Original article

Interface entre saúde das mulheres e violência na formação de enfermeiros no Brasil

Interface between women’s health and violence in the training of nurses in Brazil

Interface entre saúde das mulheres e violência na formação de enfermeiros no Brasil



Francisca Tamiris Pereira de Souza 1,7  
Caik Ferreira Silva2,7  
Felice Teles Lira dos Santos Moreira3,7
Regiane Clarice Macedo Callou4,7 
Jameson Moreira Belém5,7 
Grayce Alencar Albuquerque6,7 


1 Enfermeira, Graduada. Email: tamirespereira2@hotmail.com        https://orcid.org/ 0000-0001-6447-0974
2 Enfermeiro, Mestrando. Email: caik17ferreira@gmail.com         https://orcid.org/ 0000-0003-0307-8172
3 Enfermeira, Mestra. Email: felicelira@hotmail.com       https://orcid.org/0000-0002-1979-5232   
4 Enfermeira, Mestra. Email: regiane_clarice@hotmail.com       https://orcid.org/ 0000-0002-1882-9365
5 Enfermeiro, Mestre. Email: jam.ex@hotmail.com       https://orcid.org/ 0000-0003-1903-3446
6 Enfermeira, Doutora. Professora. Email: geycyenf.ga@gmail.com  Autora correspondiente          https://orcid.org/ 0000-0002-8726-0619
7 Universidade Regional do Cariri - URCA, Crato-CE, Brasil

Conflictos de interé: Nenhum.

Recibido: Agosto 28, 2020.

Aprobado: Febrero 15, 2021.

Cómo citar este artículo: Souza FTP, Silva CF, Moreira FTLS, Callou RCM, Belém JM, Albuquerque GA. Interface between women’s health and violence in the training of nurses in Brazil. Invest. Educ. Enferm. 2021; 39(1):e06

DOI: https://doi.org/10.17533/udea.iee.v39n1e06

 
https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0


Abstrat

Objective
. To analyze the theoretical interfaces of violence against women in the nursing undergraduate curricula of public Higher Education Institutions in Brazil. Methods. Documentary and descriptive study with a qualitative approach. The documentary search happened through the access to the E-mec website for the identification of public Higher Education Institutions for undergraduate nursing degree in Brazil. The menus available online from educational institutions that contained the terms “woman” and “violence” were analyzed. Data processing took place using the IraMuTeQ software, and they were analyzed using the Descending Hierarchical Classification technique. Results. The analysis by the software resulted in an important degree of utilization (72.95%), since, of the 244 segments of texts from the menus, 178 were retained. The analysis by the Descending Hierarchical Classification resulted in four thematic categories: Violence against women as a pathological process linked to sexual and reproductive health; Women’s Health: Care, epidemiological, social and cultural aspects; Gender as an analytical category; and Children’s and Adolescents’ Care. Conclusion. It was found a connection between the terms “woman” and “violence” to the sexual and reproductive aspects of women (physiological and pathological natures) susceptible to intervention; however, the gender approach is recognized as an analytical category for understanding the vulnerabilities of the female audience to illness and violence.

Descriptors: women's health; women; violence; nursing; nursing education.


Resumen

Objetivo.
Analizar las interfaces teóricas de la violencia contra la mujer en los planes de estudios de pregrado en enfermería de las instituciones públicas de educación superior en Brasil. Métodos. Estudio documental descriptivo con abordaje cualitativo. La búsqueda documental se realizó a través del acceso al sitio web E-mec para la identificación de instituciones públicas de educación superior para pregrado en enfermería en Brasil. Se analizaron los menús disponibles en línea de las instituciones educativas que contenían los términos "mujer" y "violencia". El procesamiento de los datos se llevó a cabo mediante el software IraMuTeQ y se analizó mediante la técnica de Clasificación Jerárquica Descendente. Resultados. El análisis por el software resultó en un grado importante de utilización (72.95%), ya que, de los 244 segmentos de textos de los menús, se retuvieron 178. El análisis por la Clasificación Jerárquica Descendente mostró cuatro categorías temáticas: violencia contra la mujer como proceso patológico vinculado a la salud sexual y reproductiva; salud de la mujer: aspectos asistenciales, epidemiológicos, sociales y culturales; género como categoría analítica y Atención a la Niñez y Adolescencia. Conclusión. Hubo una conexión entre los términos "mujer" y "violencia" con los aspectos sexuales y reproductivos de las mujeres (de naturaleza fisiológica y patológica) sujetas a intervención, sin embargo, el enfoque de género se reconoce como una categoría analítica para comprender las vulnerabilidades de las mujeres a la enfermedad y la violencia.

Descriptores: salud de la mujer; mujer; violencia; enfermería; educación en enfermería.


