Nas últimas décadas, a literatura tem sido produzida e observada sob uma perspectiva cada vez mais múltipla, tanto no que diz respeito às formas quanto ao conteúdo e ao diálogo entre diferentes saberes para além do literário. Cássia Lopes, Jorge Yerro e Rachel Lima (2023) afirmam que «na encruzilhada de saberes e de diferentes epistemologias, a literatura se impõe como importante campo de transformação de valores e revisitação da história» (Lopes, Yerro & Lima, 2023, p. 3). Isso se dá por meio da revisão de conceitos tidos como naturais, da denúncia de preconceitos e da problematização de questões sociopolíticas, «na busca por interpretações plurais, no encontro com diversas áreas de conhecimento e na interface com outras manifestações artísticas» (Lopes, Yerro & Lima, 2023, p. 3).
Neste cenário, os estudos culturais emergem como forma de combate à homogeneização. Em diálogo com os estudos literários, seus entusiastas defendem sua flexibilidade em relação a outros campos do conhecimento «que requeiram rigor na construção de uma exegese dependente do uso conceitual quanto pela necessidade de revisão de uma teoria em crise diante da diversidade “heterodoxa”» (Pontes Júnior, 2014, p. 17).
Pari passu, há também, dentro dos estudos literários, uma mudança no campo da literatura comparada, que ganha novo fôlego no século xxi, posto que a literatura deste século «segue com a órbita aberta a diferentes chamados da atualidade, imersa em redes sociais e ciente de outras formas de controle e de silenciamento de saberes» (Lopes, Yerro & Lima, 2023, p. 3). Além disso, «a experiência literária visa dar visibilidade à riqueza dos diversos territórios culturais, dilatando o presente e ampliando o mundo, fora de uma dimensão excludente e totalizadora. São campos dialógicos, acessíveis a diferentes processos de subjetivação e de atuação social» (Lopes, Yerro & Lima, 2023, p. 3). Não pretendemos aqui discutir uma equiparação entre os estudos culturais e a literatura comparada - até mesmo porque não acreditamos nela -, mas sim pensar a literatura comparada em diálogo com os estudos culturais hoje como ponto de partida privilegiado, metodologicamente, para a análise do objeto literário.
Dado esse preâmbulo metodológico, apresentaremos nosso corpus de análise; análise esta cuja feitura será baseada também metodologicamente na pesquisa bibliográfica. Os romances A filha perdida, de Elena Ferrante (2016) e Mar azul, de Paloma Vidal (2012), possibilitam-nos algumas reflexões sobre a condição das mulheres no mundo contemporâneo. Em ambos existem temas cuja discussão atinge diretamente as mulheres, tais como a maternidade e o envelhecimento (ou velhice). Passemos então a alguns pressupostos relacionados às obras e, em seguida, às nossas hipóteses de leitura.
O primeiro pressuposto é que tanto A filha perdida quanto Mar azul são romances escritos por mulheres inseridas no panorama da autoria feminina contemporânea. Elena Ferrante e Paloma Vidal, cada uma a seu modo, afirmam o «ser mulher» em uma sociedade cujas raízes estão fincadas sobre um alicerce patriarcal. Já os pressupostos seguintes dizem respeito às particularidades de cada enredo e seus modos de narrar.
A filha perdida1, publicado pela primeira vez em italiano (La figlia oscura) no ano de 2006, é o terceiro romance de Elena Ferrante, pseudônimo de uma escritora que preferiu se manter em anonimato para poder produzir suas narrativas sem a interferência de uma persona autoral pública2. O romance, organizado linearmente em vinte e cinco capítulos breves, trata de uma viagem de férias de Leda, protagonista e narradora, a uma praia na costa jônica da Itália, onde permanece por aproximadamente uma semana. Leda é uma professora universitária de literatura inglesa, divorciada e de meia-idade (47, quase 48 anos), que se sente constrangidamente deslumbrada com o fato de as duas filhas, Bianca e Marta, já adultas, terem ido morar com o pai, Gianni, no Canadá. Ao se deparar na praia com uma barulhenta família napolitana e observá-la, especialmente a jovem mãe Nina e sua pequena filha Elena, que sempre carrega a mesma boneca, possuidora de muitos nomes (Nani, Nena, Nennella, Nile, Nanuccia, Nanicchia), Leda desbloqueia suas memórias de infância e juventude, especialmente cenas que tangem a maternidade, tanto no papel de filha como no papel de mãe. Também há reflexões sobre o processo de envelhecimento e o contato com personagens jovens (como o estudante universitário e salva-vidas Gino) e velhas (como o homem que a recebe, Giovanni, na casa que aluga).
Mar azul3, por sua vez, veio a público em 2012, sendo o segundo romance de Paloma Vidal, escritora brasileira (nascida na Argentina). Nesta narrativa, acompanhamos o cotidiano de uma mulher que se encontra já na velhice, cujo nome não nos é revelado. No presente da enunciação, a narradora4 se encontra solitária, vivendo em uma cidade estrangeira, dedicando-se a tarefas do cotidiano como lavar louça e ir a consultas médicas. Paralelamente, ela desenvolve uma outra atividade: a leitura dos diários de seu pai. A partir desta leitura, ela escreve reflexões acerca das memórias que a invadem, que é o texto que temos em mãos. Nesse sentido, observamos já uma diferença com AFP no que toca à organização narrativa: enquanto o romance de Ferrante é cronologicamente linear, sendo o passado retomado por meio da memória de Leda, o romance de Vidal é composto por um longo bloco composto por diálogos entre a Narradora e sua amiga, Vicky, quando ambas tinham por volta de treze anos. Depois deste bloco, temos a voz da Narradora no presente da enunciação rememorando, de maneira fragmentada, momentos marcantes de sua vida, como a ausência materna; o estupro que sofre quando adolescente; o desaparecimento de Vicky devido à ditadura argentina antiperonista (década de 1950) e o abandono do pai ao se deslocar para o Brasil (ele sai da Argentina para participar da construção de uma capital, que entendemos ser Brasília). Tais momentos, como percebemos, moldam sua identidade como mulher e sua narração é dividida em cinquenta capítulos. O último capítulo é encerrado por um breve diálogo entre as duas amigas.
Diante, pois, destas informações introdutórias, este trabalho lidará com duas hipóteses de leitura interligadas. A primeira delas é a seguinte: em AFP e MA, a memória é catalisada por questões ligadas aos pares maternidade/filiação e envelhecimento/velhice. Sobre maternidade e filiação, as entenderemos no campo das relações entre mãe(s) e filha(s), os papéis sociais da mãe e também os da filha. Quanto ao segundo par, o termo «envelhecimento» é entendido como o «ato ou efeito de tornar-se velho, mais velho, ou de aparentar velhice ou antiguidade» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009, p. 777). «Velhice», por seu turno, é entendida como «estado ou condição de velho; idade avançada, que se segue à idade madura; ancianidade» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009, p. 1929).5. Para além destas acepções, é nosso intento aqui partir da concepção de que tanto o processo de envelhecer quanto a velhice propriamente dita são construtos sociais. Para Heck e Langdon (2002), o «processo de envelhecimento apresenta variações que são constituídas socialmente nos diferentes grupos sociais de acordo com a visão de mundo compartilhada em práticas, crenças e valores» (Heck & Langdon, 2002, p. 129). A biologia divide as fases da vida humana com base na cronologia e nas transformações do corpo ao longo do tempo de vida dos indivíduos, seguindo aspectos quantitativos e excluindo os culturais. Sob a consideração dos aspectos socioculturais, o envelhecimento passa a ter «diferentes construções de acordo com as relações de poder, as expectativas dos papéis sociais das pessoas no grupo, as relações de gênero e os conflitos que fazem parte da vida, podendo encaminhar situações de readaptação, invenção de valores e/ou exclusão» (Heck & Langdon, 2002, p. 129).
A segunda hipótese, por sua vez, pode ser assim organizada: as narradoras protagonistas de AFP e MA são, diante da maternidade/filiação e do envelhecimento/velhice, verso e reverso. Um jogo entre presença e ausência é percebido na composição das protagonistas: enquanto uma é mãe, a outra não o é; enquanto uma está em processo de envelhecimento, a outra já adentrou a velhice. Passemos, assim, a uma breve análise sobre a memória nos dois romances, para daí discutirmos como suas protagonistas lidam com a maternidade e o envelhecimento ou velhice.
