ISSN 2011-799X
Artigo recebido em:10/02/2020
Artigo aceito em: 04/05/2020
doi: 10.17533/udea.mut.v13n2a02A tradução de Zora Neale Hurston
para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva
feminista e interseccional1
Ana Gretel Echazú Böschemeier
gretigre@gmail.com
Universidade Federal de Rio Grande do Norte, Brasil
Natalia Cabanillas
nataliacabanillas@unilab.edu.br
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Brasil
Sandra S. F. Erickson
sandra@ufrnet.br
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Victória Dias Barbosa
victoriadias@ufrn.edu.br
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Fernanda Ferreira do Nascimento
fernandafnascimento1@gmail.com
https_//orcid.org/0000-0002-5967-3416
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Mikaelle Thaisa da Costa
mikaellecosta@gmail.com
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Fídias Cavalcanti Freire
phidias1350@gmail.com
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
1 Nesse texto apresentamos os resultados parciais do projeto de extensão proex -97661265 chamado RECânone,
“oficina permanente de tradução, interpretação e legendado de materiais indígenas, afrodiaspóricos e latines”, coor-
denado pela Professora Ana Gretel Echazú e cujo primeiro ciclo teve início entre julho e dezembro de 2019 na
Universidade Federal de Rio Grande do Norte, Natal, Brasil.
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional229Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
Resumo
Na nossa prática de pesquisa, ensino e extensão interligadas, nos valemos dos processos tradutórios
como ferramenta para ampliar lugares de fala. Aqui discutimos os processos de leitura e tradução de
alguns textos escolhidos de autoria de Zora Neale Hurston, antropóloga, ativista e artista afro-nor-
te-americana dos anos 1930, que inspirou uma geração de pensadoras e escritoras negras vinculadas
aos direitos humanos através da escrita de compilações folclóricas, ensaios autobiográficos, ficções
etnográficas, contos, relatos e novelas. Nosso trabalho pretende contribuir para reivindicar o lugar
de Hurston dentro das memórias da antropologia e da cultura. Na explicitação do processo tradutó-
rio, nos valemos das ferramentas teórico-metodológicas da interseccionalidade e da decolonialidade,
questionando a solidez do cânone antropológico por meio da tradução cultural de vozes subalterni-
zadas no diálogo entre espaços Sul-Sul.
Palavras-chave: Zora Hurston, tradução, extensão, interseccionalidade, antropologia.
La traducción de Zora Neale Hurston al canon antropológico: prácticas
de extensión universitaria desde uma perspectiva feminista e interseccional
Resumen
En nuestra práctica de investigación, enseñanza y extensión interrelacionada, nos valemos de los
procesos de traducción como herramienta para ampliar los lugares de enunciación. En este artículo
se analizan los procesos de lectura y traducción de algunos textos elegidos escritos por Zora Neale
Hurston, antropóloga, activista y artista afro-norteamericana de la década de 1930, que inspiró a una
generación de pensadores y escritores negres en materia de derechos humanos mediante la redacción
de compilaciones folklóricas, ensayos autobiográficos, ficciones etnográficas, cuentos, relatos y no-
velas. Orientada por Franz Boas en la Universidad de Columbia y colega de figuras antropológicas
clave como Ruth Benedict y Margaret Mead, el camino de Hurston fue diferente: a pesar de ser una
autora prolífica, crítica y muy original, la antropóloga murió en la pobreza y en el olvido de sus pares.
Nuestro trabajo tiene como objetivo contribuir la demanda por el lugar de Hurston en las memorias
de la antropología y la cultura. Para explicitar el proceso de traducción se utilizan las herramien-
tas teórico-metodológicas de la interseccionalidad y la descolonialidad, cuestionando la solidez del
canon antropológico a través de la traducción cultural de voces subalternizadas en el diálogo entre
espacios Sur-Sur.
Palabras clave: Zora Hurston, traducción, extensión, interseccionalidad, antropología.
Translating Zora Neale Hurston Into the Anthropological Canon:
An Intersectional Feminist Approach to a Community Outreach Project
Abstract
In our intertwined practice of research, teaching and community outreach, we make use of trans-
lation processes as a tool to expand situated narratives. Here we discuss the reading and translation
processes of some selected texts written by Zora Neale Hurston, anthropologist, activist and afrode-
scendant artist of the 1930s born in the us, who inspired a generation of Black Civil Rights thinkers
and writers through the writing of folk compilations, autobiographical essays, ethnographic fictions,
short stories, stories and novels. Supervised by Professor Franz Boas at Columbia University and a
colleague of key anthropological figures, such as Ruth Benedict and Margaret Mead, Hurston’s path
was different: despite being a prolific, critical and highly original author, the anthropologist died in
poverty and in the oblivion of her peers. Our work aims to claim Hurston’s place within the canon of
Ana Gretel Echazú Böschemeier, Natalia Cabanillas, Sandra S. F. Erickson, Victória Dias Barbosa,
Fernanda Ferreira do Nascimento, Mikaelle Thaisa da Costa e Fídias Cavalcanti Freire230Mujeres y traducción en América Latina y el Caribe
anthropology and culture. In explaining the translation process, we make use of the theoretical-meth-
odological tools of intersectionality and decoloniality, questioning the solidity of the anthropological
canon through the cultural translation of subalternized voices in the dialogical South-South space.
Keywords: Zora Hurston, translation, extension, intersectionality, anthropology.
La traduction de Zora Neale Hurston dans le canon anthropologique :
pratiques d’extension dans une perspective féministe et intersectionnelle
Résumé
Dans notre pratique de recherche scientifique, d’enseignement et d’extension interconnectée, nous
faisons fort des processus de traduction comme outil pour étendre les lieux de parole. Nous discu-
tons ici les processus de lecture et de traduction de quelques textes sélectionnés qui ont été écrits par
Zora Neale Hurston, anthropologue, militante et artiste afro-américaine (États-Unis d’Amérique) des
années 1930, qui a inspiré une génération de penseurs et d’écrivains noirs spécialisés dans les droits
de l’homme à travers l’écrit de compilations folkloriques, d’essais autobiographiques, de fictions eth-
nographiques, de nouvelles, de récits et romans. Formée par Franz Boas à l’Université de Columbia
et collègue de figures clés de l’anthropologie tels que Ruth Benedict et Margaret Mead, le parcours
de Hurston a été différent : bien qu’ayant été une auteure prolifique, critique et particulièrement ori-
ginale, l’anthropologue est morte dans la pauvreté et dans l’oubli de ses pairs. Notre travail vise à
contribuer à la revendication de la place de Hurston dans les mémoires de l’anthropologie et de la
culture. Dans l’explication du processus de traduction, nous faisons fort des outils théoriques-métho-
dologiques de l’intersectionnalité et de la décolonialité, en questionnant la solidité du canon anthro-
pologique à travers la traduction culturelle des voix qui ont été subordonnées dans le dialogue entre
espaces Sud-Sud.
Mots-clés : Zora Hurston, traduction, extension, intersectionnalité, anthropologie.
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional231Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
1. Introdução
A escolha, leitura e tradução do inglês para o
português de textos de Zora Neale Hurston, an-
tropóloga afro-norte-americana dos anos 1930
foi, dessa vez, o catalisador de nosso diálogo
entre conhecimentos antropológicos e da cultu-
ra produzidos entre margens e espaços Sul-Sul
(Sousa Santos, 2010) no intuito de nos alinhar-
mos com outras memórias e heranças de conhe-
cimento em chave interseccional e decolonial.