Resumo

Objetivo.
Analisar nos currículos de graduação em enfermagem de Instituições de Ensino Superior públicas no Brasil as interfaces teóricas do tema violência contra as mulheres. Métodos. Estudo de análise documental, descritivo, com abordagem qualitativa. A busca documental ocorreu por meio do acesso ao site E-mec para identificação de Instituições de Ensino Superior públicas de graduação em Enfermagem no Brasil. Foram analisadas as ementas disponíveis online das instituições de ensino que continham os termos "mulher" e "violência". O processamento dos dados se deu no software IraMuTeQ e foram analisados pela técnica de Classificação Hierárquica Descendente. Resultados. A análise pelo software resultou em importante grau de aproveitamento (72.95%), visto que, dos 244 segmentos de textos oriundos das ementas, foram retidos 178. A análise pela Classificação Hierárquica Descendente resultou em quatro categorias temáticas: Violência contra as mulheres como processo patológico vinculado à saúde sexual e reprodutiva; Saúde das Mulheres: Aspectos assistenciais, epidemiológicos, sociais e culturais; Gênero como categoria analítica e Atenção à Criança e Adolescentes. Conclusão. Constatou-se uma conexão dos termos "mulher" e "violência" aos aspectos sexuais e reprodutivos das mulheres (de cunho fisiológico e patológico) passíveis de intervenção, contudo, a abordagem de gênero é reconhecida como categoria analítica para a compreensão das vulnerabilidades do público feminino ao adoecimento e à violência.

 
Descritores: saúde da mulher; mulheres; violência; enfermagem; educação em enfermagem.


Introdução


A Organização Mundial da Saúde (OMS) conceitua violência como atos deflagrados com uso intencional da força ou poder propriamente dito ou em ameaça, contra si próprio, outra pessoa ou grupo que acarrete ou resulte em lesão, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento, privação e morte.(1)

Este agravo se expressa de distintas formas, especialmente nos indivíduos vulneráveis, que possuem seus direitos sociais reduzidos ou vetados a serviços e neste cenário se insere a violência contra a mulher, considerada preocupante e complexo problema social e de saúde pública, posto o feminicídio, as incapacidades físicas deixadas na mulher em situação de violência e os problemas psicológicos com potencial incapacitante. De acordo com a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, Brasil, configura-se violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família e em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.(2)

Este fenômeno é resultado dos constructos e desigualdades de gênero estabelecidos nas diversas instituições e relações sociais entre os sujeitos, que acabam sendo responsáveis por reproduzir valores patriarcais, nos quais homens ocupam espaços privilegiados, legitimando e naturalizando a violência contra a mulher. As concepções de gênero implicam na superioridade de um sexo sobre o outro, sobretudo nos espaços privados, em que estrutura-se o exercício de poder de homens sobre mulheres e muito embora as relações de gênero tenham se modificado ao longo dos anos, a violência contra mulheres ainda persiste na sociedade assentada nessa dinâmica social de naturalização de diferenças sexuais justificarem os papeis atribuídos a cada sexo.(3)

No cenário internacional, os indicadores de violência contra a mulher são preocupantes. Estudo realizado pela OMS sobre estimativas de prevalência de violência contra a mulher por parceiro íntimo e violência sexual, com dados globais de 79 países e dois territórios, revelaram que em todo o mundo, quase um terço (30%) de todas as mulheres já sofreram violência física e /ou sexual por parceiro íntimo, sendo que em alguma regiões esse valor chega a ser 38%; 7% das mulheres já foram sexualmente violentadas por alguém que não era seu parceiro íntimo e 38% de todos os assassinatos de mulheres foram cometidos por parceiros íntimos.(4)

Destaca-se que neste cenário, o Brasil ocupa um patamar preocupante. De acordo com o Atlas da Violência (2020), no ano de 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,3 homicídios para cada 100 mil mulheres.(5) O mesmo levantamento aponta que entre 2008 a 2018 houve aumento de 4,2% nos assassinatos de mulheres e em alguns estados, a taxa de homicídios em 2018 mais do que dobrou em relação a 2008. Inquérito realizado pelo Instituto de Pesquisa DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência no ano de 2017, com 1.116 brasileiras, revelou aumento do percentual de mulheres que declararam ter sido vítimas de algum tipo de violência perpetrada por um homem, sendo que esse percentual passou de 18%, em 2015, para 29%, em 2017, em que a violência física foi a mais perpetrada (67%), seguida da psicológica (47%), moral (36%) e sexual (15%).(6)
 
De forma a reduzir esse fenômeno e seus impactos, marcos importantes tem se consolidado no Brasil. Destacam-se a promulgação da Lei Maria da Penha e a criação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que objetivam reduzir números e sequelas dos atos violentos. A Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres, discorrendo sobre sua tipologia, medidas integradas de prevenção, da assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, do atendimento pela autoridade policial, das medidas protetivas de urgência, da assistência jurídica e da equipe de atendimento multidisciplinar.(2) Já a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres tem como objetivo estabelecer conceitos, princípios, diretrizes e ações de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres, bem como, assistência e garantia de direitos, conforme normas e instrumentos internacionais de direitos humanos e legislação brasileira.(7) Entretanto, para consolidação desses dispositivos no enfrentamento da violência, faz-se necessário atuação intersetorial, com importante destaque ao setor saúde.(2,7).