O termo «memória» possui diversas acepções e suscita muitas discussões dentro das diferentes áreas do conhecimento: da filosofia à medicina, por exemplo, passando pela literatura, história, sociologia, antropologia, linguística e tantos outros domínios. Entretanto, o senso-comum atribui a esse termo, principalmente, a noção de recordação, de lembrança. Uma memória é algo do passado, lembrado por alguém diante de uma ou outra situação do presente.
Jeanne-Marie Gagnebin (2009), ao citar o episódio dos Lotófagos, presente no nono canto da Odisseia, o faz para mostrar que ele
indica [...] que a luta de Ulisses para voltar a Ítaca é, antes de tudo, uma luta para manter a memória e, portanto, para manter a palavra, as histórias, os cantos que ajudam os homens a se lembrarem do passado e, também, a não se esquecerem do futuro (Gagnebin, 2009, p. 15). [Grifos nossos].
A organização do texto épico nos garante, pois, a relevância da memória para determinado povo, determinado contexto. O fio condutor da Odisseia em si - o retorno de Ulisses à casa -, bem como a busca de Telêmaco pelo pai - a chamada telemaquia -, é uma busca pela memória desse povo, cuja manutenção é depositada sobre a figura de Ulisses, herói que contribuirá para a continuação da lembrança do passado e, consequentemente, do não esquecimento futuro. Diante disso, assumimos, aqui, uma posição concernente às humanidades, que não entendem a memória apenas como um fenômeno individual, cerrado em si mesmo. Assumindo um pressuposto do Candau (2016), consideramos a memória como «uma reconstrução continuamente atualizada do passado, mais que uma reconstituição fiel do mesmo» (Candau, 2016, p. 9) [Grifos nossos]. Memória e identidade, portanto, são conceitos que se imbricam, sendo relevantes para a leitura de narrativas de rememoração, como é o caso de AFP e MA.
Afirmamos, em nossa leitura, que AFP é uma narrativa de rememoração pelo fato de seu nó ser desenrolado a partir de uma memória, vinculada à maternidade e à passagem do tempo, que por sua vez se relaciona com o processo de envelhecimento, já que Leda se encontra, com quase 48 anos, no que se convencionou chamar de «meia-idade», visto que ela não é mais uma jovem adulta, tampouco uma mulher velha. Logo, a partir da mudança das filhas Bianca e Marta para o Canadá, Leda se lembra de como era ser uma mulher antes da maternidade. Com a casa sempre arrumada, não precisa mais de empregada doméstica; poderia, enfim, comer o que quisesse e quando desejasse; a hora dormir também já não devia seguir uma rotina; realizaria o trabalho de correção, leitura e planejamento, inerentes à sua profissão de professora universitária, sem pensar nas necessidades de mais ninguém. Leda se percebe, entre alegre e constrangida, livre:
Quando minhas filhas se mudaram para Toronto, onde o pai vivia e trabalhava havia anos, descobri, com um deslumbre constrangedor, que eu não sentia tristeza alguma - pelo contrário, estava leve, como se só então as tivesse definitivamente posto no mundo. [...] [...] Senti-me milagrosamente desvinculada, como se um trabalho difícil, enfim concluído, não fosse mais um peso sobre os meus ombros (Ferrante, 2016, pp. 7-8).
Esse momento de pretensa liberdade da função «mãe» conduz Leda ao desejo de realizar uma viagem de férias sozinha para uma praia da costa jônica, desejo este que ela concretiza. Na praia, depois de alguns dias observando Nina (uma jovem mãe), Elena (a filha pequena) e a boneca da criança, personagens pertencentes à ruidosa família napolitana (e muito provavelmente camorrista6), Leda comete o «gesto» antecipado no prólogo: «um gesto sem sentido, sobre o qual, justamente por ser sem sentido, decidi não contar a ninguém» (Ferrante, 2016, p. 6). Esse gesto é que motivou o último evento do romance, que é a cena de Leda internada em um hospital após ter batido o carro na proteção da estrada quando voltava para casa. Leda rouba a boneca de Elena, levando-a para a casa que havia alugado na cidade costeira para a qual viajara. Podemos verificar que a maternidade se revela no espelhamento entre Leda e Nina; entre Leda e sua própria mãe; entre Elena e a boneca (em suas brincadeiras, a menina se comporta como a mãe da boneca). Essas inter-relações disparam o gatilho das memórias de Leda vinculadas à relação entre ela e sua mãe e entre ela e suas filhas. No ápice de suas rememorações, Leda rouba a boneca na praia.
Também consideramos MA como um romance de rememoração pelo fato de sua narrativa acontecer a partir da observação de uma cena cotidiana que leva a Narradora para uma memória de infância e esta, por sua vez, ter origem em pontos que se relacionam à maternidade e à velhice. A Narradora, no primeiro parágrafo do primeiro capítulo, localizado no presente da enunciação, observa alguns pombos no pátio do lugar onde mora. Em uma aposta consigo mesma, pensa que, se um dos pombos voasse naquele instante, ela se deixaria «arrastar pela lembrança» (Vidal, 2012, p. 41); do contrário, lavaria a louça do jantar do dia anterior. Um dos pombos voa e ela se deixa levar pelas memórias, bem como realiza a tarefa doméstica:
O que vale é a aposta, não o desfecho. Brincávamos disso o tempo todo quando éramos crianças. Que o acidental comandasse a vida era tentador. O que afinal de contas havia determinado o nosso encontro? Estávamos unidas por acaso. [...] Vizinhas e logo irmãs. A verdade é que Vicky sustentava essas teorias com mais tenacidade que eu (Vidal, 2012, p. 41) [Grifos nossos].
O «nós» que a Narradora utiliza na pessoa verbal e no pronome possessivo diz respeito à sua amiga Vicky e a ela mesma. A união das duas aconteceu por acaso pelo fato de a Narradora não viver com a própria mãe, apenas com o pai, que a deixou na Argentina rumo ao Brasil na década de 1950; logo, ela fora «adotada» pelas vizinhas, sendo que Vicky assumiu as vezes de uma irmã e sua mãe poderia ter sido uma figura materna. A velhice está subentendida, pois as leitoras e os leitores descobrirão, com o correr das páginas, que a Narradora é uma mulher velha devido às atividades que desempenha e também pelo que acontece ao seu redor. Esta memória sobre Vicky urde sua velhice à sua infância.
Um outro ponto ligado à memória é importante para que reflitamos sobre a organização da narrativa em ambos os romances. Além de serem narrados por suas protagonistas, a escrita assume papel primordial nas duas obras. Em AFP, a escrita pode ser observada sob duas possibilidades: a primeira, mais visível, está relacionada à atividade laboral de Leda. Como professora, Leda se vê envolvida com a leitura e a escrita em diversos momentos. Inclusive, chega a afirmar: «Ler e escrever sempre foram a minha forma de me acalmar» (Ferrante, 2016, p. 60). Já a segunda possibilidade ocorre de modo subentendido. O primeiro capítulo de AFP corresponde, como já informamos, segundo o tempo cronológico da narrativa, ao seu desfecho. É o momento em que Leda, de volta para casa, depois de ter levado uma estocada desferida por Nina, que se torna irascível pela descoberta do roubo da boneca (informação que só alcançaremos no último capítulo), se lembra de quando era pequena e sua mãe incutiu nela o medo do mar com bandeira vermelha. A partir daí, Leda acorda apenas no hospital. Assim, vemos que há a escolha por narrar a viagem a partir do desfecho, para que ao longo do romance tenhamos as informações que nos farão compreender o «gesto sem sentido» que Leda havia feito. Ela inicia, portanto, o capítulo dois com as filhas já em Toronto, rememorando a vida de adulta sem elas, o que, como afirmado anteriormente, foi o nó que provoca as demais ações. Ao encerrar o capítulo um dizendo que não tivera coragem de contar para ninguém o ocorrido e verificando que o que está por vir é a sequência de fatos que desembocará no tal ocorrido, entendemos que Leda parece preparar um público ouvinte/ leitor, ainda que ele não venha a existir ou que seja ela própria. Mesmo dizendo não se sentir confortável em contar o que houve, Leda irá contar em seguida. O que temos em mãos é exatamente a viagem de Leda e as memórias desencadeadas nesta viagem, o que nos leva a entender que Leda teria escrito, registrado o que lhe aconteceu. Se as «coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender» (Ferrante, 2016, p. 6), como nos diz Leda no último período do primeiro capítulo, elas serão registradas para sua compreensão não pela via oral, mas pela palavra escrita. Colocamos, pois, essa inferência também pelo fato de Leda não informar na letra do texto que escreveu sobre sua viagem de férias sozinha, aos 47 anos, mas por uma possibilidade subentendida por seu gosto pela escrita e pela leitura, sobretudo quando ela confessa que essas atividades a acalmam. Ora, como ela não se vê confessando o seu «gesto sem sentido» para ninguém, já que o que fizera seria considerado abominável (o roubo da boneca preferida de uma criança pequena), a escrita pode ser, assim, uma válvula de escape e o seu produto, o que as leitoras e leitores têm em mãos.