Nosso projeto se encontra situado no contexto
da educação superior brasileira: entendemos
relevante destacar o caráter historicamente
racista e elitizado da mesma a despeito da
democratização através de diversas políticas
educativas implementadas entre 2003 e 20152
(Silva e Melo, 2018). Apesar destes processos
recentes, a gravitação em torno de uma edu-
cação elitizada e excludente em termos raciais
nas universidades federais continua impactan-
do na escolha de temas, metodologias e, final-
mente, recursos bibliográficos dentro das áreas
e especialidades de pesquisa. Nesse ponto, si-
tuamos a responsabilidade histórica de plura-
lizar as leituras obrigatórias e disponíveis num
leque que contemple a diversidade da intelec-
tualidade negra e feminina em diversos contex-
tos, articulando este projeto de extensão como
uma contribuição aos processos mais amplos
de reparação epistêmica em curso (Carneiro,
2005). Com esse intuito, nos aproximamos de
um debate sobre os clássicos que constituem
o cânone antropológico, tensionando os mo-
tivos que contribuem para a manutenção e
2 Destacam-se o programa pro -uni , fies, a Lei de Co-
tas e as políticas de interiorização das ies (Institutos de
Educação Superior), como medidas para favorecer o
acesso ao ensino superior de população anteriormen-
te marginalizada (habitantes do interior, comunidades
tradicionais, população negra e pobre, dentre outras) e
as leis 10.639 e 11.645 no que diz respeito à inclusão
de conteúdos sobre história africana e afro-brasileira e
indígena na educação básica (Gomes, 2017).
visibilidade de certos textos, enquanto que
outros são deixados de fora. Após essas duas
considerações de índole sociopolítica e teóri-
ca, nos atemos à obra da antropóloga Zora
Neale Hurston a partir da tradução de textos
escolhidos da autora e de uma leitura de seu
itinerário biográfico, colocando a sua vida em
diálogo com a riqueza da sua obra, sempre
controversa e radicalmente original. Na apre-
sentação dos materiais traduzidos nos interes-
sa evidenciar o processo de tradução cultural,
realizado não somente através da prática tra-
dutória restringida à cena textual, mas tam-
bém por meio de um diálogo mais amplo com
aspectos da prática cultural (Bhabha, 1994) por
meio de intervenções, performances e ativida-
des de ensino-aprendizado, ensaiando formas
criativas de apropriação do texto. Finalizando
o artigo, nos permitimos partilhar uma breve
análise do corpo textual traduzido, destacando
a sua importância para o âmbito da discussão
antropológica e cultural.
2. Antropologia e justiça epistêmica: do
resgate à reparação
Meu propósito central como estudante é o de
aprofundar o conhecimento geral a respeito de meu
povo, fazer a ciência e as artes musicais da minha
gente avançar, mas de um jeito Negro e longe do jeito
do homem branco.
Zora Neale Hurston, Requerimento de Bolsa, John Si-
mon Guggenheim Memorial Foundation, 1933 (como citada
em Cotera, 2008, p. 71)
Uma institucionalidade colonizadora ultra-
passa a antropologia brasileira, colocando-a
no lugar de ciência ao resgate de conteúdos cultu-
rais diversos que depois serão cristalizados em
museus, textos acadêmicos e belos produtos
audiovisuais que alimentam uma imagem fa-
laciosa e folclorizada do Brasil como paraíso
da democracia racial. De acordo com José
Jorge de Carvalho (2018), ainda que tenha se
iniciado o processo de reparação histórica de
Ana Gretel Echazú Böschemeier, Natalia Cabanillas, Sandra S. F. Erickson, Victória Dias Barbosa,
Fernanda Ferreira do Nascimento, Mikaelle Thaisa da Costa e Fídias Cavalcanti Freire232Mujeres y traducción en América Latina y el Caribe
comunidades negras e indígenas a partir das co-
tas étnico-raciais na educação superior brasilei-
ra, há uma longa estrada a ser percorrida. Pois,
apesar das cotas terem enegrecido em alguma
medida as salas de aula, esse enegrecimento
continuará sendo relativo enquanto não sejam
acolhidos e ensinados os conhecimentos, olha-
res e epistemes sensíveis de ditas comunidades.
Um veículo privilegiado para a incorporação
de outros saberes ao campo universitário se-
riam certamente os e as professoras negres3 ou
pertencentes a outros coletivos marginalizades.
Porém, os corpos docentes das universidades
públicas federais brasileiras são predominante-
mente compostos por pessoas brancas. Confor-
me os dados do Censo da Educação Superior
de 2018, professores negres são apenas 30% dos
docentes universitários, e 14% dos acadêmicos
que desenvolvem pesquisas (Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas, 2018). Apenas cinco
universidades públicas em todo o Brasil tem
maioria de professores negres. Podemos perce-
ber que com todos os avanços, “o movimento
negro educador” (Gomes, 2017) tem pela fren-
te uma enorme luta pela justiça epistêmica.
3 Usamos o morfema “e” para nos referirmos ao femi-
nino, ao não-binário e ao masculino como alternativa
escolhida dentro da proposta mais ampla da linguagem
inclusiva. Nossa escrita procura fortalecer a tendência
de instituições do Estado, organismos internacionais
como a onu e dezenas de universidades e grupos par-
lamentares latino-americanos e espanhóis que, a partir
da pressão de movimentos de mulheres e feministas, se
posicionaram explicitamente em prol da prática de uma
linguagem inclusiva em termos de gênero (Wasserman
& Weseley, 2009; Quintero, 2019). Vale dizer que, não
somente o espanhol e o português estão vivenciando es-
ses processos, mas também línguas como o finlandês, o
sueco e o inglês. No caso do inglês, o pronome pessoal
them passou a ser utilizado para se referir a pessoas com
gênero neutro, e foi uma das palavras mais procuradas
no google durante 2019 (Merriam Webster News, 2020).
A Carta dos Direitos Humanos das Nações
Unidas (onu, 2009 [1948]), reconheceu, den-
tre outros direitos, o direito a ter um nome. Os
povos indígenas latino-americanos e de outras
latitudes do mundo demandam modificações
que coletivizam essa proposta: o direito a
existir coletivamente enquanto povo (ou gru-
po étnico), do qual se desprende o direito à au-
to-adscrição étnica (Rivera Cusicanqui, 2010;
Sousa Santos, 2010). O direito de expressar
o que se é sem intermediários interpretativos
atinge não somente os aspectos sociais e cultu-
rais das nações, mas também aqueles que são
propriamente epistêmicos (Carneiro, 2005).
Esse direito se associa com o termo “lugar de
fala” proposto pela filósofa brasileira Djami-
la Ribeiro (2019), que se propõe a discutir a
necessidade de incluirmos na nossa formação,
debates e bibliografias — isto é, no nosso hori-
zonte de referenciamentos acadêmicos — au-
torias que sejam representativas de segmentos
historicamente marginalizados na sociedade.
Entre as iniciativas contra-hegemônicas que
nos inspiram se encontram o projeto Encon-
tro de Saberes (Carvalho, 2018),4 a experiên-
cia universitária da unilab,5 as traduções do
4 Existem mais de oito universidades brasileiras nos ní-
veis da graduação e da pós-graduação, e neles são cha-
mades mestras e mestres das culturas populares para
darem aulas como professores dentro de cursos diver-
sos, tais como arquitetura, psicologia, artes cênicas e
antropologia. Ali, os lugares de fala são potencializados
de forma direta dentro dos espaços acadêmicos, com
as presenças de lideranças de comunidades — quilom-
bolas, indígenas, do Movimento Sem Terra, de terreiro,
ribeirinhas, ciganas — no papel de educadores/as.
5 A unilab é um projeto em curso de universidades
federais interiorizadas (Ceará e Bahia) e internaciona-
lizadas através de acordos de cooperação Sul-Sul com
os países de língua oficial portuguesa (palops): Cabo
Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Moçambique,
Angola e Timor Leste. O currículo da unilab incorpora
temáticas, leituras e metodologias africanas, afrodescen-
dentes e afrocentradas nos conteúdos obrigatórios, assim
como também recebe ingressos semestrais de alunos
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional233Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
grupo de pesquisa fempos/unilab do Campus
São Francisco do Conde na Bahia6 e o blog
“Filosofia Africana”, do professor de filosofia
da Universidade de Brasília Wanderson Flor
do Nascimento.7 Nesses espaços, através de
práticas de reparação epistêmica se questiona
o espaço de prestígio que é a universidade pú-
blica federal brasileira com saberes e formas de
conhecer que questionam o logocentrismo e o
autoritarismo acadêmico, na compreensão de
que toda ação pela teoria deve ser uma prática
libertadora (hooks, 2019).