O Ministério da Saúde (MS), em Acordo de Cooperação Técnica com o Ministério da Justiça, reforça que os profissionais de saúde, por estarem em posição estratégica para detectar e identificar fatores de risco, devem estar capacitados para diagnosticar, tratar e contribuir para a prevenção da violência5 e nessa perspectiva, recomenda-se que os profissionais de saúde estejam qualificados para lidar com as diferentes formas de manifestação deste agravo e prestação da assistência. Enfatiza-se assim, a importância de se ter uma formação que aborde temáticas transversais voltadas a discussão da violência, saúde e gênero nos currículos de graduação dos profissionais de saúde. Esta condição se faz necessária, visto que estes sentem-se incapazes de atuar diante da assistência à mulheres em situação de violência, havendo em sua maioria, medicalização das consequências do agravo, negligência de cuidados e quebra de confidencialidade.(8) Esse fenômeno é, em parte, resultado da não abordagem da temática nos processos de formação dos profissionais.

Neste contexto, se insere a categoria enfermagem, composta por enfermeiros/as, técnicos/as e auxiliares de enfermagem que, em conjunto, constitui elevada força de trabalho atuando no campo da saúde no Brasil e inseridos no Sistema Único de Saúde (SUS) e que muitas vezes, não encontram-se preparados para enfrentamento à violência contra a mulher. Estudo realizado com 21 profissionais da atenção primária à saúde no Rio Grande do Sul, dentre eles, enfermeiros/as, revelou que existem limitações para identificação da violência contra a mulher, dentre elas, silenciamento, negação e não reconhecimento do agravo, ausência de queixas por parte das mulheres, falhas e despreparo da equipe de saúde para atuação e receio pela presença do agressor.(8) Em outra pesquisa, conduzida com 17 enfermeiras que atuavam em Unidades Básicas de Saúde de um município do interior do Rio Grande do Sul, revelou em um contexto de violência, as profissionais apontam limitações como falta de capacitação profissional para o enfrentamento do agravo, sentimento de despreparo, falta de tempo em virtude da carga elevada de trabalho, dificuldades para reconhecer e lidar com a violência, baixa atuação da rede de atendimento e impotência profissional.(9)

Tais dados revelam a dificuldade dos/as enfermeiros/as em assistir mulheres em situação de violência e abordar questões de violência em suas práticas. Desta forma, o estudo em tela parte do seguinte questionamento: a formação acadêmica nos cursos de graduação em enfermagem de Instituições de Ensino Superior públicas no Brasil contempla em seus componentes curriculares aspectos relativos ao tema violência contra as mulheres, para reconhecimento e enfrentamento da problemática?

Desse modo, o referido estudo objetivou analisar nos currículos de graduação em enfermagem de Instituições de Ensino Superior públicas no Brasil as interfaces teóricas do tema violência contra as mulheres. O alcance deste objetivo permitirá a identificação de possíveis lacunas e/ou potencialidades do ensino de enfermagem nesta perspectiva. Destaca-se que identificadas e corrigidas possíveis lacunas neste cenário, se contribui para o alcance do objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS) nº 05 - alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas, listado dentre os 17 ODS da Agenda 2030 proposto pela Organização das Nações Unidas.(10) Neste sentido, se prevê ações para redução/enfrentamento da violência contra as mulheres e a integração sistemática da perspectiva de gênero na implementação da Agenda é crucial. Assim, as Instituições de Ensino Superior (IES) devem estar comprometidas na resposta aos objetivos desta agenda, por meio de ações de ensino, extensão e pesquisa, uma vez que por meio destas se dá a formação de recursos humanos qualificados para a efetiva transformação a que esta agenda se propõe.


Métodos


Estudo descritivo, com delineamento documental e abordagem qualitativa, realizado nos meses de setembro e outubro de 2019, a partir do levantamento de IES públicas em Enfermagem no Brasil, por meio do acesso ao site do E-mec, um sistema eletrônico que possibilita acompanhar o processo de regulamentação das IES.(11) A busca no site supracitado ocorreu por meio da identificação das IES (e seu quantitativo) que contemplavam o curso de enfermagem e, posteriormente, com busca online nos sites das referidas instituições de ensino procurando-se identificar a existência de Projetos Político-Pedagógicos (PPP), matrizes curriculares e fluxogramas de curso. Estabeleceu-se como critério de inclusão das IES no estudo, a disponibilidade online dos referidos materiais nos sites institucionais, sendo excluídas as IES que não as apresentavam em suas plataformas. Após a identificação destes documentos, aqueles disponíveis online foram analisados quanto à busca por disciplinas que apresentassem os termos "mulher" e "violência", sendo selecionadas para análise, àquelas com presença dos dois termos.