No caso de MA, a Narradora informa textualmente que está em processo de escrita: «Para quem eu escrevo? A pergunta em algum momento tinha que ser feita» (Vidal, 2012, p. 61). Em momento anterior, ela havia informado que herdara do pai os cadernos que ele usou como diários. A Narradora relata sua história, usando o verso das páginas dos diários do pai como suporte, tentando entender o seu lugar e o que foi ou deveria ter sido na vida se não fossem as violências que sofrera. Ela procura compreender o passado, os seus traumas e ausências por meio da história do pai como subterfúgio para explicar a sua própria trajetória. A ausência da mãe, o abandono do pai, o desaparecimento de Vicky, o estupro que um namorado de adolescência cometera, todas essas experiências e suas memórias moldam o que a Narradora é em sua velhice.
É importante destacar a passagem em que a Narradora diz que o pai, em seus cadernos, «decidiu anotar o que estava perdendo» (Vidal, 2012, p. 42). Essa decisão afirma a necessidade de retenção da memória de modo «físico»: «A memória precisava se tornar um armazenamento visível» (Vidal, 2012, p. 42). Candau (2016), ao abordar a exteriorização da memória, afirma que desde os tempos imemoriais o homem recorre a formas de conservação e transmissão de uma memória. A escrita, nesse contexto, reforça o sentimento de pertencimento e da representação que alguém faz das próprias memórias. Logo, não podemos ignorar o fato de a Narradora escrever no verso das páginas dos cadernos do pai. À maneira de um palimpsesto, ela (re)escreve a própria memória, vinculada à de seu antecessor direto. O objeto registrado, o caderno escrito, é uma forma de transmissão memorial. A Narradora, então, tem ali, além de sua perspectiva, o obscuro ponto de vista do pai que fugiu do sistema ditatorial argentino que fora instaurado em 1955, exilando-se no Brasil e deixando a filha para trás com Vicky e sua mãe.
Nesse sentido, tanto AFP quanto MA oportunizam a reflexão, dentre outras questões, sobre a problemática da «reconstrução atualizada do passado», não de sua «reconstituição fiel», nos termos de Candau (2016), por personagens que são uma mulher de meia-idade e uma mulher idosa, possibilitando a discussão sobre questões ligadas ao universo feminino e à escrita de mulheres, tais como a maternidade e o envelhecimento ou a velhice. Compreendemos, assim, que a memória nos dois romances é mobilizada, de um ou outro modo, por pontos que se ligam aos referidos temas.
Partindo da afirmação de que a memória em AFP e MA decorre de experiências relacionadas à maternidade ou à filiação bem como ao envelhecimento ou à velhice, vejamos como os temas são revelados nos discursos de Leda e da Narradora7. A hipótese de leitura que aventamos a partir de tal afirmação, como já informado, é a de que ambas as protagonistas funcionam como verso e reverso uma da outra, sendo que maternidade e velhice se revelam em um jogo entre ausência e presença.
A maternidade é um dos temas de destaque quando se comenta sobre a escrita de mulheres na contemporaneidade, especialmente no que diz respeito à sua dessacralização e à ambiguidade que a circunda. No projeto estético de Ferrante, a maternidade ocupa posição privilegiada, estando presente em todas as suas narrativas. A própria autora assume, em uma entrevista, o seguinte: «Os papéis de filha e de mãe são centrais nos meus livros; às vezes, acho que não escrevi sobre outra coisa. Toda a minha inquietude foi parar ali» (Ferrante, 2017, p. 283). Em AFP, a experiência da maternidade e da relação entre avó, mãe e filhas aflora em momentos diferentes da narração de Leda, tendo sido bastante comentada pela crítica especializada. A maternidade acaba por moldar sua vida sob certa perspectiva, já que ela precisa lidar com «subtemas» como o da violência materna, o desejo de ser mãe e a maternidade compulsória, as obrigações do papel materno, o abandono materno. Assim, em AFP temos a maternidade em presença pelo fato de Leda ser mãe, mas também é possível falar em ausência pelo fato de ela ter abandonado as filhas por três anos, quando ainda eram duas crianças.
Por sua vez, a maternidade relacionada à Narradora em MA é decorrente da ausência: ela não conhece a mãe, não tendo nem lembrança de algum convívio; apesar de ir morar com Vicky e sua mãe, esta nunca ocupará de fato o lugar materno em sua vida; ela mesma nunca se tornou mãe, apesar de ter engravidado. Há também referências ao estereótipo da mãe que deve ser como a Virgem Maria na fala de R (o namorado abusivo da adolescência), bem como a quebra de padrões que a mãe de Vicky representa (uma mãe que fala alto, usa palavrões, trata a filha de igual para igual e veste shorts).
Vejamos, assim, três pontos de convergência e divergência entre AFP e MA relacionados à maternidade, a saber: o desejo e a experiência da maternidade; a ausência materna e o estereótipo do sagrado materno.
Em AFP, Leda revela que havia desejado ser mãe da primeira filha, Bianca: «Eu havia desejado Bianca; um filho é desejado com uma opacidade animal reforçada pelas crenças populares. Ela chegara cedo, eu tinha vinte e três anos, e o pai dela e eu estávamos no meio de uma árdua luta para continuarmos a trabalhar na universidade. Ele conseguiu, eu não» (Ferrante, 2016, p. 45).
Leda parece colocar o desejo de ter um filho como algo «animal», concernente à biologia, ou seja, à garantia da continuação da espécie, bem como algo socialmente compulsório, devido às «crenças populares». No presente da enunciação, Leda considera que Bianca viera quando ela ainda era bastante jovem, sem uma carreira profissional estabilizada. É possível pressupor, a partir do fato de que Gianni conseguira continuar na universidade e ela não, que a maternidade foi o impeditivo de sua estabilidade profissional. Os cuidados com a criança, tradicionalmente, recaem majoritariamente sobre as mulheres; logo, em uma possível disputa, um pai leva vantagem sobre uma mãe, pois é isso o que se espera delas: que elas cuidem integralmente dos filhos, deixando o «sustento» a cargo do homem.
Em relação à segunda filha, Marta, Leda diz que ela e Gianni seguiram e creram no que todos à sua volta acreditavam: «[Bianca] não podia crescer sozinha, triste demais, era necessário um irmão, uma irmã para lhe fazer companhia» (Ferrante, 2016, p. 45). Desse modo, entendemos que Leda não desejou Marta como havia desejado Bianca. A existência de Marta estava condicionada à de Bianca; Marta serviria, assim, como alguém para não deixar a irmã mais velha sozinha. E continua a narradora: «Por isso, logo depois dela [Bianca], programei, obediente, sim, exatamente como se diz, programei que crescesse em meu ventre Marta» (Ferrante, 2016, p. 45) [Grifo da autora]. Com duas filhas pequenas, a jovem mãe de vinte e cinco anos chega à conclusão de que «qualquer outra brincadeira tinha acabado» para ela, enquanto o «pai corria mundo afora, uma oportunidade atrás da outra» (Ferrante, 2016, p. 45).