3. Aspectos teórico-metodológicos
Não, eu não choro para o mundo: estou ocupada
demais afiando minha faca de ostras.
Como Eu me Sinto Sendo uma Pessoa de Cor. World Tomor-
row, Zora Neale Hurston (1995 [1928])
Nosso trabalho de tradução da obra de Zora
Neale Hurston pretende contribuir para rei-
vindicar o seu lugar dentro das memórias da
antropologia e da memória cultural. No pro-
internacionais dos países antes mencionados, junto com
os ingressos padrão de discentes via o Sistema de Se-
leção Unificada (sisu) do Governo Federal.
6 Seguindo a preocupação relativa à necessidade de so-
cializar material de autoras/es não traduzidos ao por-
tuguês emerge recentemente o projeto de tradução de
bibliografia feminista decolonial e queer africana do
grupo de pesquisa fempos /unilab, liderado pela
professora da unilab , Bahia, Caterina Rea, e que tem
como um dos seus resultados, a publicação Traduzindo
a África Queer pela editorial Devires (2018), disponível
online. Esse material reúne textos acadêmicos e ativis-
tas fundamentais de autores/as queer, sendo uma pu-
blicação de caráter único em língua portuguesa.
7 Enfatizando a tradução como mecanismo de de-
mocratizar o acesso à produção intelectual africana, o
blog “Filosofia Africana”, coordenado pelo professor
de filosofia da UnB Wanderson Nascimento se dedi-
ca à tradução para o português de textos magistrais do
pensamento africano e diaspórico contemporâneo, com
traduções de qualidade acadêmica. https://filosofia-afri-
cana.weebly.com/, recuperado em 18 de abril, 2020.
cesso tradutório, nos valemos das ferramentas
teórico-metodológicas da tradução cultural em
consonância com um olhar interseccional e
decolonial. O conceito de tradução cultural
decorre, em grande parte, da leitura de Homi
Bhabha (1994), um conceito usado para deno-
tar o processo de transformação, linguística
ou não, em uma dada cultura. Nessa concep-
ção, a tradução linguística é usada como uma
ferramenta ou metáfora na análise da natu-
reza da transformação e do intercâmbio nas
culturas.
Dessa maneira, a ideia de tradução cultural
contempla a tradução como uma atividade
mais ampla da comunicação entre grupos, e
como tal, está mediada por relações de poder.
Nos trânsitos entre fronteiras que a tradução
possibilita é possível reconhecer diálogos en-
tre culturas, grupos e identidades em contínua
transformação: a apropriação dos originais se
configura como um ato de resistência (Ben-
jamin, 1999[1923]) e gera ecos criativos, com
ressonância local. Nossa metodologia é nutrida
pelo posicionamento de intelectuais e ativis-
tas que questionam a colonialidade do saber
(Mendoza, 2019), tais como Homi Bhabha
(1994), Asad (1996); Gayatri Spivak (2010),
entre outres. Nessas linhas, é uma metodolo-
gia que cultiva uma natureza crítica, reflexiva,
híbrida, dialógica e experimental, colocando
seu foco não somente no produto — que, nesse
caso, refere a peças escolhidas da obra de Zora
Hurston — mas também nos processos epis-
temológicos, políticos, culturais, sensoriais e
cognitivos que fizeram essas peças possíveis.
Ecoando nas propostas da descrição densa es-
tabelecida pelo paradigma da antropologia
interpretativa (Clifford & Marcus, 1986), o lin-
guista ganês Kwame Anthony Appiah (2000)
definiu como “tradução densa” [thick transla-
tion] o exercício simultâneo de tradução e refle-
xão sobre o processo de tradução com atenção
aos contextos.
Ana Gretel Echazú Böschemeier, Natalia Cabanillas, Sandra S. F. Erickson, Victória Dias Barbosa,
Fernanda Ferreira do Nascimento, Mikaelle Thaisa da Costa e Fídias Cavalcanti Freire234Mujeres y traducción en América Latina y el Caribe
Nesse sentido, há uma série de hábitos acadê-
micos que enfrentamos cotidianamente e que
estão fortemente ligados à repetição de um câ-
none eurocentrado que está imbuído nos nos-
sos conteúdos curriculares (Carvalho, 2018).
As bibliografias dos programas disciplinares
com as quais nos deparamos bem podem re-
presentar o topo do iceberg de uma realidade
pétrea: o cânone das nossas ciências, construí-
do como uma Grande Narrativa da história
e da teoria de cada disciplina, é uma verdade
invisível, dificilmente enunciável. Para Harold
Bloom (1991) o cânone se constitui a partir
de modelos de excelência literária baseados
maioritariamente em critérios estéticos que
representam determinados momentos histó-
ricos e culturais. O autor, de origem norte-a-
mericana, advoga pela “autonomia estética do
cânone”, em uma perspectiva que manifesta a
procura por uma normatividade intrínseca às
obras e uma desconfiança das lutas identitá-
rias, que eram chamadas por ele, off the record,
de “narrativas do ressentimento”8. Vozes disso-
nantes se alçaram contra essa perspectiva, sa-
lientando aspectos centrais de uma discussão
teórico-metodológica relativa não somente à
importância do cânone, mas também aos ten-
sionamentos que existem fora dele e que, de
alguma forma, o constituem.
Jaime Ginzburg (2004) questionou frontalmen-
te a postura deste autor, salientando a histori-
cidade do cânone e os problemas inerentes aos
procedimentos de construção de saberes disci-
plinares que “confiam mais nos mortos do que
nos vivos” (Bloom, 1991 como citado em Pi-
nheiro, 2019, p. 9). Nesse sentido, os mecanis-
mos que sacralizam determinados textos são
sinalizados como os principais reprodutores
das violências epistêmicas. Ainda sobre o peso
8 “Defesa do cânone e fúria contra critério identitário
marcaram Harold Bloom”. Notícia no Jornal Folha de
São Paulo, 26-10-2019.
funerário que encharca esses critérios de autori-
dade, o jovem filósofo chinês Eugene Sun Park:
“o cânone filosófico consiste, quase que exclu-
sivamente, em [um conjunto de leituras sobre]
homens brancos e mortos”9
.
A professora de literatura de origem indiana
Ankhi Mukherjee complementa essa visão pro-
pondo que as peças consideradas “clássicas”
são uma espécie de “aristocracia de textos” le-
gitimados com um poder que torna esse status
canônico, conseguindo “congelar a arte literária
da memória” (Mukherjee, 2010, p. 1029) atra-
vés de mecanismos de poder dentro dos dife-
rentes campos disciplinares. A canonização de
determinades autores e temáticas em detrimen-
to de outres pode ser compreendida como um
processo histórico de permanente recriação de
mitos de origem disciplinares (Connell, 2012)
ativados como dispositivos discursivos que são
posteriores às origens mesmas das disciplinas
cuja gênese pretendem narrar. Conforme a pro-
posta da cientista social australiana Raewyn
Connell (2019), os textos e autores clássicos são
fruto de uma invenção atemporalizante dentro
de seu próprio tempo, comunidades imagina-
das no sentido historiográfico (Pinheiro, 2019).
Esse paradoxo não costuma ser colocado em
questão pelas disciplinas, até o ponto que os
textos canônicos passam a ser consideradas a
“língua franca” através da qual as disciplinas
realizam suas trocas comunicativas.