Para a extração dos dados destas ementas, os autores adotaram um instrumento que permitiu a apreensão de informações referentes à localização das IES, disciplina, objetivos e conteúdo abordado. Após extração dos dados, as informações foram organizadas no programa Libre Office Writer, versão 5.3, em que foi realizada a preparação do material por meio de novas leituras, correções e decodificação da variável fixa. A codificação exposta diz respeito ao número de universidades na qual foram encontradas os termos pesquisados, como pode-se citar *UNE - 01 (...) (Universidade de Enfermagem). Os dados extraídos referentes à caracterização das IES foram tabulados em planilhas do Microsoft Office Excel versão 2010 e apresentados sob análise descritiva simples, em valores numéricos absolutos e relativos. O processamento das ementas foi realizado mediante a utilização do Programa Interface de R pour L Analyses Multidimensionnelles de Textes L de Questionnaire (IRaMuTeQ), versão 0.7 alfa 2.  Esse software gratuito permite diferentes formas de análises estatísticas de textos, produzidas a partir de documentos, entre outras.(12)

Para este estudo foi utilizada a Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que divide o corpus em classes, agrupando as palavras de acordo com a maior associação com a classe, e apresentando o percentual de representação no corpus estudado. Para tanto, foram processados no IRaMuTeQ, o conteúdo programático das ementas. O processamento no referido programa possibilitou a partir da CHD a elaboração de quatro categorias temáticas. No tocante às pesquisas envolvendo documentos/arquivos de instituições e/ou banco de dados secundários que contenham apenas dados disponíveis e de domínio público, que não identifiquem participantes da pesquisa e o não envolvimento de seres humanos, não se requer a necessidade de aprovação por parte do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).

Resultados   


Para melhor compreensão, os dados analisados foram organizados em uma tabela, e a partir desta, se traçou o perfil quantitativo de IES públicas dos cursos em enfermagem. Nesta busca, o curso de enfermagem estava ativo em 87 IES públicas, distribuídos em 148 campus e destes, 10 continham cursos de licenciatura e 138 de bacharelado, sendo um curso com as duas modalidades, conforme Tabela 1.

Tabela 1. IES com cursos em Enfermagem disponíveis no portal do E-mec. Brasil, 2019



Região

 

nº IES

   %

nº de campus

  %

Nordeste

27

31.0

60

40.5

Norte

11

12.6

19

12.8

Centro-Oeste

8

09.1

18

12.1

Sul

19

21.8

22

14.8

Sudeste

22

25.2

29

19.5

Total

87

100

148

100


A região Nordeste do país apresenta o maior número de universidades públicas com o curso de enfermagem, o que equivale também, ao maior quantitativo de campus. Os PPP estavam disponíveis online em 73 cursos, as matrizes curriculares em 57 e fluxogramas em cinco. Deste total, 73 disciplinas foram identificadas com os termos "mulher" ou "violência", estando disponíveis online 63. Deste quantitativo, somente 35 continham em conjunto, os referidos termos em seu conteúdo. No final das buscas, não foram encontrados nenhum material disponível online em 18 instituições. Assim, a descrição dos resultados apresentados pelo IRaMuTeQ somente foi possível a partir do processamento das 35 ementas dos cursos de enfermagem que continham os termos "mulher" e "violência". A análise pelo software resultou em considerável grau de aproveitamento (72.95%), visto que dos 244 segmentos de textos oriundos das ementas, foram retidos 178.

A Classificação Hierárquica Descendente (CHD) para o curso de enfermagem dividiu o corpus textual em quatro classes, tendo as palavras das classes p<0.0001. De início, houve a divisão do corpus em dois subcorpus. Em um segundo momento, houve nova subdivisão, e a classe quatro se subdividiu nas classes dois e três. As classes mais expressivas foram as classes dois e três com 28.2% de representatividade, seguida da classe um (24.2%) e classe quatro (19.7%), conforme Figura 01.


Figura 1. Classificação Hierárquica Descendente com as partições e conteúdo corpus da pesquisa para o curso de Enfermagem no Brasil. E-mec, 2019





O processamento de dados qualitativos permitiu, a partir da identificação das classes e suas palavras de destaque, extrair como ocorre o ensino das temáticas "saúde da mulher" e "violência" nos processos formativos de profissionais enfermeiros/as em IES públicas no Brasil, o que subsidiou a elaboração de quatro categorias temáticas.

Classe 1 - Violência contra a mulher como processo patológico vinculado à saúde sexual e reprodutiva

Nas ementas analisadas que compõem a classe 1, identifica-se que a presença dos termos "violência" e "saúde da mulher" esteve associado ao ensino acerca da assistência de enfermagem aos distúrbios patológicos vinculados à saúde sexual e reprodutiva, com destaque para os problemas ginecológicos, como as infecções sexualmente transmissíveis: (...) prevenção e tratamento das IST e Aids, enfermagem em ginecologia, câncer de colo e mama, alterações ginecológicas, endócrinas e genéticas, atenção a mulher vítima de violência, atenção ao climatério (...) (UNE_03, Escore: 331.46); (...) enfrentamento da violência contra a mulher, implicações sobre saúde reprodutiva, problemas ginecológicos, dor abdominal e pélvica, prurido vulvar, corrimento genital, sangramento genital, mastalgia, nódulo de mama, derrame papilar, dismenorréia, síndrome pré menstrual e intermenstrual, tumores pélvicos e abdominais (...) (UNE_36, Escore 182.02); (...) processo saúde doença, cuidado em saúde ginecológica e reprodutiva, sexualidade e gênero, climatério e menopausa, planejamento reprodutivo, violência, sistematização da assistência de enfermagem, processo de enfermagem, sistemas de classificação em enfermagem, consulta ginecológica, apoio diagnóstico, farmacologia aplicada (...) (UNE_16, Escore: 153.40).    

