, integrando as pessoas, independentemente de sua raça/cor, a
uma ordem maior.
Essa ordem superior busca uma acumulação intensa de todos os bens
socialmente produzidos, incluindo a saúde, para manutenção de poder da
classe dominante, em face à dependência e exploração dos dominados.
Sendo assim, a presença do setor privado de maneira importante no
itinerário terapêutico das pessoas brancas e negras com IRC mostra que o
capitalismo, transvestido de serviço privado, se reorganizou após a
Constituição de 1988 para atuar de forma paralela ao SUS: enquanto um
busca a universalidade, integralidade e equidade, a outro age para
geração de riquezas.(18)
Além disso, a presença do setor privado demonstra, intrinsecamente, o
quanto é complexo o processo de alienação das pessoas, uma vez que se
criou um fetichismo no imaginário social, independente da raça/cor, que
caracteriza o serviço privado como eficiente, rápido e resolutivo,
enquanto SUS é representado por filas nos hospitais e dificuldades no
acesso. Entretanto, as falas dos participantes mostram que, ainda que
exista a presença do setor privado no itinerário de pessoas brancas e
negras, as pessoas negras só foram diagnosticadas quando os sintomas
foram evidentes, o que mostra que o acesso ao diagnóstico foi mais
difícil para esse público. Nesse sentido, percebe-se que mesmo nas
convergências, é possível identificar marcas do racismo institucional e
iniquidade.
As divergências e diferenças no itinerário terapêutico de
pacientes negros e brancos e o racismo materializado na falta de
acesso às pessoas negras
Apesar de o racismo estar presente nas convergências, acredita-se que é
a partir das divergências e diferenças no itinerário terapêutico que se
pode identificar de forma mais expressiva a materialização do racismo
institucional. A discriminação racial na saúde ocorre de forma sutil,
pouco percebida e de difícil visibilidade. Está implicado nos processos
organizativos, que acarretam na dificuldade de acesso, na negligência
que resultam em resultados desiguais, algo evidenciado no itinerário
distinto entre os grupos de raça/cor negra e não negra.(10)
Nessa categoria, observa-se que o acesso exclusivo por pessoas brancas
ao tratamento conservador e aos planos privados de saúde facilitou o
acesso ao diagnóstico precoce e melhor qualidade de vida. Apesar dos
participantes, de maneira geral, apresentarem a IRC como doença
secundária, os autodeclarados como negros não realizaram acompanhamento
de rotina com outras especialidades antes do início da hemodiálise,
enquanto que os autodeclarados como brancos realizaram acompanhamento
ambulatorial com inúmeras especialidades como cardiologia e ginecologia,
o que facilitou o acesso deste grupo ao diagnóstico da IRC. Além disso,
mesmo apresentando sintomas e com condições financeiras para pagar
consultas privadas (representado pela fala de E7), as pessoas negras
necessitaram da internação hospitalar para serem diagnosticados com IRC,
diferentemente das pessoas brancas que foram diagnosticadas em consultas
ambulatóriais.
Ademais, as pessoas brancas foram às únicas que tiveram acesso aos
planos privados de saúde, o que possibilita a não dependência exclusiva
do setor público. O acesso aos planos de saúde está diretamente
relacionado com a capacidade financeira das pessoas, seja pelo poder
econômico ou pela estabilidade no emprego público com direito ao plano
de saúde. A oferta público-privada foi discutida por Pilotto e
Celeste,(19) que constataram que a dupla possibilidade de oferta
favorece as pessoas que possuem plano de saúde privado, o que pode gerar
desigualdade e iniquidade frente aqueles que possuem apenas o sistema
público como horizonte de acesso. Logo, se as pessoas negras não tem
acesso aos planos privados, seu acesso ao diagnóstico é mais difícil,
quando comparado às brancas.
Segundo dados publicados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, em
agosto de 2019 o setor contabilizou 47.332.911 de beneficiários de
planos privados de assistência médica, o que corresponde a
aproximadamente 22.5% da população, com maior cobertura nas regiões sul,
sudeste e centro-oeste.(20) Nota-se assim que ter acesso aos planos
privados de saúde é um privilégio alcançado por pequena parcela da
população, o que reforça a percepção de tratar-se de um privilégio que
poucos têm acesso. Acrescenta-se ainda, segundo o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, que em 2016, 75% da população mais pobre no
país pertencia à raça/cor negra.(21) Nessa perspectiva, pode-se inferir
que a população negra brasileira, por encontrar-se inserida
majoritariamente no grupo de menor poder aquisitivo, tem maior
dificuldade de acesso aos planos de saúde privados. Nesse sentido, é
possível constatar que esta população depende exclusivamente do Estado
para garantir o acesso aos bens socialmente produzidos, dentre eles a
assistência à saúde.