A professora brasileira Vanessa Riambau Pi-
nheiro (2019) analisa, com foco no seu trabalho
em Moçambique, como o cânone é construí-
do de formas específicas dentro das narrativas
nacionais e disciplinares. Por meio da análise
da literatura moçambicana, ela demonstra as
maneiras em que o cânone, apresentado como
9 Post em Blog. Why I Left Academia: Philosophy’s Ho-
mogeneity Needs Rethinking. http://read.hipporeads.
com/why-i-left-academia-philosophys-homogenei-
ty-needs-rethinking/ recuperado em 04 fevereiro, 2020.
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional235Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
um lugar de recursos rígidos e fixos na atempo-
ralidade, é, na verdade, uma arena submetida
a tensões, disputas e conflitos permanentes na
procura da territorialização da legitimidade
das obras. Se aproveitarmos o caso moçam-
bicano para pensar na situação brasileira a
partir das ferramentas heurísticas providas
pelo diálogo entre espaços Sul-Sul (Mohan-
ty, 1984; Sousa Santos, 2010), podemos ob-
servar que as ciências sociais brasileiras têm
sistematicamente produzido a ausência de
epistemologias negras, quilombolas, indíge-
nas, vindas de espiritualidades afrocentradas,
camponesas, caboclas, com deficiência, assim
como de pessoas trans e travestis e dissidências
sexuais - até o ponto em que algumas acadê-
micas ativistas têm proposto a “epistemologia
do barraco” como forma radical de manifestar
visibilidade (Assunção da Silva e Fernandes
de Souza, 2017).
O semiólogo argentino Walter Mignolo (1991)
aponta para a importância da recepção de lei-
tores não especializades no processo descoloni-
zador de fortalecimento dos textos em vias de
legitimação: “devemos convidar estudantes a
discutir criticamente as estratégias de formação
e transformação do cânone” (p. 14), questio-
nando simultâneamente a universalidade, por
uma parte, e o caráter regional, por outra parte,
com que são etiquetadas diferentes produções
dentro da literatura. Se nenhuma produção
literária é intrinsecamente “universal” ou “re-
gional”, quais são os dispositivos pelos quais
umas e outras são instituídas como tais? As
estratégias de ensino do cânone devem per-
mitir uma relação permanente e crítica com
ele, ciente da sua tendência à perpetuação de
hegemonias (Laist, 2009) e interessada em
ativar as ferramentas teórico-metodológicas
necessárias para questionar as próprias bases
desse statu quo. Nesse sentido, acreditamos
que a discussão sobre o cânone e seus tensio-
namentos deve ter uma imediata contraparte
com a discussão política das interseccionali-
dades, a justiça epistêmica e as conquistas do
movimento negro (Gomes, 2017).
Nosso aproveitamento da análise interseccio-
nal — que é uma perspectiva teórica com foco
fortemente sócio-antropológico10 — aos estu-
dos da tradução propõe a articulação simultâ-
nea de duas dimensões: a produção autoral e a
legitimação dos textos. A interseccionalidade
nos permite indagar os motivos aparentemen-
te externos às obras mas que se mostram, de
fato, intrínsecos à existência das mesmas nos
territórios discursivos reconhecidos como ca-
nônicos. 11 Finalmente, a mesma análise inter-
seccional nos provê de elementos que fazem
tangível a direção na qual devem ser ativadas
práticas de justiça epistêmica que atinjam
nossas bibliografias, traduções, pesquisas,
política de cotas, concursos públicos e outras
formas de reparação histórica.
10 A perspectiva interseccional nas ciências sociais surge
a partir de demandas de direitos específicos nos Estados
Unidos nos anos 1970 (Crenshaw, 1991; Hill Collins,
2015) , e se difunde pelo Brasil a partir do trabalho de
acadêmicas e militantes que são, majoritariamente, femi-
nistas e negras (Carneiro, 2011; Gonzales, 1980; Ribeiro,
2019; Akotirene, 2018), atentando à necessidade de pen-
sar nos sistemas racista, classista e machista, assim como
em outros eixos de opressão historicamente definidos
segundo as diversas geografias, de forma integrada.
11 Branco et al. (2018) demonstraram a partir da análi-
se interseccional de programas disciplinares de Teoria
Antropológica de quatro universidades da América do
Sul que a maioria dos textos propostos eram de autores
homens, brancos de origem europeia. Cisgeneridade,
classe, deficiência e orientação sexual não foram trabal-
hados neste estudo, mas é necessário colocar que são
fatores que fazem parte de uma análise interseccional
consistente. No texto, as autoras se debruçam sobre os
dispositivos de saber-poder que fazem com que esse
conhecimento, muito específico e que refere a um gru-
po numericamente minoritário que é geográfica, racial e
corporalmente situado, é considerado universal.
Ana Gretel Echazú Böschemeier, Natalia Cabanillas, Sandra S. F. Erickson, Victória Dias Barbosa,
Fernanda Ferreira do Nascimento, Mikaelle Thaisa da Costa e Fídias Cavalcanti Freire236Mujeres y traducción en América Latina y el Caribe
Para a crítica indiana Gayatri Spivak (2000),
é necessário que exista uma modificação ra-
dical nas condições da escuta para que textos
marginalizados pelas forças centrífugas do câ-
none venham a se tornar audíveis e inteligíveis
para as audiências especializadas. O trabalho
de tradução que ela propõe no texto “Pode
o Subalterno Falar?” não reduz sua busca à
preciosidade linguística, mas constrói seu foco
no esforço sistemático pela reconstrução his-
tórica de um contexto no qual o discurso da
sujeita subalterna passa a ser inteligível e, si-
multâneamente, legítimo.
Ao revisitarmos a teoria e a história da antropo-
logia (Eriksen & Nielsen, 2001) a partir da com-
preensão crítica dos processos de legitimação do
conhecimento (Echazú Böschemeier et al 2017;
Echazú Böschemeier, 2019), observamos que a
disciplina tem cultivado uma obediência quase
cega aos chamados “pais fundadores” da disci-
plina. Estudamos suas teorias em sala de aula,
incorporamos suas polêmicas de corredor e
tomamos “notas marginais de seus ‘agradeci-
mentos’ a esposas e namoradas sem as quais
esse trabalho nunca teria sido possível na qua-
se totalidade das suas obras” (Branco et al.,
2018, p. 72). Na perspectiva spivakiana, a obra
de Zora Neale Hurston adere às característi-
cas de um discurso subalternizado: tido, por
definição como ininteligível, não acadêmico,
militante, poético-literário, ficcional, excessi-
vamente autocentrado. Propomos o estudo e
difusão de sua vida e obra como forma de resti-
tuição dos parâmetros que permitem enxergar
o valor da sua produção intelectual e suas con-
tribuições epistemológicas, teóricas e metodo-
lógicas à antropologia.
Concebemos a pesquisa, tradução, aprendi-
zado e difusão do pensamento de Zora Neale
Hurston não como um resgate, mas como uma
ação de fortalecimento de processos de repa-
ração epistêmica, dentro da qual a troca lin-
guístico-cultural que é a tradução se configura
como uma chave de desbloqueio do acesso aos
seus textos. Na próxima seção, dedicaremo-
nos a apresentar nossa autora a partir de uma
aproximação biográfica e interseccional.
Destarte, podemos inferir que o resgate epistê-
mico é um processo situado na história e cons-
truído perante diálogos, várias metodologias,
e contradições, sendo essas, historicamente,
os motores que permitem compreender a ob-
solescência do cânone literário. Para somar à
abordagem teórico metodológica, em um cará-
ter já conclusivo, coloca-se em todo o processo
a possibilidade da reflexão acerca da confor-
mação do cânone, suas influências e contra-
posições. Sabendo-se que o cânone ocidental
faz parte de um sistema fechado de conteúdo,
discurso e referências, e que representa aos seus
correligionários históricos uma concepção silo-
gística de valores estéticos universais e universa-
lizantes, assim como o imperativo categórico
da filosofia kantiana. Por consequência há a
recorrente ideia de “obra-prima”, que permeia
os sete continentes, operando como um padrão
de medidas para a construção de discursos pos-
teriores, tal qual a descrição de cânone como
kanon, do grego, vara de medir (Reis, 1992).