A experiência da maternidade é revelada, como já indicado, no fato de Leda ser mãe de duas moças. Ao se considerar leve por não estar mais morando sob o mesmo teto que as filhas, Leda confessa o inconfessável, pois socialmente uma mãe não pode se sentir bem e despreocupada longe dos filhos. Ironicamente, ao descrever sua rotina morando na Itália e as filhas, em Toronto, Leda parece descrever o papel de um pai que não mora com os filhos: o contato meramente telefônico; o atendimento de pedidos segundo as expectativas das meninas, como se as agradasse para que se calassem. Entretanto, com o mergulho em suas memórias, Leda revela que essa alegria não perdura, pois uma mãe sempre será uma mãe, sempre terá suas responsabilidades em relação aos filhos. Entretanto, para além das cobranças sociais e da exaustão relacionada ao papel materno, Leda relembra também de cenas de afeto entre as três, como quando descascava frutas e a casca saía em forma de serpentes, o que impressionava as meninas. Logo, a ambiguidade do sentimento materno se desvela: a experiência da maternidade pode ser, a um só tempo, extenuante, mas em certa medida também compensadora pelo afeto, pelo vínculo. Entretanto, parece-nos que para a narradora o saldo não é positivo, pois ela acredita que não foi ou é uma boa mãe - se afirma, inclusive, como uma mãe desnaturada, que voltou para as filhas não por amor a elas, mas por amor a si mesma ao perceber a ausência insuportável das meninas, sua melhor criação.
Além disso, a experiência da maternidade pode ser observada nas memórias de Leda em relação à sua mãe. A mãe de Leda parece ser aquilo que a própria narradora não deseja ser como mãe antes de sê-lo: sempre exausta, nervosa, ameaçadora. Quando criança, para ensinar Leda a ser menos tímida porque ela não pedira para comer pinha como as irmãs, sua mãe lhe disse: «para você, nada, você é pior do que uma pinha verde» (Ferrante, 2016, p. 14). Esse tipo de insulto era comum na infância de Leda, como observamos em seus momentos de rememoração. Na opinião de Leda, sua mãe tinha vergonha da crueza de seu pai e dos demais parentes, por isso fingia ser uma dama elegante. Porém, em momentos de discordância, a «máscara caía e ela também aderia ao comportamento, à linguagem dos outros, com uma violência semelhante. Eu a observava, surpresa e decepcionada, e planejava não ser como ela (...)» (Ferrante, 2016, p. 30) [Grifos nossos]. A ruidosa família napolitana da praia traz para Leda, portanto, a lembrança da própria família, pois havia crescido em ambiente semelhante. Da mesma forma a avó havia criado as filhas, e era assim que Leda e as irmãs foram educadas. Ao engravidar pela primeira vez, Leda se afirmou como a rebelde que era desde a adolescência, querendo ir contra a maternidade comum das mulheres de sua família:
Eu era diferente e rebelde. Queria carregar minha barriga inchada com prazer, aproveitando os nove meses de espera, espiando, guiando e adaptando meu corpo à gestação, como eu havia feito teimosamente com tudo na minha vida desde o início da adolescência (Ferrante, 2016, p. 150).
Porém, a segunda gravidez de Leda se mostrou um verdadeiro suplício. Bianca ainda era muito pequena, demandava muita atenção; Gianni estava sempre muito ocupado com o trabalho; Leda vivia exausta e se sentia deformada. Assim, a fantasia de autodomínio que Leda criara durante a gestação e o parto da primeira filha desmoronou durante a gravidez da segunda. Temos a impressão de que tudo o que desejara ou planejara não passou de ilusões.
Em MA, há uma personagem masculina que a Narradora identifica apenas como R. Ele foi um relacionamento abusivo que ela mantivera na adolescência, culminando com um estupro. Em um diálogo com Vicky, a Narradora conta como R queria lhe convencer de assuntos que, além de não pertencerem à sua alçada, como o desejo de ser mãe, ainda corrompiam a imagem da mãe de sua amiga e também das mulheres de modo geral:
- Fiquei calada. [...] Foi do nada. Ele disse que pra ser mãe a gente tem que estar pronta pro sacrifício.
- Minha mãe tinha que ouvir isso. - Ele falou da sua mãe. - O que foi que ele disse? - Que ele não entende pra que ela teve você. - Não acredito que ele falou isso, ele não sabe nada da minha mãe. - Ele falou sobre a Virgem Maria, ficou falando da pureza dela. Ele tava querendo me dizer alguma coisa, não entendi direito (Vidal, 2012, p. 20).
Com a fala manipuladora de R, o desejo de ser mãe passou a se tornar um certo problema para a Narradora, já que ele a induziu a entender essa situação como um grande sacrifício, tal qual o da Virgem Maria, e que para ser mãe era preciso ter também a sua pureza. R, ao longo do relacionamento, conduz a jovem a compreender certos modos de ser mãe como ruins, como quando ela se lembra de que ele usou termos depreciativos para falar sobre sua mãe ausente. Dessa maneira, ele avilta a imagem da mãe da Narradora e da mãe de Vicky, que é mãe solo e é independe da presença de um marido ou do pai de sua filha.
Robles (2019) busca entender o papel social da mulher e para tanto constrói um mosaico da condição feminina através do tempo, apresentando várias mulheres importantes para a história, sendo uma delas a Virgem Maria: o dogmatismo cristão colocou Maria «como marco absoluto de graça e pureza perfeitas, ainda que tivesse experimentado em seu mistério sagrado e elevado a dogma de fé a concepção, a gravidez e o parto daquele que seria o Redentor de nossos pecados» (Robles, 2019, pp. 297-298). Aqui já podemos comentar sobre o estereótipo do materno sagrado. Qual seria o lugar da mulher que se torna mãe? Em contexto patriarcal, ao pressupor que as mães possuem a virtude da Virgem Maria, que concebeu o filho de Deus «sem pecado», tendo se mantido «intacta» durante toda a vida, entendemos que o lugar da mãe é o desta função, que adquire ares de sagrado pela doação e devoção total aos filhos e ao lar. Segundo Lígia Araújo, Luciana Manzano e Marco Antônio Ruiz (2020), a ela não é permitido o papel de sujeito social para além da própria casa. Ela não é sujeito nem da própria sexualidade, mantendo relações com o marido para cumprir o objetivo divino da reprodução, sem obtenção de prazer algum. Assim sendo, a mulher-mãe ocupa o lugar do sobre-humano, o lugar do sagrado. O lugar do humano não lhe pertence - ele é do homem. No fim das contas, o lugar da mãe é um não-lugar, posto que a maternidade a impede de ser sujeito de ação social, de ocupar o lugar humano. Ademais, ela não recebe as vantagens do lugar sagrado, já que não alcança a redenção divina durante sua vida. Por conseguinte, em AFP vemos que as ilusões da experiência da maternidade ruem pelo fato de Leda não ter controle algum sobre ela, bem como pelo fato de que, ao se tornar mãe, várias portas irão se fechar para ela. Em MA, o estereótipo do sagrado materno se faz na imagem que R impõe à Narradora sobre o que é ser mãe, uma Virgem Maria que deve estar pronta para o sacrifício. A mãe de Vicky, por sua vez, é um contraponto a essa expectativa, bem como pode ser a própria mãe da Narradora, que não a conheceu em presença, apenas pôde ver sua imagem nua em uma foto guardada pelo pai.
A Narradora, então, desde a adolescência se questionava sobre o desejo da maternidade. Inclusive, podemos depreender que, no meio social em que vivia, a maternidade não era uma escolha, mas uma função que a mulher deveria desempenhar. Já na fase da velhice, ela comenta que um dia, na piscina que frequentava, um menino acenara para ela e lhe mandara um beijo, e ela retribuiu pensando que a criança a confundira com sua mãe, que logo apareceu e o menino esqueceu o acontecido. Esse fato gerou nela algumas reflexões sobre a vontade de ser mãe:
O dia poderia ter ganhado leveza, mas ficou me rondando uma pergunta que me custa escrever aqui. Sei que é preciso desfazer alguns nós, como um bom quiroprata. Porque se eu contasse a sucessão de fatos alguém poderia me dizer que eu não quis ter um filho. Mas e quando não é possível querer? O desejo também precisa de preparação. Também há nele uma espera. No meu caso o tempo não o favoreceu e eu só pude me dar conta tardiamente de que teria sido bom querer. (Vidal, 2012, p. 103) [Grifos nossos].