Segundo Marx e Engerls(22) o Estado tem função primordial de manutenção
do status quo, ou seja, criar normas, leis e organizar a sociedade para
reduzir as tensões sociais, mantendo o poder sob o controle de uma
parcela pequena da população. O Estado dificilmente consegue funcionar
como instrumento garantidor de direitos na sua plenitude, o que
indiretamente naturaliza a desigualdade. Ademais, é imprescindível
mencionar que o sistema atual é baseado no neoliberalismo, que tem como
preceitos a desregulamentação da economia, redução do Estado e dos
direitos sociais e ampliação das privatizações, o que na prática
sucateia o SUS.(23)
Vale ressaltar ainda, que diferentemente dos negros que iniciaram o
tratamento da IRC por via intra-hospitalar, parcela significativa das
pessoas brancas tiveram acesso ao tratamento conservador, que é
realizado por aqueles foram diagnosticados precocemente, algo
fundamental para garantia da qualidade de vida e preparação para início
da terapia renal substitutiva. Através do tratamento conservador, as
pessoas fazem acompanhamento com equipe multidisciplinar: médicos
especialistas, enfermeiros, nutricionistas, psicólogo e assistente
social. Com isso é possível retardar a progressão da doença e
melhorar o desfecho no tratamento dialítico através do controle das
comorbidades, da prescrição de dietas e medicamentos e escolher a melhor
opção terapêutica para a fase final da IRC.(24)
Acrescenta-se ainda que através do tratamento conservador, o paciente é
preparado psicologicamente para a dependência do tratamento, além de ser
possível a confecção do acesso vascular para hemodiálise, evitando
realização de procedimentos cirúrgicos de urgência mais invasivos.(24)
Nesse aspecto, a falta de acesso de pessoas negras ao tratamento
conservador impactou no tratamento e na qualidade de vida dessas
pessoas, com precipitação do início na terapia dialítica devido à falta
de orientação para controle da progressão da doença.
A partir desta constatação, é possível afirmar que o racismo se
configura em um sistema que estrutura e determina as oportunidades,
impactando negativamente nas condições de saúde do povo negro.(25) A
problemática não se resume ao subdesenvolvimento do Brasil, uma vez que
o racismo também tem sido discutido como um fator importante de
morbimortalidade de negros nos Estados Unidos e Reino Unido.(26)
Destarte, constata-se também que o racismo é um determinante social em
saúde presente em diversos países com características culturais e
econômicas diferentes.(27)
Conclui-se que o racismo institucional está presente no itinerário
terapêutico de pessoas com doença renal, em que a pessoa de raça/cor
negra possui maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde,
impactando negativamente no diagnóstico precoce e tratamento da IRC.
Além disso, as pessoas brancas apresentaram dupla possibilidade de
assistência através do setor público e privado, o que possibilita
melhores condições de tratamento.
Entretanto, a transformação da realidade extrapola a constatação da
existência do racismo. Por se tratar de uma estrutura hegemônica,
acredita-se que o enfrentamento do racismo institucional envolve
articulação política macro e microorganizacional. No cenário
macroorganizacional é necessária a atuação articulada dos gestores
municipais, estaduais e federal para superação do modelo
hospitalocêntrico, fortalecimento da atenção básica e busca pela
consolidação da PNSIPN. Ademais, é necessária a estruturação de uma nova
política econômica que auxilie na proteção desse grupo, ao mesmo tempo
em que contribua para que pessoas negras passem a ocupar a estrutura de
poder decisório do Estado.(12) Isso requer, direta e indiretamente,
maior acesso à renda, educação e trabalho. Já no cenário
microorganizacional é necessário articulação com as organizações
sociais, como o movimento negro, com vistas a implementar estratégias de
valorização dos aspectos culturais, ampliação dos canais de escuta,
identificação e denúncia das manifestações diretas e indiretas do
racismo.
É nesse contexto microorganizacional que o presente estudo se enquadra.
A partir dos resultados apresentados foi possível constatar que o
racismo institucional impacta negativamente na saúde da população negra.
Para enfrentamento desta questão, faz-se necessário a união de forças
dos gerentes dos serviços, dos profissionais e dos usuários na busca de
mudança desse paradigma. Ademais, o estudo, além de dar subsídios a
esses grupos, poderá contribuir para o treinamento contínuo dos
profissionais de saúde com vistas na transformação das práticas
cotidianas, na redução da negligência às pessoas negras e na diminuição
das iniquidades.
Referências
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