Posteriormente, há o convite a refletir que na
compreensão de cânone há uma implícita hie-
rarquização constituída de uma série de pressu-
postos dentro da educação, como a manutenção
dos binarismos educador e educado, civilização
e primitividade, belo e feio, e assim por dian-
te. Quando são investigadas as características
refletidas nas epistemologias que constituem
o cânone literário atual, deparamo-nos com
um contexto de colonialismo e moral judaico-
-cristã, motores históricos do epistemicídio dos
saberes das comunidades locais. A literatura
e a ciência emergem, assim, como categorias
universais de produtos ahistóricos, tornando o
que há fora do cânone um mero sopro de vozes
ininteligíveis, inalcançáveis e inaudíveis.
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional237Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
Sabe-se que ao falarmos da relação autor e obra,
compreendemos a relação de sujeitos e objetos
presentes no mundo, num contexto, e numa his-
tória. Dessa razão pode-se partir para a refle-
xão foucaultiana da chamada “função-autor”, e
sobre a impossibilidade de tratar o autor de uma
obra como um mero sujeito metafísico de cará-
ter descritivo, pela razão de que o autor esculpe
o texto que escreve, caracterizando-lhes. Tra-
ta-se de uma das estruturas do paradigma da
episteme, da própria questão do cânone literá-
rio. O termo “hierarquização” ali supracitado,
na reflexão de Foucault remete explicitamente
ao poder.
A função-autor está ligada ao sistema jurídico e
institucional que contém, determina, articula o
universo dos discursos; ela nasce se exerce uni-
formemente e da mesma maneira sobre todos
os discursos, em todas as épocas e em todas as
formas de civilização; ela não é definida pela
atribuição espontânea de um discurso ao seu
produtor, mas por uma série de operações es-
pecíficas e complexas. (Foucault, 2006, p. 57)
Dessa forma, a estrutura metodológica aqui
contida é um convite à identificar o caráter so-
cial dos conceitos e compreender suas deter-
minações históricas. É convidativo também o
estudo contínuo sobre o entendimento de “clás-
sico”, questionado como a mera produção de
uma obra de peso que serve como fonte de ins-
piração para discursos posteriores, e colocando
sob o foco seu lugar como referência paradig-
mática a epistemologias eurocêntricas. Como
definir, então, o caráter dos discursos que sur-
giram após os clássicos ou em decorrência de
sua inspiração? E o que dizer daqueles que
tensionaram seus pressupostos básicos? Eles
poderiam, algum dia, se tornarem clássicos?
Sendo assim, eles teriam ainda as caracterís-
ticas do colonialismo ou seriam capazes de
encarnar a ramificação de novas e revolucio-
nárias epistemologias? São essas algumas das
dúvidas metódicas que devem acompanhar os
e as leitores/as daqui para frente, em um ca-
minho de questionamentos permanentes.
4. Zora Neale Hurston:
uma aproximação biográfica e
interseccional
Eu sou o eterno feminino com seu colar de contas”
Zora Neale Hurston, Como Eu Me Sinto Sendo uma Pes-
soa de Cor (1928).
Zora Neale Hurston não poderia ser coloca-
da como uma personalidade “excepcional”,
pois a contribuição dela se situou junto com a
de diversas intelectuais negras que agiram no
mundo ativista, artístico e poético da época.12
Pelo contrário, todo autor(a), toda figura re-
presentativa de determinada rama da ciência
requer de um marco social no qual a sua práti-
ca adquira sentido: os acontecimentos biográ-
ficos podem ser definidos “como colocações
12 Neste sentido, podemos citar algumas mulheres
centrais do movimento artístico-político do Harlem
Renaissance como a escritora Regina M. Anderson
(1901-1993), a cantora e dançarina Josephine Baker
(1906-1975) e a poetisa Georgia D. Johnson (1880-
1966). Na época, a cena política negra contava com or-
ganizações muito relevantes. Uma delas, a unia-United
Negro Improvement Association, contou com enga-
jamento feminino significativo, entre quem destaca-se
a editora do seu jornal The Negro World, Amy Jacques
Garvey; este jornal chegou a distribuir 60.000 exempla-
res em diversos países, com notas em inglês, francês
e espanhol. Esta organização promoveu o desenvolvi-
mento e avanço autônomo das comunidades negras e a
volta à África (Domingues, 2017, p. 131). Outra organi-
zação relevante no debate sobre a questão racial, era a
National Association for the Advancement of Colored
People (naacp), que tinha seu antecedente no Niagara
Movement, e que advogou contras as leis segregacionis-
tas, contra os linchamentos e em prol da integração ra-
cial. Entre outras mulheres relevantes da organização
podemos mencionar a sufragista Mary White Ovigton e
a afro-norte-americana Ida Wells, jornalista e educadora
(Sítio oficial da organização: www.naacp.org, recupera-
do em 26 de março 2020).
Ana Gretel Echazú Böschemeier, Natalia Cabanillas, Sandra S. F. Erickson, Victória Dias Barbosa,
Fernanda Ferreira do Nascimento, Mikaelle Thaisa da Costa e Fídias Cavalcanti Freire238Mujeres y traducción en América Latina y el Caribe
e deslocamentos no espaço social” (Bourdieu,
1986, p. 71).
Nascida em 7 de janeiro de 1891, no Alabama,
Zora Neale Hurston mudou-se para Eatonvil-
le, na Flórida, em 1894, fazendo desta cidade
o palco posterior para seus textos literários e
campo de pesquisa antropológica. Conforme
o artigo de Alice Walker (1975), “Procurando
Zora Neale Hurston” (nossa tradução), Eaton-
ville era um município rural do sul, no qual
todes seus habitantes eram negres incluindo as
autoridades, prefeito, professores, polícia. As-
sim, dentro de um Estados Unidos constituído
na base da segregação racial, a autora vivencia
parte da sua infância e adolescência em “uma
comunidade integralmente negra, onde predo-
minava a lealdade e a unidade. Onde orgulho
negro não era uma novidade” (Walker, 1975,
p. 3). Essa experiência de vida, se conecta forte-
mente com algumas das suas declarações mais
controversas como ser contra a integração ra-
cial nas escolas.
Filha de um pastor protestante e uma professo-
ra, Zora interessou-se por literatura e por ouvir
as histórias que os adultos contavam. Em 1916,
começou a trabalhar como empregada após
ser expulsa do colégio interno que frequentava
por falta de pagamento da mensalidade. Em
1917 retorna ao estudos, entrando no Morgan
College, escola de ensino médio da tradicio-
nal instituição Morgan State University. Em
1918, Zora começou seus estudos na Howard
University (Washington, D. C.), se formando
em Letras em 1920, tendo estudado com no-
mes como Lorenzo Dow Turner (1890-1972),
linguista afro-americano pioneiro nos estudos
da linguagem, e Dwight O. W. Holmes (1877-
1963), sociólogo e ativista dos direitos civis
afro-norte-americanos.
Ainda em Howard University, Zora é encora-
jada por Charles S. Johnson, editor do jornal
Opportunity, para iniciar seriamente sua carreira
como escritora. Em decorrência disto, ela se
inscreveu para o concurso literário do jornal
de Johnson, submetendo dois contos e uma
peça, ganhando o segundo lugar em ambas as
categorias. O mais importante, talvez, não te-
nha sido a premiação recebida, mas a atenção
que chamou das elites intelectuais da época,
recebendo, a partir disso, uma bolsa de estudos
no Barnard College. O Barnard College se co-
locava à época como uma faculdade privada de
artes liberais para mulheres muito particular:
ela surgiu em resposta à falta de mulheres na
Columbia University que pouco depois veio a
ser incorporada a essa instituição maior.