Classe 2 - Saúde das Mulheres: Aspectos assistenciais, epidemiológicos, sociais e culturais


A classe 2, com maior representatividade neste estudo, revela que o ensino das temáticas "violência" e "saúde da mulher" esteve associada ao reconhecimento dos determinantes em saúde e aspectos epidemiológicos relacionados à assistência, protocolos assistenciais e bases éticas e legais do cuidado de enfermagem no processo saúde-doença, em especial os sexuais e reprodutivos: (...) direitos sexuais e reprodutivos, violência contra a mulher, epidemiologia, bases legais e assistência, protocolos da atenção à saúde mulher, processo de cuidar em enfermagem na prevenção, promoção e recuperação da saúde da mulher nas diferentes fases da vida (...) (UNE_09, Escore 128:32); (...) bases legais da atuação da enfermagem no planejamento familiar a mulher e o espaço coletivo, ênfase no papel social gênero e trabalho, direitos sexuais e reprodutivos, a violência intrafamiliar, aspectos culturais e éticos do cuidado à mulher na sociedade brasileira (...) (UNE_31, Escore 110.94);  (...) estudo dos aspectos epidemiológicos e determinantes do processo saúde doença da mulher, violência contra a mulher e mortalidade materna, ações de enfermagem no cuidado da mulher no processo reprodutivo e pré concepcionais e nas afecções ginecológicas (...) (UNE_07, Escore 106.66);  (...) papéis da mulher na sociedade e suas repercussões sobre a vida e no processo reprodutivo, determinantes de morbimortalidade materna e perinatal, violência contra mulher, ciclo reprodutivo feminino, desenvolvimento e ação hormonal, patologias relacionadas ao sistema reprodutor feminino (...) (UNE_29, Escore: 46.17).

Classe 3 - Gênero como categoria analítica

A classe 3 evidencia que a abordagem entre "violência" e "saúde da mulher" ocorreu a partir do reconhecimento da categoria gênero como necessária à análise dos determinantes de saúde. As percepções históricas e culturais das questões de gênero são delineadas no ensino de enfermagem, sendo assumida como categoria analítica para compreensão das vulnerabilidades da população feminina, com destaque para violência:  (...) gênero e saúde coletiva, análise crítica da construção sócio histórica das relações de gênero na sociedade na saúde e na enfermagem, gênero como categoria analítica para compreensão de relações de poder, violência, vulnerabilidade, necessidades em saúde e processo saúde e doença (...) (UNE_25, Escore: 178.49); (...) vulnerabilidade, gênero e violência, temas para conversar em saúde, objetivo discutir as construções teóricas de violência vulnerabilidade e gênero buscando dialogar com o campo da saúde, em especial com os pressupostos da saúde da família (...) (UNE_26, Escore: 84.23); (...) sociedade, saúde e violência, direitos humanos e saúde, expressões da violência na sociedade, cultura, gênero, raça e etnia, repercussões da violência na saúde, na vida cotidiana, necessidades e possibilidades de intervenção profissional nos casos de violência (...) (UNE_28, Escore: 66.43).

Classe 4 - Atenção à Criança e Adolescentes


Na última categoria, referente à classe 4, com menor representação neste estudo, evidencia-se que o ensino das temáticas "violência" e "saúde da mulher" ocorreu por meio de discussões referentes à vulnerabilidades à agravos, com foco ao público infanto-juvenil: (...) crescimento e desenvolvimento, características físicas, biológicas e psicossociais, desenvolvimento sexual, abordagem psicológica da criança e do adolescente, consulta de enfermagem à criança e ao adolescente, gravidez na adolescência, acidentes e violência na infância e adolescência (...) (UNE_05, Escore: 331:46); (...) consulta de enfermagem à criança e ao adolescente, gravidez na adolescência, acidentes e violência na infância e adolescência, as drogas, a criança e o adolescente hospitalizados, procedimentos de enfermagem, recém-nascido de alto risco (...) (UNE_12, Escore: 303.06); (...) processo do cuidar do recém-nascido, aleitamento materno e a alimentação infantil, violência doméstica na infância e adolescência, crescimento infantil, desenvolvimento infantil, aspectos da vacinação na saúde da criança e do adolescente (...) (UNE_34, Escore: 284.67).


Discussão


A aquisição de aptidões/habilidades pelos estudantes da área da saúde durante a formação acadêmica se reflete em perfis profissionais qualificados e sensíveis ao processo saúde-doença da população. Assim, discentes dessa área precisam estar capacitados para lidarem com as especificidades e demandas de diversos segmentos sociais, entre os quais destaca-se o público feminino. Pesquisa Nacional de Saúde realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 2013, no Brasil, revelou que frente à procura por serviços de saúde, as mulheres são maioria,(13) em parte, como resultado da socialização histórica e cultural do cuidado de si e do outro por questões de gênero.