Vemos, nesse excerto, bem como em outros acontecimentos ao longo da vida da Narradora (a ausência da mãe, a mudança do pai, a figura da mãe de Vicky, o abuso sexual na adolescência e o relacionamento abusivo com R, o desaparecimento de Vicky), que não lhe é dado espaço suficiente para a preparação, para pensar em ter um filho e que, talvez, tivesse sido bom ser mãe. Aqui as questões da maternidade são sobrepostas por todos os outros acontecimentos de sua trajetória como mulher. Em seu processo de rememoração e escrita, vemos que a possibilidade de a Narradora ser mãe lhe é negada pelos traumas que sofreu.
Em outro momento da narrativa, podemos refletir ainda sobre a experiência de uma maternidade possível (gravidez) em ausência (aborto). Quando a protagonista conta da viagem de ônibus que fez depois de Vicky desaparecer, à maneira de uma fuga e também de uma busca pelo pai, ela comenta sobre Luis, um rapaz que conheceu e com quem teve um rápido relacionamento durante o percurso. Ela escreve que quando chegou ao seu destino, depois de se recusar a descer no destino de Luis, seu corpo começou a mudar e ela percebeu que estava grávida:
Vou contar uma outra coisa que nunca contei a ninguém. Eu já havia chegado aqui quando percebi que meu corpo havia mudado. De repente meus peitos estavam inchados e a barriga sobressaía como se estivesse sempre com gases. Por alguns dias duvidei, mas depois aceitei o óbvio: eu estava grávida, recém-chegada e grávida. [...]
Havia um senso permanente de irrealidade. Era eu quem estava num outro país, esperando um bebê de um homem conhecido num ônibus de viagem? Era eu e fui eu quem não foi capaz de levar aquela imaginação adiante. Fui eu quem não tive o bebê. [...] O que me importa agora é que eu vim para cá e não deixei nada para trás (Vidal, 2012, pp. 145-146).
Observando o trecho acima, podemos problematizar a questão do aborto, que não fica explícita na fala da Narradora, pois ela não usa a palavra, mas cuja depreensão é possível quando diz não ter sido capaz de levar aquela imaginação adiante, dando a entender que não deu continuidade a gravidez. Também não fica explícito se ela sofreu aborto espontâneo ou provocado. Porém, um fato a ser constatado é que, levando em consideração toda a sua história, a gravidez e a maternidade naquele momento não eram desejadas, mesmo que no futuro ela repense sobre a possibilidade de ter tido um filho, chegando a sonhar com um menino.
Em MA, temos também a ausência materna. Em conversa com a amiga, a Narradora observa que a mãe de Vicky tem muitos livros e que eles estão sempre guardados. A colega faz uma piada sobre a mãe guardá-los como «bibelôs» e a Narradora defende, dizendo que gostaria também de ter uma mãe para ser dramática com ela: «- Bem que eu queria uma mãe pra dar ataque comigo» (Vidal, 2012, p. 26). Esse excerto revela que a Narradora é marcada tanto pela perda/ausência da mãe quanto pela posterior fuga do pai. Ela não tem uma referência materna a não ser a mãe de Vicky, com quem vai morar logo depois de o pai deixar o país em 1956. Para a Narradora, então, a referência de mãe disponível seria a da mãe de Vicky, uma mulher jovem e desprendida dos condicionamentos sociais que exigiam, naquela época, que uma mãe fosse recatada, cozinhasse bem, usasse roupas discretas, parecesse mais velha e, principalmente, não tivesse individualidade, mas que fosse apenas a mãe dedicada, polida, presente para a filha. Para a Narradora, que só conhecia sua própria mãe em uma fotografia, como já afirmando anteriormente, a mãe da amiga era uma outra forma de ver a maternidade quando comparada às demais mães. Esse «maternar» também foi o único que lhe fora oferecido diretamente, diferente de uma maternidade socialmente aceita. Então, a Narradora começa a observar, na relação das duas, como tudo era o oposto do que tinha em sua própria casa, quando ainda vivia com o pai:
Lembro que Vicky dizia coisas horríveis para sua mãe. Ela gritava e depois batia a porta do quarto com toda a força, fazendo tremer a casa. Eu nunca havia visto portas batendo entre pais e filhos. Na minha casa as portas quase sempre estavam fechadas. Também na minha casa não se falava aos gritos de um cômodo a outro, para reclamar, pedir ou apenas comentar, como faziam elas. Quando o jantar estava pronto, a mãe de Vicky berrava da cozinha, e de manhã, da porta da casa pedia também aos berros que nos apressássemos porque estava atrasada para o trabalho. [...] A mãe de Vicky nunca foi minha mãe. Vicky fazia cena de ciúmes quando ela me dava atenção ou razão, o que acontecia muito, porque eu era mais sensata, mais gentil, mais arrumada; em suma, mais dócil [...]. Mas Vicky sabia que os elogios tinha a ver com uma encenação pedagógica. Eram dirigidos a ela. Além disso, tanta docilidade só podia vir de um distanciamento que entre elas não existia (Vidal, 2012, p. 139).
Ademais, o que parecia estranho a princípio para a Narradora se mostra posteriormente como uma forma de entrosamento entre mãe e filha. E a Narradora nunca agiu da mesma forma com a mãe de Vicky pelo fato de haver um distanciamento entre as duas. Assim, a Narradora não poderia dizer que a mãe de Vicky exerceu, de fato, o papel materno.
Por sua vez, a ausência em AFP pode ser entendida a partir do momento em que, exausta de sua rotina e de não mais se reconhecer como indivíduo, como uma jovem que teria direito a uma satisfação plena, Leda sai de casa e abandona as filhas ainda pequenas, deixando-as só com o pai. Essa revelação, que Leda demora a fazer pois também era um assunto não abordado nem mesmo por ela em seus pensamentos, é bastante chocante socialmente, especialmente pelo fato de ela ser mulher, mãe. A questão de gênero aqui é reforçada pois o abandono paterno é muito mais comum que o materno, sendo que é mais «aceitável» por ser normalizado. Dessa forma, um pai que abandona não gera tanta comoção quanto uma mãe. Inclusive, durante a viagem, Leda se perde nessas reflexões, reconhecendo seu egoísmo, perdendo o fôlego ao se lembrar de momentos pesados como o episódio em que perdera a paciência com as meninas, culminando em uma porta de vidro quebrada. Antes, porém, chega a revelar o fato às napolitanas recém-conhecidas, Nina e Rosaria, com o intuito de escandalizar esta, que estava grávida: «Eu fui embora. Abandonei-as quando a maior tinha seis anos e a menor, quatro» (Ferrante, 2016, p. 83). Essa revelação atinge Nina em cheio, pois vivia um momento de desespero com a pequena Elena, que tinha ficado até doente pela perda da boneca. Nina em certa medida entende o sentimento de Leda e pensa sobre essa revelação por dias, pois foi Rosario quem reagiu de forma intempestiva - mesmo grávida, ainda não era mãe. Nina pede a Leda que conversem em segredo, pois queria saber se aquele sentimento um dia acabaria. Elas combinam de se encontrar no apartamento alugado por Nina e, enquanto conversavam sobre a ausência e o retorno de Leda, bem como sobre os sentimentos contraditórios que envolvem a maternidade, Nina descobre a boneca roubada e, enfurecida, perfura o abdome de Leda com o grampo de chapéu que ganhara da própria Leda, fazendo com que a protagonista corra até seu carro para sair dali rumo à sua casa, em Florença.
Após uma incursão sobre a maternidade em AFP e MA, passemos à abordagem sobre o envelhecimento ou a velhice nos dois romances. Beauvoir (1990) revela o silenciamento que há, ao longo do tempo, sobre questões ligadas ao envelhecimento, em especial, o feminino. Na literatura, o apagamento da velhice, infelizmente, também está presente, uma vez que são poucas as obras que trazem o tema como centro ou que trazem pessoas idosas como protagonistas. Assim sendo, a falta de representatividade de determinados grupos, como o dos idosos, é problemática. Ao menos somos otimistas quanto ao contexto contemporâneo, pela emergência de narrativas que representam grupos marginalizados.