Já em Barnard College, Zora mudou seu foco de
estudo ao matricular-se em um curso eletivo
de Antropologia, onde se destacou ao escrever
um artigo para a disciplina. Foi por meio des-
se artigo que Hurston conheceu Franz Boas,
que seria seu mentor durante os anos nos
quais pesquisou sobre Antropologia e a incen-
tivou a “abandonar a literatura pela ciência”
(Cotera, 2008, p. 78) (nossa tradução). Zora,
contudo, continuou transitando nos dois ca-
minhos. Durante o dia moldava seu corpo ao
espartilho da pesquisa científica e lutava con-
tra o racismo científico que rondava a época,
e, durante a noite, colaborava com outros in-
telectuais como Langston Hughes, Wallace
Thurman e Gwendolyn Bennett na produção
de Fire!!, jornal de edição única que dedicava-
se aos jovens artistas afro-americanos.
A primeira experiência significativa de tra-
balho de campo de Hurston não obteve bons
resultados. Após a conclusão do curso em
Barnard, Zora embarcou em uma viagem a
Eatonville, a fim de procurar gravar e estudar
os costumes, histórias, danças e outras prá-
ticas populares próprias da cidade onde ela
cresceu. Ao chegar ao local, porém, Hurston
não encontrou nenhum tipo de receptividade
por partes dos moradores que tinham sido
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional239Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
seus vizinhos, o que acarretou em um frus-
trante amontoado mínimo de material obtido.
Mais tarde, ela escreve que não foi a falta de
talento para pesquisa que a impediu de obter
resultados relevantes, mas sim sua abordagem
errônea (Cotera, 2008). Em retrospectiva, nós
nos perguntamos se a abordagem era mesmo
“errônea” ou eram errados ou inadequados
os parâmetros a partir dos quais era lida a
cientificidade dos materiais produzidos por
Hurston. Por outro lado, a ideia de alteridade
como constitutiva da produção de conheci-
mento antropológico, operava de uma forma
muito particular e inovadora para a época em
um trabalho de pesquisa voltado para o en-
torno familiar da infância da autora. De que
forma aquela proximidade e distância pode-
riam ser traduzidas nos termos da relação et-
nográfica entre o eu e o Outro? Todas essas
considerações metodológicas seriam aborda-
das de forma muito posterior à produção da
autora (Clifford & Marcus, 1986), colocando
Zora Hurston como uma pioneira do fazer an-
tropológico do século xxi.
O “fracasso” da jovem antropóloga na expedi-
ção e os nulos resultados obtidos se potenciali-
zou com uma insatisfação crescente de Franz
Boas acerca dos métodos adotados por Hurs-
ton na condução dessas primeiras pesquisas.
De fato, enquanto Boas estava interessado no
desenvolvimento de metodologias a exercitar
o pré-requisito intelectual do estranhamento
etnográfico (Cotera, 2008), Zora procurava
nas próprias raízes as histórias e músicas do
folclore negro com uma perspectiva de regis-
tro localizado dos detalhes da cultura viva de
seu povo ― uma perspectiva emergente do
próprio ponto de vista [standpoint perspective].
É preciso dizer que uma perspectiva particu-
larista reunia ambos os olhares do mestre e
da aluna: descrição contextualizada historica-
mente, foco nos detalhes sem perder de vista
as mudanças da história e a diversidade de vo-
zes presentes no trabalho etnográfico.
É assim que, se os dois se interessavam pelo
registro cuidadoso de traços culturais, Hurs-
ton não fazia jus aos protocolos de estranha-
mento etnográfico e posterior interesse pelo
estranho como abordagens científicas enalte-
cidas por Boas para a pesquisa etnográfica.
No caso de seus estudos etnográficos reali-
zados no Sul dos Estados Unidos, seu olhar
sobre o material registrado não era somente
o de preservar do esquecimento traços especí-
ficos de uma comunidade cuja cultura estava
ameaçada de extinção: ocupando o lugar na-
tivo que lhe correspondia, ela trazia as outras
vozes da comunidade para um encontro que
registrava criativamente essa situação poli-
fónica. O mandato fragilizante da extinção da
cultura era deslocado por uma perspectiva que
mostrava o humor, a resistência, a resiliência
e a reinvenção permanente das pessoas dentro
de seus entornos culturais.
Ao retornar do campo, Zora consumou o que
podemos ver hoje como uma forma de “suicí-
dio acadêmico”. Em uma prática cuja motiva-
ção mais nítida ainda nos é desconhecida, ela
submeteu um resumo insuficiente e confuso
contendo os resultados da viagem de expe-
dição à Flórida e publicou, no Journal of Ne-
gro History, um artigo (Cotera, 2008) baseado
numa entrevista com um idoso sobrevivente
do último navio de escravos levado para os Es-
tados Unidos, que mais tarde foi taxado como
plágio. Acerca do porquê Zora encerrou sua
carreira oficial na pesquisa acadêmica, destaca-
mos aqui duas especulações que não são exclu-
dentes: o abandono da sua carreira acadêmica
devido às exigências permanentes, por parte de
Boas e Woodson (os dois homens que dirigiram
sua expedição à Flórida), para adequar a sua
pesquisa e escrita acadêmicas aos parâmetros
da época e, por outra parte, um distanciamento
Ana Gretel Echazú Böschemeier, Natalia Cabanillas, Sandra S. F. Erickson, Victória Dias Barbosa,
Fernanda Ferreira do Nascimento, Mikaelle Thaisa da Costa e Fídias Cavalcanti Freire240Mujeres y traducción en América Latina y el Caribe
consciente que provava, talvez, a sua própria
necessidade de reavaliar as metodologias de
pesquisa que ela havia aprendido dentro dos
estudos acadêmicos canônicos, confrontando
seus pressupostos “como uma etnógrafa na-
tiva de cabeça erguida” (Cotera, 2008, p. 17,
nossa tradução). Podemos aventurar uma ter-
ceira hipótese, considerada parcialmente por
Cotera: a possibilidade de que sua agenda de
pesquisa e sua urgência de publicação estive-
ram em aberta discordância com os requeri-
mentos impostos por esse mundo acadêmico
que ela permanentemente questionava nos
seus escritos, nas suas performances e nas suas
práticas políticas.
É preciso salientar que a vida e obra de Zora
N. Hurston possui algumas peculiaridades
que fazem da tradução da sua obra uma tarefa
especialmente significativa. Em primeiro lu-
gar, ela foi uma mulher negra que obteve parte
da sua formação na Universidade de Colum-
bia sob a orientação de Franz Boas, estudioso
que é considerado até hoje um dos “pais” da
antropologia moderna. Essa estreita relação
de Zora com um dos centros intelectuais mais
importantes da antropologia no mundo, na
época e até hoje, já a coloca em um lugar es-
pecialmente instigante.
Nas observações da escritora, poetisa e ativis-
ta afro-norte-americana Alice Walker, Zora
Neale Hurston é “uma das autoras não lidas
mais significantes” (Walker, 1975, p. 1, nossa
tradução). De fato, seria esperável a encon-
trarmos dentro do cânone da antropologia
clássica junto como suas colegas e contempo-
râneas Ruth Benedict e Margaret Mead.
Uma particularidade da contribuição dessa
autora se encontra nas facetas ativistas e ar-
tístico-performáticas que desenvolveu: nave-
gando por estilos fortemente autobiográficos e
se apoiando na potencialidade de seu próprio
acesso privilegiado a materiais vindos de vozes
extremamente marginalizadas, ela desafiou os
estreitos limites da antropologia de entreguer-
ras com uma proposta radical e pouco preo-
cupada com honrar as “linhagens de mestres
fundadores” próprias das linhas hegemônicas
da próprias das antropologias centrais (Eriksen
e Nielsen, 2001). A antropologia dos anos 1930
se debatia entre a consolidação da escola estru-
tural-funcionalista na Inglaterra, o trabalho des
alunes de Marcel Mauss que tinha sido inter-
rompido na primeira guerra mundial e a emer-
gência de uma sistematização antropológica
em uma dimensão nunca antes vista a partir
da proposta da escola culturalista norte-ameri-
cana (Eriksen e Nielsen, 2001).