Dada esta realidade, que demonstra serem as mulheres as maiores usuárias dos serviços de saúde, bem como, estarem mais susceptíveis a determinados agravos, como as violências, em virtude das questões de gênero, enfatiza-se o compromisso e a responsabilidade universitária de proporcionar uma formação acadêmica que contemple as especificidades deste público e a abordagem de temáticas transversais, dentre elas, violência, gênero e sexualidade nos cursos da área da saúde, como a enfermagem. Assim, diante da análise das ementas disponíveis online que continham os termos em conjunto "mulher" e violência", destaca-se o baixo quantitativo de materiais disponíveis, embora diretrizes normativas reforcem o contrário. No Brasil, o Decreto nº 9.235, de 25 de dezembro de 2017, dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação das instituições de educação superior,(14) e em seu parágrafo único, estabelece que caberá às IES a divulgação de seus atos institucionais, cursos e documentos pedagógicos a estudantes, nos termos no art. 47 da Lei nº 9.394, de 1996. 

Embora diante da dificuldade de disponibilização dos materiais pedagógicos pelas IES, frente ao material analisado, verifica-se uma abordagem da violência contra a mulher em associação à condições patológicas do aparelho sexual e reprodutivo e suas implicações sobre este, evidenciando-se uma assistência de enfermagem direcionada à resolução de problemas passíveis de uma intervenção pontual e biologicista, como evidenciado na classe 1 deste estudo. Frente à classe 2, evidencia-se a abordagem de aspectos relacionados aos determinantes do processo saúde-doença, que elevam nas mulheres vulnerabilidades ao adoecimento, especialmente àqueles associados à saúde sexual e reprodutiva, sendo a inserção do termo violência contra a mulher apresentada como temática resultante de aspectos culturais (gênero) e responsável por adoecimento, principalmente na dimensão sexual e reprodutiva. Neste sentido, a assistência de enfermagem é direcionada a fim de se evitar maiores complicações e para tanto, além do ensino de protocolos de assistência, os aspectos culturais, éticos e legais são abordados.

Em relação à classe 3, as ementas dialogam sobre gênero em uma perspectiva histórica e social, associando o conceito como fator responsável pela vulnerabilidade feminina ao adoecimento e às formas de discriminação, opressão e violência, tão simbólicas quanto materiais, proporcionando um novo esquema de leitura dos fenômenos sociais, o que implica em maiores possibilidades de intervenção profissional no campo da saúde, havendo maior destaque para o campo da saúde coletiva/saúde da família. Por fim, na classe 4, observa-se que se sobressaem aspectos referentes à assistência de enfermagem à crianças e adolescentes, especialmente voltados aos marcos de crescimento e desenvolvimento biopsicossocial e seus agravos mais incidentes, havendo frente à saúde do adolescente, a abordagem, em sua maioria, voltada ao público feminino, que apresenta maior susceptibilidade à violações de direitos sexuais e reprodutivos e portanto, mais passíveis à complicações, como violência e gravidezes.

Assim, de um modo geral, sobressaem-se no ensino de enfermagem, as abordagens de assuntos voltados à saúde sexual/reprodutiva das mulheres, seguidas da atuação dos profissionais de enfermagem frente aos aspectos fisiológicos e patológicos nos ciclos de vida. Destaca-se que essa evidência também é encontrada em outras literaturas. Estudo de revisão, complementada por entrevistas com profissionais de saúde, revelou que o atendimento às mulheres ainda permanece reduzido às narrativas orientadas por aspectos biológico-clínicos e técnico-científicos, legitimando o profissional de saúde como autoridade na orientação e direcionamento dos cuidados sobre o corpo feminino e firmando sua concepção como verdadeira ao desconsiderar a autonomia e o saber das mulheres.(15)

Apesar da abordagem direcionada à aspectos fisiológicos e patológicos, também se destacam o ensino de aspectos éticos e legais dos profissionais de enfermagem e atribuições dos/as enfermeiros/as na atenção à mulher com o recorte dos determinantes sociais para compreensão do processo saúde-doença. Neste sentido, de modo a habilitar os futuros profissionais para uma assistência de enfermagem que contemple as diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher(16) (PNAISM), verifica-se que os cursos de enfermagem que tiveram ementários analisados procuram garantir qualificação dos/as futuros/as enfermeiros/as por meio da abordagem/ensino de temas que corroboram com as diretrizes da política, com o perfil epidemiológico dos agravos, bem como, com as respostas à Agenda 2030 - dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