Algo digno de ser destacado é o status que a velhice e o envelhecimento possuem socialmente. Geralmente, a palavra velho/a e semelhantes provocam um sentimento negativo, ao ponto que pode ser considerada até uma ofensa. Do ponto de vista biológico, passar pelo envelhecimento é atravessar um processo de perdas de habilidades físicas e mentais. Desse modo, entendemos o envelhecimento como um declínio, como algo a ser evitado, enganado. Ademais, o envelhecimento atinge diferentemente as mulheres pelo fato de suas características serem menos aceitas socialmente do que as masculinas. Enquanto uma lista de procedimentos estéticos é ofertada às mulheres, cujas rugas, cabelos grisalhos e quilos a mais representam descuido, desânimo com a própria aparência, aos homens são atribuídos aspectos positivos, como charme, experiência e maturidade. Entretanto, de modo geral, certos comportamentos e pensamentos são vetados aos idosos. Beauvoir (1990), inclusive, chega a afirmar que «se os velhos manifestam os mesmos desejos, os mesmos sentimentos, as mesmas reivindicações que os jovens, eles escandalizam; neles, o amor, o ciúme, parecem odiosos ou ridículos, a sexualidade repugnante» (Beauvoir, 1990, p. 10).
Ao analisar AFP e MA comparativamente, observamos que a Narradora evidencia o tema da velhice de forma mais explícita, posto que já é uma idosa. Leda, por sua vez, com quase 48 anos, está no que se convencionou chamar de «meia-idade», está em processo de envelhecimento, e é sob tal vertente que iremos comentar o tema em sua narração.
A Narradora de MA é alguém que vivenciou diversos eventos traumáticos durante a adolescência e por não ter resolvido essas questões problemáticas, resolve já na velhice escrever no verso dos cadernos do pai a própria história. Éclea Bosi (2015)) distingue os diferentes modos de lembrar entre adultos ativos e velhos. Para a autora, «Ao lembrar do passado ele [o velho] não está descansando, por um instante, das lides cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele está se ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida» (Bosi, 2015, p. 60).
Assim, para o velho, o ato de lembrar não seria um devaneio, mas uma reconstrução de si e da sua vida. Nesse sentido, pensando na Narradora, que vivenciou tantos traumas, o ato de lembrar surge como uma urgência. Por diversas vezes, a Narradora pede uma trégua à sua memória, já que recordar é um ato involuntário e aparentemente doloroso que faz parte de seu cotidiano: «Por mais que me esforce para não lembrar é o que faço o dia inteiro. Tantas horas preocupada em fazer perdurar os acontecimentos e agora que é o momento de esquecer minha mente parece obstinada em reter tudo até o final» (Vidal, 2012, p. 41).
A escrita da Narradora opera, sobretudo, em dois níveis: as reflexões sobre o cotidiano e sobre o passado. Diante disso, interessa-nos pensar o porquê de, apenas na velhice, a protagonista decidir ler a história do pai e escrever sobre a dela. Pensamos que o que pode ter acontecido, ao longo da vida, foi um silenciamento, não elaboração ou recalque dos eventos traumáticos que a marcaram e que, ao vivenciar a velhice, época em que rememorar é quase inevitável, a Narradora tenta de alguma forma elaborar aquilo que viveu.
Entretanto, vale ressaltar que, mesmo no momento da enunciação, vê-se uma narrativa marcada por lapsos e silenciamentos. Destacamos, dessa forma, a capacidade que o texto literário tem de materializar, por meio da escrita, justamente aquilo que não foi dito, o não-dito, o interdito, os lapsos, e isso pode ser verificado na obra de Vidal. Talvez seja por essa dificuldade em pensar sobre o passado e falar sobre ele no tempo da enunciação que, ainda na velhice, a Narradora se apresenta como um sujeito melancólico. Sobre isso, em entrevista, Vidal (2012) afirma que é uma característica de suas personagens a melancolia e que, em MA, esse estado melancólico é aprofundado, já que a Narradora é um sujeito que está em outro país, vivendo de forma isolada - haja vista que não se percebe, durante a narrativa, o pertencimento a algum grupo, seja ele familiar ou social -, mas que necessita conhecer e se conhecer na história do próprio pai. É por esse motivo que ela escreve.
Gagnebin (2009), ao tratar da reconstrução do passado, diz que o «trauma é a ferida aberta na alma» (p. 110), justamente porque há um «rastro» do passado desaparecido que se projeta no tempo presente. Logo, o que se percebe em MA é que essa Narradora, mesmo estando na velhice, ainda não conseguiu elaborar o passado traumático - o estupro, a ausência materna e paterna, o desaparecimento de Vicky - e, por isso, resolve escrever no verso dos cadernos do pai a própria história, o que não nos parece uma escolha aleatória e muito menos vazia de significado. Escrever nos mesmos cadernos que o pai escreveu é uma forma de buscar sua ascendência, sua identidade e também de superar aquilo que não compreendia.
Na representação que Vidal (2012) faz da velhice a partir da Narradora, estão presentes tanto as dificuldades de ordem biológica e social impostas a uma senhora que vive sozinha, como também as aflições de ordem psíquica que perpassam nossa vida enquanto sujeitos, independente da faixa etária:
Estou me perdendo. Por sorte já chegou a hora da caminhada da manhã. Tudo poderá ser feito com muita calma. Tempo não falta. Poderei me trocar. Primeiro tirar o pijama, depois ficar sob a ducha e ao sair secar o cabelo com a toalha. Talvez fiquem alguns fios nela, mas isso não vai me preocupar, porque de tempos em tempos meu cabelo começa a cair, mais agora, com esta idade. «Com esta idade», como diz minha ginecologista, ainda que bastante mais jovem que eu (Vidal, 2012, pp. 50-51).
Nesse excerto, o que vemos, assim como ao longo do romance, é uma senhora que mantém uma rotina: o banho matinal, a caminhada. Mas, mesmo nessas ações que são do cotidiano, percebemos questões mais profundas. Ao afirmar que está se perdendo, a Narradora não se refere apenas aos cabelos, mas a si própria. Paradoxalmente, mesmo sentindo que se perde, ela apresenta-se a nós como um sujeito que não consegue esquecer. Se, na juventude, a grande preocupação dela era o medo de não conseguir se lembrar, na velhice, a grande questão é o não conseguir esquecer. Também por essa relação paradoxal de sentimentos é que a Narradora assume os diários do pai como herança e resolve escrever sobre si no verso, como uma tentativa tanto de se encontrar, como também de resolver fatos recalcados da adolescência e juventude que insistem, agora, na velhice, em voltar.
Entre esses fatos silenciados durante toda a vida, destacamos como a ausência marca, ainda na velhice, a vida da enunciadora. Para além do desaparecimento de Vicky, faltou e falta ainda à Narradora o pai. Ele representa a falta de acolhimento e proteção, como no episódio do estupro. Desse modo, a Narradora pensa no pai como uma incógnita: «Talvez ele [o pai] imaginasse o que estava em jogo para mim, pois havia uma pergunta, uma só, que agora eu não tenho coragem de fazer, nem para mim mesma e muito menos escrever aqui. Para mim meu pai era uma pergunta» (Vidal, 2012, p. 61). O que a Narradora evidencia nesse trecho vai ao encontro da afirmação feita anteriormente: o pai projeta-se na vida da filha como uma pergunta, como algo que necessita de resposta. A escrita da filha aparece como uma espécie de «vingança» contra esse pai ausente, que não esteve presente na vida da filha e que também a excluiu da dele, já que nos diários que a Narradora encontra só a menção a ela uma única vez. Em um dos capítulos em que a enunciadora mescla fatos cotidianos, como comprar sapatos, com reflexões sobre os diários do pai, ela declara sobre si mesma, sobre a condição dura do envelhecer - já que nem sapatos ela consegue encontrar para si -, sobre o pai e sobre a escrita que realiza:
Será essa dureza a velhice? Que engole toda a generosidade que eu poderia dedicar a ele e me impede de enxergar seu drama. Me impede de ver na sua caligrafia informe o traço incerto das mãos. Mãos sem comando, que só escrevem porque o ato automático de produzir letras é um alívio mínimo que não pode ser desconsiderado. Mais uma vez estou falando de mim e não dele. São minhas mãos, e tudo faz parte de uma vingança póstuma por ele ter deixado fora de sua cronologia o ano do meu nascimento. (Vidal, 2012, p. 111) [Grifos nossos].