Se lançando na direção contrária ao progres-
sismo liberal implícito na abordagem cultura-
lista norte-americana (mais preocupada com a
diversidade do que com a desigualdade social
e sustentada por epistemologias de tom forte-
mente empirista), Zora N. Hurston se colocou
como relatora de uma realidade social que a
atravessava e à qual não conseguia apreender
como um mero objeto de uma ciência social
higienizante pois essas realidades faziam par-
te dela. É muito interessante observar as ma-
neiras pelas quais Hurston questionou uma
série de pressupostos da ciência antropológi-
ca que posteriormente foram abraçados pela
pós-modernidade, pela pós-colonialidade e
pela decolonialidade.
É de praxe considerar a existência da pers-
pectiva pós-moderna na antropologia a par-
tir dos anos 1970 em diante. Segundo mitos
fundacionais deste movimento de ideias que
circulam nos livros de textos didáticos para o
aprendizado da história da disciplina (Eriksen
e Nielsen, 2001), a pós-modernidade na antro-
pologia teria sido impulsada pela publicação
póstuma do diário íntimo de Bronislaw Mali-
nowski (Malinowski, 1989 [1967]).
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional241Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
Tal movimento observa depois seu nascimen-
to oficial com a chamada “virada literária”
[literary turn] na antropologia (Clifford & Mar-
cus, 1986). Ali, se postulou o fazer antropoló-
gico como uma forma de crítica cultural, se
colocaram as produções etnográficas como
formando parte de um gênero literário per se e
se relativizaram as contribuições de uma ciên-
cia antropológica clássica fundada no empiris-
mo. A partir da leitura discursiva dos textos
etnográficos, foram analisadas as estratégias
de verossimilhança (Geertz, 2005 [1988]), com-
preendidas como dispositivos de construção
factual de verdades parciais.
Na análise da obra de Hurston que antecipa-
mos aqui é possível observar vários elementos
que colocam seu trabalho não somente como
pós-moderno, mas também como pós-estrutu-
ralista e decolonial em vários sentidos: antro-
pologia como crítica cultural, apagamento das
fronteiras entre gêneros textuais, conhecimento
corporificado, descentramento a respeito do
logocentrismo, questionamento radical da di-
cotomia sujeito-objeto, reconhecimento da pro-
visoriedade das produções científicas, visibili-
zação de epistemologias situadas em pontos de
vista [standpoint epistemologies], diálogo aberto
entre ciência e produção cultural, assim como
o que hoje chamamos lugar de fala, uma vez
que ela era, além da pesquisadora, uma inte-
grante da comunidade pesquisada. É nesse úl-
timo ponto que nos apoiamos para apresentar
o surgimento da obra de Zora no berço de um
movimento cultural que sacudiu a história nor-
te-americana com sua potência questionadora:
o Renascimento do Harlem.
O Renascimento do Harlem [Harlem Renais-
sance] foi provavelmente o movimento literário
e cultural afro-norte-americano mais influente
da história. O início desse movimento, em 1918,
trouxe várias mudanças significativas para a
vida da população negra naquele contexto,
as quais puderam se perpetuar e influenciar o
pensamento crítico acerca dos estereótipos até
os dias atuais. Os participantes do movimento
buscavam estabelecer um novo conceito para
“o Negro” que não estivesse associado à pers-
pectiva dos estereótipos postos por brancos.
Assim, não só mudariam a percepção de todes,
mas também a relação “do negro com ele mes-
mo”, com suas raízes e com sua identidade. O
movimento era principalmente motivado por
intensos debates que viriam a influenciar a li-
teratura negra e a consciência sobre a questão
mundo afora. Dessa forma, o movimento não
ficou restrito ao distrito de Harlem, em Nova
York, mas tem essa cidade como símbolo para
esse acordar cultural.
Inserida nesse contexto e sendo abraçada depois
como um dos grandes nomes desse movimento,
Zora N. Hurston contribui significativamente
tanto para a Antropologia quanto para a li-
teratura. Sua trajetória de vida e suas contri-
buições para esses campos do conhecimento
apresentavam singularidades no que diz res-
peito à maneira de ver o mundo e de reconhe-
cer seu lugar nele.
No âmbito do Harlem Renaissance,13 desenvol-
veu-se o conceito “blackness”, que propriamente
refere-se ao desenvolvimento e valorização da
negritude, da “essência” da cultura negra e a
exaltação de suas variadas unidades expressivas
que, naquele contexto histórico, desenvolve-
ram um aspecto totalizante. Entende-se, dessa
forma, que um dos sustentáculos do Harlem
13 Harlem Renaissance em tradução literal significa Re-
nascimento do Harlem, em referência ao movimento
cultural negro que ocorreu no bairro do Harlem em
Manhattan, em Nova York nos Estados Unidos da
América. Propositalmente, seus iniciadores adotaram
a designação de renascença para indicar, por analogia
à cultura europeia, a continuidade de uma cultura ne-
gra anterior à experiência da colonialidade que agora
retornava.
Ana Gretel Echazú Böschemeier, Natalia Cabanillas, Sandra S. F. Erickson, Victória Dias Barbosa,
Fernanda Ferreira do Nascimento, Mikaelle Thaisa da Costa e Fídias Cavalcanti Freire242Mujeres y traducción en América Latina y el Caribe
Renaissance foi além da estruturação da cultura
como um monumento de influência, denúncia
e requisições, a criação e nutrição de uma inte-
lectualidade negra politizada e engajada.
O movimento cultural mencionado deu-se
num contexto histórico de uma marcante po-
lítica de segregação racial e negação da iden-
tidade afro-americana. A movimentação desta
mobilização cultural pertenceu aos meios urba-
nos de Nova York, atuando assim na reivindi-
cação de pautas e na denúncia da capilaridade
da violência colonial em suas diversas perver-
sidades: educacional, policial, a leniência es-
tatal, e a atuação de um grupo ultra-racista de
ideário eugênico, a Ku Klux Klan, que perdura
com seguidores até os dias de hoje.
Vale-se, por inferência, compreender direta-
mente que a proposta do Renascimento do
Harlem foi a autodeterminação da expressão
negra, da afirmação intelectual do negro pe-
rante a literatura, a música, as artes plásticas,
a estética e a própria academia. Recuperando
o vasto acervo musical e cultural do povo afro-
-norte-americano (processo do qual Hurston
faria também parte), estimulando a fusão de
novos ritmos: o mundo conheceu indireta-
mente o Renascimento do Harlem por algu-
mas figuras marcantes da música, se tornando
uma arte de veiculação rápida, extremamente
popular e que contou com a contribuição de
artistas como Louis Armstrong e Billie Holi-
day, por exemplo.
Os atores sociais que, em interação, construí-
ram o Renascimento do Harlem, atuaram em
diversos campos da produção de conhecimen-
to, uns tornando-se mais famosos que outros.
A perspectiva que propomos é que uma análi-
se restrita à estética do campo artístico não nos
forneceria uma resposta a respeito do porquê
possam ser tão conhecidas as interpretações
no saxofone de Louis Armstrong enquanto
que a produção científica de Zora Hurston te-
nha permanecido nas margens. Nesse sentido,
o campo científico aparece como muito menos
permeável do que o campo das artes ao movi-
mento de autoafirmação e autodeterminação
do povo negro.
5. Traduzindo Zora Neale Hurston
O ciclo formal do projeto RECânone decorreu
durante o segundo semestre de 2019 (2019.2),
e será retomado a partir do mês de março do
ano de 2020. A iniciativa é integrada por dis-
centes da graduação e por docentes que fazem
parte das áreas de Antropologia, de Literatura
e de Tradução; as duas últimas vinculadas ao
curso de Letras-Inglês e Letras-Português da
ufrn. Contamos também com colaborações
de docentes da Unilab nas áreas de História e
Teoria Antropológica.