A PNAISM consolida o campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, com ênfase na melhoria da atenção obstétrica, planejamento familiar, atenção ao abortamento inseguro e combate à violência doméstica e sexual. Esta política foi formulada tendo por base a avaliação e as lacunas das antecessoras como assistência à mulher no climatério/menopausa; queixas ginecológicas; infertilidade e reprodução assistida; saúde da mulher na adolescência; doenças crônico-degenerativas; saúde ocupacional; saúde mental; doenças infecto-contagiosas e atenção às mulheres rurais, com deficiência, negras, indígenas, presidiárias e lésbicas.(16) Levando-se em consideração os objetivos assistenciais da PNAISM, verifica-se que, embora o ensino e a assistência à saúde da mulher nos cursos superiores em enfermagem tenha como foco, em sua maioria, os processos fisiológicos e patológicos sexuais e reprodutivos, quando se verifica a abordagem do agravo "violência contra a mulher" infere-se a discussão sobre o recorte de gênero na assistência sexual e reprodutiva deste público. A abordagem das questões de gênero na PNAISM implica tomar como referência os padrões de vida como homens e mulheres se relacionam no cotidiano de suas vivências como resultado de uma determinação social/cultural e que impacta no processo saúde-doença-cuidado das mulheres.(16)

Tal abordagem se destaca na Classe 3 deste estudo, ao entender gênero como categoria analítica que implica na determinação de agravos e vulnerabilidades de mulheres ao adoecimento. Reconhecer a desigualdade de gênero, de classe e de raça/etnia como determinantes sociais de adoecimento feminino e vulnerabilidade à violência, permite se pensar as políticas públicas na dimensão da saúde coletiva, da promoção e da qualidade de vida. Frente ao ensino em enfermagem, o reconhecimento do recorte de gênero implica na formação de profissionais capazes de compreender que as relações de poder e suas manifestações sociais interferem no processo saúde-doença do público feminino, exacerbando iniquidades sociais e elevando nesta população a susceptibilidade ao adoecimento físico, mental e à agravos, como a violência. 

A violência de gênero está presente na cultura de todos os países, independentemente do seu grau de desenvolvimento, expressando-se em maior ou menor escala. Culturalmente, se reproduz por meio de comportamentos irrefletidos, aprendidos histórica e socialmente, nas instituições sociais como igreja, escola, família e Estado, que contribuem diretamente para a soberania masculina e opressão feminina.(17) Historicamente, pode-se afirmar que a mulher vem sendo socialmente oprimida de acordo com as imposições do gênero(3) que são mantidas por instituições sociais que contribuem para disseminar a ideia de que esta é inferior e dotada apenas de instintos de proteção. A abordagem das questões de gênero nos currículos ainda implica em potencial redução do número de casos de violência institucional nos serviços de saúde direcionada ao público feminino, muitas vezes, perpetradas por profissionais de saúde e materializadas diante queixas desconsideradas e medicalizadas de mulheres que sofrem violência doméstica/interpessoal e violência obstétrica.

Sabe-se que casos de violência institucional podem afastar as mulheres em situação de violência dos serviços de saúde, o que dificulta a intervenção precoce frente ao fenômeno e redução de suas sequelas. Em sua maioria, quando buscam assistência nos serviços de saúde, as mulheres em situação de violência dirigem-se às instituições hospitalares, em virtude dos acometimentos físicos; sendo este serviço, muitas vezes, considerado porta de entrada no sistema de saúde diante atendimento de casos decorrentes do agravo.

Em estudo(18) que avaliou o baixo número de casos notificados de violência pela Estratégia Saúde da Família (ESF), observou-se que esses índices são justificados pelo despreparo dos profissionais no reconhecimento do agravo. Na Grande São Paulo, estudo realizado em 19 serviços de saúde revelou que do total de 3.193 prontuários analisados, em apenas 3.8% havia o registro da situação de violência sofrida pela mulher e a ausência de registro demonstra a invisibilidade e o não reconhecimento da violência como objeto de intervenção no campo da saúde.(19) Corroborando com esta realidade, outro estudo(20) com 42 profissionais (técnicos de enfermagem, enfermeiro/as e médicos/as), realizado em um município do estado de Santa Catarina, Brasil, revelou que o déficit de preparo profissional, seja durante a graduação ou no serviço conduz, muitas vezes, a um atendimento superficial com assistência não qualificada à mulher em situação de violência. Ainda, a ausência da atenção holística no atendimento às mulheres em situação de violência implica no não reconhecimento de fatores associados à ocorrência da violência e suas consequências, com capilarização à família, a exemplo da prole. No entanto, apesar das fragilidades, o setor saúde apresenta grande potencial para abordagem da violência, uma vez que nestes serviços, a atuação dos profissionais é decisiva e podem contribuir para a identificação deste agravo, prevenção, atenção e desenvolvimento de estudos frente ao problema.

De fato, as sequelas da violência contra a mulher não se restringem somente à mulher, mas ganham capilaridade dentro do seio familiar e talvez essa condição possa justificar a identificação da abordagem do termo "violência" associado a outras fases do ciclo vital, com destaque à saúde da criança e do adolescente. Estudo(21) realizado com 239 adolescentes de uma escola pública de um bairro periférico da cidade de Salvador, Bahia, ao analisar a prevalência e fatores associados a violência neste público, apontou que a prevalência de violência intrafamiliar entre os/as estudantes foi de 60.67%.