A Narradora se ressente pelo fato de o pai não ter como um marco de sua vida o nascimento dela. Seria a velhice a responsável por sua dureza nesse momento ou a dureza que a faz querer se vingar do pai advém do sofrimento que passou em razão de sua ausência? Como entender, mesmo na velhice, esse pai que a deixa ainda adolescente com uma vizinha e vai embora? Que trauma terrível ele teria vivido para abandoná-la? E o que houve entre ele e sua mãe? Essas são perguntas que ficarão em suspenso, mas o fato de poder, literal e metaforicamente, passar a limpo a vida do pai traz algum alívio à velhice da Narradora.
Por seu turno, em AFP podemos comentar, em relação a Leda, sobre o fato de ser ela uma mulher já consciente de sua «meia-idade» e da passagem do tempo. No início de suas reflexões, enquanto está eufórica com a pretensa liberdade que conquistou com a saída das filhas de sua casa, ela se vê rejuvenescida:
Em poucos meses, recuperei o corpo magro da juventude e adquiri uma sensação de força suave. [...] Uma noite, me olhei no espelho. Eu tinha quarenta e sete anos, completaria quarenta e oito dali a quatro meses, porém, como em um passe de mágica, tinha rejuvenescido muitos anos (Ferrante, 2016, p. 9).
Entretanto, como o avanço da narração, essa sensação de ganho de força, ritmo de raciocínio e corpo da juventude vai se esvaindo. O desbloqueio de todas as memórias de sua infância e juventude em Nápoles, provocadas por Nina, Elena, a boneca e a família barulhenta, faz com que Leda perceba a passagem do tempo. Durante a adolescência e juventude, Leda se entende rebelde, diferente, a «estranha no ninho». Ela não se identifica com a mãe, tampouco com os demais integrantes da família, que julga rudes e mal-educados. Na primeira oportunidade, que é quando se torna universitária, sai de casa rumo a Florença. Lá conhece Gianni, um rapaz calabrês, com quem se casa ainda bem jovem e logo tem as filhas. No afã de fugir de sua família de origem a qualquer custo, pois não quer ser como a mãe, parece querer apagar o passado por meio da constituição de seu próprio núcleo familiar. Porém, Leda já se encontrava, aos 25 anos, totalmente comprometida com a vida de mãe, esposa, dona de casa e estudante, com aspirações acadêmico-profissionais. Esse desejo de se distanciar da mãe a fez, tragicamente, reencontrá-la no relacionamento com suas próprias filhas. Ela repete certos padrões de comportamento e se comporta como a própria mãe, com o agravante de abandonar as meninas por três anos. Nessa linhagem, a mãe de Leda sempre culpava as filhas por se sentir infeliz. Ela sempre as ameaçava com o abandono:
Em uma, duas, três ocasiões ameaçou a nós, suas filhas, dizendo que iria embora, vocês vão acordar de manhã e não vão mais me encontrar. Eu acordava todos os dias tremendo de medo. Na verdade, ela sempre estava lá; nas palavras, vivia sumindo de casa (Ferrante, 2016, p. 21).
Por sua vez, em um ponto Leda não fez igual à mãe: não ameaçou as filhas com o abandono por se sentir infeliz pelos impedimentos da maternidade, ela simplesmente decidiu ir embora: «Deixei meu marido e minhas filhas em um momento no qual tinha certeza de ter aquele direito, de estar do lado certo (...)» (Ferrante, 2016, p. 166). Já Bianca e Marta são diferentes, elas sim conseguirão se distanciar de tudo aquilo que Leda desprezava, mas que estava enraizado em si:
Na verdade, apesar de ter fugido, não fui muito longe. [...] Minha mãe sabia se alternar sem dificuldades entre a ficção da bela senhora pequeno-burguesa ao surto atormentado sobre a sua infelicidade. [...] As duas garotas, por sua vez, elas sim, realmente tinham se distanciado. Pertencem a outro tempo. Eu as perdi para o futuro (Ferrante, 2016, p. 109).
Ao perceber as diferenças intergeracionais, Leda observa como o tempo passou e ela ainda mantinha seus hábitos napolitanos, tanto é que afirma que as filhas zombam cruelmente de seu tom dialetal ao falar inglês, a língua de seu ofício, cuja pronúncia ela julgava dominar. Em outros termos, Leda denunciava sua origem em nuances perceptíveis aos outros, mas que ela acreditava controladas. Chega a concluir que poderia tranquilamente - apenas precisaria de um pouco de tempo e esforço - ser uma mulher como Rosaria, a cunhada de Nina.
Ao ver toda a sua vida diante de seus olhos por intermédio de suas memórias, Leda entra em uma espécie de devaneio e rouba a boneca, sem razão aparente. No apartamento, pensa que deve devolver o brinquedo, mas observa que Nani tem a barriguinha preenchida com alguma coisa, então quer limpá-la e, quem sabe, até comprar umas roupinhas para vesti-la. Sai de sua boca uma água suja. Por fim, consegue retirar o que ela carregava no ventre: uma minhoca. Ela se vê brincando naquele instante, «uma mãe não é nada além de uma filha que brinca (...)» (Ferrante, 2016, p. 152). Esse momento é bastante simbólico no que tange à maternidade, especialmente ao pensarmos no que Nani representa nas brincadeiras de Elena, ou seja, uma filha e também uma mãe, em uma espécie de mise-en-abyme sem fim de mães e filhas. Depois desse evento, Leda se sente transtornada, mudando até a percepção que teve de si ao se ver «livre»: «A impressão que eu tinha de mim naqueles meses mudara abruptamente. Não me achei rejuvenescida, mas envelhecida, magra demais, um corpo tão seco a ponto de parecer sem espessura, pelos brancos em meio aos negros em meu sexo» (Ferrante, 2016, p. 157). Leda se percebe, enfim, envelhecendo, envelhecida; inclusive aponta marcas do processo, que são os pelos brancos em seu sexo.
Porém, antes dessa percepção do presente, Leda começa a se observar em mudança ainda na adolescência das meninas, pois assim que toma consciência do fato de elas já chamarem a atenção masculina, inicia uma competição tácita com elas. Quando as três contavam com 15, 13 e quase 40 anos, Leda via que os olhares masculinos, nas ruas, saíam lascivamente de seu corpo para o delas. Entre assustada e contente, ela disse a si mesma, «com uma irônica melancolia: uma fase está prestes a terminar» (Ferrante, 2016, p. 63). Por outro lado, essa consciência fez com que Leda dedicasse mais atenção à própria imagem: «como se quisesse conservar o corpo ao qual estava acostumada, evitar que ele me deixasse» (Ferrante, 2016, pp. 63-64). A narradora entende que já não era mais tão jovem como as filhas e que, se quisesse contar com a atenção dos homens, deveria se esforçar mais. Seria impossível vencer a juventude, mas com cuidados mais intensivos ainda poderia se manter, em sua concepção, atraente. Vemos aqui que a relação entre beleza e juventude, para a mulher, é diretamente proporcional. Sozinha, Leda poderia até despertar o interesse dos homens; porém, andando junto com as filhas, a concorrência seria desleal.