Outro fator que justifica a abordagem do termo "violência" nesta faixa etária, é a maior susceptibilidade que crianças e adolescentes tem para vitimização. Dado o estágio peculiar de desenvolvimento em que se encontram, este público é apontado como mais vulnerável ao agravo, principalmente diante de menor nível socioeconômico e quando do sexo feminino.(22) Frente a este último, cerca de 40 milhões de crianças e adolescentes, principalmente meninas, sofrem abuso sexual anualmente.(23)

No Brasil, a violência sexual ocupa o segundo maior tipo de violência entre indivíduos na faixa etária dos 10 aos 14 anos, estando a violência física em primeiro lugar.(24) Essa é uma forma de violência que não é plenamente reconhecida como um problema de saúde pública e que necessita de estratégias por parte dos governantes para identificação e notificação, uma vez que os/as adolescentes abusados, em sua maioria, dentro das famílias, têm elevado risco de desenvolver uma série de transtornos.(24) Assim, diante da complexidade da violência e suas implicações, exige-se uma discussão e reflexão desta temática na preparação de futuros profissionais de saúde, e frente à enfermagem, a necessidade de sensibilização deste grupo para uma atuação ética, moral e legal. Especialmente diante adolescência, o reconhecimento da abordagem deste fenômeno nas ementas direciona os/as futuros/as profissionais de enfermagem para intervenção precoce, com elevado potencial para redução de sequelas e consequências da violência no presente e futuro. Reforça-se que o contato precoce com profissionais e serviços de saúde é imprescindível para uma abordagem ágil e eficaz no acolhimento e atendimento dessa demanda e normatizações técnicas do MS e dos conselhos de classe orientam profissionais e regulamentam normas éticas, legais e morais para atuação da enfermagem frente a este agravo.

Além do atendimento garantido, as condutas legais apontam que é dever do profissional de saúde realizar a notificação de casos confirmados ou suspeitos de violência. A literatura tem atribuído a subnotificação da violência ao desconhecimento dos profissionais da saúde acerca de sua responsabilidade legal. Embora seja um evento de notificação compulsória, estudo(25) aponta que, mesmo diante da obrigatoriedade em se registrar o fenômeno, tal procedimento ainda é invisível na rotina dos profissionais de saúde, na qual a subnotificação está correlacionada à ausência de informações técnicas e científicas sobre o assunto e à fatores como desconhecimento acerca da obrigatoriedade da notificação, temor de represálias do agressor, constrangimento para questionar detalhes da violência ou banalização dos fatos.

Diante dessa conjuntura e da obrigatoriedade de que todos os serviços de saúde ofertem uma atenção qualificada a mulheres em situação de violência, o cenário impõe amplos debates que instituam nos currículos, o papel do/a enfermeiro/a no enfrentamento do fenômeno. Portanto, é fundamental que as IES insiram em seus processos formativos aspectos voltados ao ensino da violência contra a mulher, para seu reconhecimento e enfrentamento com fins à sua prevenção, fomentada pela colaboração entre comunidades acadêmicas e práticas entre universitários/as, docentes e profissionais.

Como considerações finais, tem-se que a violência contra a mulher é uma questão de saúde pública e, assim, faz-se necessário trabalhar esta temática durante a formação profissional em saúde, com destaque para a enfermagem, maior corpo profissional de saúde no Brasil, para que o enfrentamento ao agravo possa implicar na prevenção e redução de seus indicadores. Assim, durante as análises frente a presença dos termos "mulher" e "violência" nas ementas obtidas dos cursos de graduação em enfermagem constatou-se, em sua maioria, uma conexão desses termos aos aspectos sexuais e reprodutivos das mulheres (de cunho fisiológico e patológico) passíveis de intervenção, embora a abordagem de gênero seja reconhecida como categoria analítica para a compreensão das vulnerabilidades do público feminino ao adoecimento e à vulnerabilidade à violência.

Ainda, o estudo permitiu a identificação de lacunas no ensino de enfermagem frente à violência perpetrada contra o público feminino, uma vez que não se identificou no material analisado, a abordagem de temáticas afins à rede de enfrentamento à violência contra a mulher, itinerários em busca de assistência e rotas críticas de mulheres em situação de violência por exemplo. Estas são importantes contribuições da pesquisa, que poderão ser discutidas e analisadas pela comunidade acadêmica objetivando-se mudança deste cenário.

Apesar de importante, este estudo apresentou limitações, sendo a carência de material online das IES a principal. Evidencia-se que a limitação de acesso integral à documentos embasadores do ensino nos cursos de graduação em enfermagem dificultam a realização de pesquisas que buscam, em documentos destas instituições, respostas para questionamentos sociais. Embora se tenha ciência desta limitação, este trabalho teve o intuito de sensibilizar para o fomento de discussões que corroborem com uma prática humanizada no serviço e promovam assistência qualificada às mulheres em situação de violência. Ainda, sugere-se a importância da continuidade desta pesquisa in lócus nas IES, assim como o aprofundamento do estudo e das informações fornecidas por discentes e professores/as.


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