Essa tentativa de Leda de despertar o interesse dos homens, em especial os mais jovens, os rapazes que saíam com suas filhas, chegou a levá-la ao constrangimento. Ao mesmo tempo em que se regozijava pelo fato de as filhas serem notadas, pois queria que fossem amadas, sentia verdadeiro terror com a possibilidade de serem infelizes - como se a felicidade das mulheres pudesse ser alcançada apenas com seu «sucesso amoroso» -, Leda achava que «as lufadas sensuais que sopravam delas eram violentas, vorazes», e acreditava que os corpos de Bianca e Marta tinham «como que roubado o poder de atração» (Ferrante, 2016, p. 64) do seu. E quando as duas diziam que os amigos a achavam jovem e atraente, Leda se sentia satisfeita. Por isso, quando elas levavam rapazes para casa, Leda se arrumava mais, preparava guloseimas, chegando mesmo a flertar com eles. Em certa ocasião, porém, reconheceu que exagerara, pois o amigo de Bianca, um garoto de 15 anos, perguntou à menina se, da próxima vez, Leda iria «pagar um boquete para ele» (Ferrante, 2016, p. 64). A partir deste evento, Leda foi cedendo e não mais impôs sua presença nem sua voz aos amigos das filhas. Ela reconheceu, por fim, que já não era mais tão jovem quanto acreditava diante dos olhos dos homens.
No presente da enunciação, há um jogo entre juventude e velhice por meio das figuras masculinas de Gino e Giovanni, moradores locais da cidade praiana para onde Leda viajara. Gino, estudante universitário e salva-vidas durante as férias, era um jovem rapaz que despertou a atenção de Leda desde o primeiro dia. Ela imaginava que ele poderia chamar a atenção das filhas, que ele seria o tipo de rapaz para quem elas olhariam. Uma noite os dois se encontram na cidade e Leda o convida para um jantar. Leda conclui que ele é apaixonado por Nina e isso a deixa descontente: «me fez sentir uma pontada de desagrado que se estendia até a garota, como se ela, mostrando-se todo dia na praia e atraindo-o, tirasse algo de mim» (Ferrante, 2016, p. 70). A paixão de Gino por Nina faz com que Leda se sinta preterida, é a confirmação de que os rapazes não a veriam nunca mais como alguém jovem e atraente. Quanto à Giovanni, o zelador responsável pelo apartamento, o que acontece é o contrário. Como Leda é mais jovem que ele, quase com a possibilidade de ser sua filha, parece haver algum interesse da parte dele. Inclusive, uma noite, em um bar, Giovanni se encontrava entre amigos da mesma idade que ele e vai até Leda para conversar com ela, o que faz com que desconfie que ele queira se exibir para os amigos, como se ele tivesse intimidade com ela. Isso deixa Leda bastante incomodada, o que nos leva a concluir que ela não estaria mais no raio de interesse dos mais jovens, apenas dos bem mais velhos. E isso denuncia uma espécie de «prazo de validade» da percepção da beleza e juventude de uma mulher.
O objetivo principal deste artigo foi analisar comparativamente os romances A filha perdida, de Elena Ferrante (2016) e Mar azul, de Paloma Vidal (2012), sob os temas da maternidade e da filiação, além do envelhecimento e da velhice, especialmente em relação às suas protagonistas, Leda e a Narradora não-nomeada. A partir dessa análise comparativa, nossa hipótese se construiu sobre a ideia de que a maternidade/filiação e o envelhecimento/velhice, em ambas as narrativas, são catalisadoras da memória das protagonistas: esses temas, entrelaçados nas vivências de ambas, despertam suas lembranças e fazem com que elas organizem e narrem suas experiências, inclusive por meio da escrita. Ademais, elas seriam, no que concerne a esses temas, como verso e reverso uma da outra, posto que tanto a maternidade e a filiação quanto o envelhecimento e a velhice estão presentes e ausentes em uma e outra de modo não-equivalente ou não-correspondente. Apesar de Leda ser mãe e a Narradora, não, isso não significa uma hierarquia em relação ao trato do tema, ou seja, que Leda possa falar sobre ele com mais autoridade apenas por ter engravidado e dado duas crianças à luz, e isso se dá exatamente pela relação entre presença e ausência que a leitura comparativa que propomos promove.
Quanto à velhice, a Narradora é velha e Leda, ainda não; porém, a narradora de Ferrante se encontra na meia-idade, o que faz com que entendamos que está em processo de envelhecimento. Da mesma forma que no tema anterior, não podemos afirmar que o discurso da Narradora tenha mais credibilidade por ela já ser velha. Acompanhamos o cotidiano da mulher idosa e sua relação com o passado individual e coletivo de seu país de origem, em uma tentativa de acerto de contas com seus traumas, em especial aquele que mais diretamente a induz à escrita, que é a ausência do pai e a herança de seus diários. Observamos também como uma mulher de meia-idade lida com a passagem do tempo, as mudanças em seu corpo e com a preferência dos homens pelas mulheres mais jovens, por serem consideradas mais atraentes.
Ademais, foi nosso intento a promoção do diálogo entre duas literaturas intercontinentais, a italiana e a brasileira, sob o viés da literatura comparada e também dos estudos culturais. Por isso, julgamos relevante realizar uma introdução que apresentasse brevemente essas linhas críticas e metodológicas. É certo, pois, que os temas abordados são capitais quando se trata do chamado «universo feminino», posto que tanto um quanto outro não dependem apenas dos aspectos biológicos inerentes a eles, mas também aos aspectos sociais, culturais e históricos que os envolvem.
Araújo, L. M. B. M., Manzano, L. C. G. & Ruiz, M. A. A. (2020). Discurso e memória: o materno e o sagrado na relação com a história. Em Costa, J. L. & Baronas, R. L. (Orgs.). Feminismos em convergências: discurso, internet e política. (pp. 135-151). Grácio Editor. https://cedoch.fflch.usp.br/sites/cedoch.fflch.usp.br/files/inline-files/feminismos.em_.convergencias.pdf#page=135.
Heck, R. & Langdon, E. (2002). Envelhecimento, relações de gênero e o papel das mulheres na organização da vida em uma comunidade rural. Em Minayo, M. & Coimbra Junior, C. (Orgs.) Antropologia, saúde e envelhecimento. (pp. 129-151). FIOCRUZ https://books.scielo.org/id/d2frp/pdf/minayo-9788575413043-08.pdf
Lopes, C., Yerro, J. & Lima, R. (2023). Apresentação: Literatura Comparada e suas encruzilhadas (políticas, discursivas e interculturais). Em Revista Brasileira de Literatura Comparada - Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC). 25(8), 3-10. https://revista.abralic.org.br/index.php/revista/article/view/876.
Pontes Júnior, G. (2014). Os Estudos Culturais e a crítica literária no Brasil. Em Estudos sobre Literatura Brasileira Contemporânea. (44), 17-36. https://www.scielo.br/j/elbc/a/nBbv6R6DJwcxZmsLC7SkBGp/?format=pdf&lang=pt
[1] Doravante, AFP.
[2] Não vamos, neste trabalho, discutir a «ausência autoral» de Ferrante na cena pública. Consideramos, assim como a crítica especializada, a autoria como sendo de uma mulher pela escolha da persona autoral feminina. (Cf., p. ex.: Secches, 2019). Uma longa experiência de ausência: a ambivalência em A amiga genial, de Elena Ferrante [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-09092019-120933/pt-br.php).
[3] Doravante, MA.
[4] A partir deste momento, usaremos o termo «Narradora», com «N» maiúsculo, para nos referir à personagem não nomeada de Vidal (2012), a fim de não confundi-la com a protagonista de Ferrante (2016), que também é narradora-protagonista.
[5] Ambos os verbetes foram consultados no aplicativo do Dicionário de Português licenciado para Oxford University Press.
[6] Ferrante (2017), em entrevista a Francesco Erbani, é questionada se a família napolitana de AFP seria camorrista, ao que responde: «Sim, embora eu tenda a narrar comportamentos para os quais qualquer pessoa da Campânia pode descambar tranquilamente. Quando criança, conheci uma napoletanidade não camorrista que sempre corria o risco de se tornar camorrista e senti à minha volta a naturalidade da travessia dessa fronteira, como se o salto para a criminalidade fosse de alguma forma preparado não apenas pela miséria ou pela perda de confortos precários, mas também pela “normalidade cultural”» (Ferrante, 2017, p. 228).
[7] É importante ressaltar que entendemos a narrativa da Narradora sob o aspecto da filiação em relação ao pai, com quem conviveu por um pouco mais de tempo, e que a escrita dela decorre, entre outros motivos, também da escrita paterna; entretanto, como estamos refletindo sobre um contexto de mulheres, nossa opção é perceber a filiação também sob a ausência.