Com a junção dessas diversas áreas de conhe-
cimento, partimos para a escolha dos textos
(tanto orais quanto escritos) a serem traduzi-
dos (Projeto RECânone, 2019). Optamos, por
materiais que expressem, de maneira reconhe-
cidamente resumida, o trânsito entre as duas
áreas às quais Zora mais dedicou-se a escrever
– a Literatura e a Antropologia – além de ma-
teriais que levassem o leitor a conhecer a vida
expressiva da autora (cartas e receitas escritas
por Hurston e textos sobre sua a trajetória)14
em uma variedade de atividades intelectuais
e artísticas hoje reconhecidos nos currículos
acadêmicos.
Como representantes de sua obra literária, o
ensaio “Como Eu Me Sinto Sendo Uma Pes-
soa de Cor” [How it Feels to be Colored Me (1928)]
14 Na escrita do artigo, optou-se por adicionar uma re-
ferência à coletânea dos trabalhos feitos pelo projeto
para não haver confusão entre referenciação de textos
originais e de textos traduzidos.
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional243Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
e o conto “Embebida em Luz” [Drenched in
Light (1924)], publicados respectivamente nos
jornais World Tomorrow e Opportunity, foram
escolhidos por abrangerem características sig-
nificativas da vida e escrita de Hurston.
“Como Eu Me Sinto Sendo Uma Pessoa de
Cor” [How it Feels to be Coloured Me] é um pe-
queno texto de forte tom autobiográfico que
discorre, em apenas quatro páginas, sobre a
vivência da autora como uma mulher negra.
Sendo um ensaio intimista, Zora relata como
se descobriu negra: “eu lembro o dia exato
que me tornei uma pessoa de cor” (p.1). O re-
lato se debruça sobre as maneiras em que ela
conviveu com os sentidos emergentes desta
experiência durante sua vida. O fato singu-
lar deste ensaio, porém, não está na maneira
como a autora descreve a sua experiência ra-
cializada, e sim como ela consegue expressar
tal experiência desde dentro, na própria visão
corporal da experiência como mulher e negra.
Assim, o “ser” uma mulher negra é tido como
dependente do reconhecimento disso através
da percepção de si mesma em diálogo com
outres. A partir do relato desta vivência de
infância em Eatonville (cidade de origem da
autora), Hurston nos dá algumas pistas sobre
os processos reflexivos e de autoconsciência
racial e de gênero que a tornaram uma mulher
negra forte e confiante em meio a uma socie-
dade machista e racista.
O conto “Embebida em Luz” [Drenched in Li-
ght, 1995 [1924]] apresenta uma narrativa que
compartilha alguns dos elementos expressados
no ensaio abordado acima. A narrativa pode ser
entendida como uma representação das vivên-
cias de Zora Hurston quando criança, porém
sob a perspectiva de Isis Watts, uma menina de
onze anos. Assim como Zora em seu ensaio,
Isis, no conto, considera o portão da casa o seu
lugar favorito, pois é de onde pode observar o
movimento das pessoas na estrada de onde as
cumprimenta. Isis era facilmente reconhecida
por todos pela sua alegria e pela sua vivacida-
de; a menina, embebida em luz, contagiava a
todos que se aproximavam. “Música para Isis
significava movimento. Em um instante, na-
valha e castigo esquecidos, ela estava fazen-
do uma fiel imitação da dançarina espanhola
que havia visto em um show (...) algum tem-
po atrás. Os pés de Ísis eram talentosos - ela
podia dançar praticamente qualquer coisa que
via” (p. 5). A narrativa mostra a potência da
felicidade de uma criança preta em um contex-
to familiar e social precário, reforçando a sua
soltura e liberdade de expressão e existência. É
importante remarcar que o conto é situado no
contexto das maiores desigualdades raciais, no
Sul de Estados Unidos, considerado como sen-
do um inferno para a população negra. A auto-
ra ainda escreve este conto na década de 1920,
quando no país imperavam leis segregacionis-
tas. Longe da autora negar a injustiça racial, a
violência e o machismo, a escrita de Zora se
detém nas formas de subjetivação, agência e
resistência feminina, questões que irão ser de-
batidas pelo feminismos do Sul Global muitos
várias décadas depois, em textos de Veena Das
(2011), Saba Mahmood (2006), entre outras
teóricas relevantes.
No texto “Prescrições de Doutores Raiz” [Pres-
criptions of Root Doctors] do ano 1935, Zora
Hurston honra seu espírito etnográfico ao col-
her relatos diretos de receitas terapêuticas e me-
dicinais utilizadas por médicos Hoodoo.15 Nesse
curto texto podemos observar a riqueza de uma
compilação de práticas realizada por Hurston
no Sul dos Estados Unidos e que não foram hi-
gienizadas por um olhar eurocêntrico. Como as
15 O Hoodoo é uma forma tradicional de magia po-
pular afro-americana praticada nas Américas. Seus pra-
ticantes são chamados de conjurers (conjuradores) ou
rootwokers (raizeiros)
Ana Gretel Echazú Böschemeier, Natalia Cabanillas, Sandra S. F. Erickson, Victória Dias Barbosa,
Fernanda Ferreira do Nascimento, Mikaelle Thaisa da Costa e Fídias Cavalcanti Freire244Mujeres y traducción en América Latina y el Caribe
seguintes alternativas de receita para curar un-
has infestadas por fungos:
a) Tire a unha. Bata na ferida e tire dela todo
o sangue que for possível. Então pegue um
pedaço de bacon, um pouco de tabaco e uma
moeda de um centavo e amarre-os à ferida. b)
Tire a unha e leve ela até uma árvore verde que
esteja do lado da saída do sol, e sarará . (p. 2,
nossa tradução)
Assim, as rezas e os conjuros se combinam com
plantas medicinais-venenosas, elementos ani-
mais e minerais. As receitas são redigidas com
a indicação de quantidades necessárias a partir
de referências corporais (uma mão cheia, a
ponta de um dedo) e foi incluída detalhada in-
formação sobre onde podem ser encontrados
certos ingredientes nos mercados, seu custo
incluso. Em sua estratégia de escrita de práti-
cas de saúde, cuidado e magia popular, Zora
se ocupa de trazer elementos de universos di-
versos para a vivência micro de curandeires e
pacientes da medicina folk em um relato vivo,
próximo e ciente da natureza híbrida destas
práticas no contexto colonial e capitalista.
Além dos textos escritos por Zora, traduzimos
também dois textos sobre Zora, com o intuito
de nos valermos de uma maior quantidade de
ferramentas para apreciar a produção da auto-
ra. Foi assim que escolhemos um texto escrito
nos anos 1979 pela icônica Alice Walker; um
texto contemporâneo, premiado dentro de
um concurso dedicado a reconhecer trabalhos
que sustentem perspectivas sobre feminismos
plurais [The Gloria Anzaldúa Prize]. O segun-
do foi traduzido de forma coletiva a partir da
autorização da autora, a estudiosa espanhola
María Eugenia Cotera, e incluído dentro das
nossas discussões. Apresentaremos ele mais
adiante. Nos interessa agora nos determos na
fundamental contribuição de Alice Walker.
O texto de Alice Walker (1975), Procurando
Zora Neale Hurston [A Search for Zora Neale
Hurston] nos remete à dura realidade vivida
por Hurston em seus últimos anos de vida até
o momento da sua morte. O esquecimento
sofrido por Zora, tanto no que se refere aos
seus textos literários quanto aos científicos,
corroborou para sua morte na pobreza e no
anonimato, e um enterro onde ela recebeu o
tratamento de uma indigente na própria cida-
de natal, Eatonville. Alice Walker descreve em
seu texto a viagem que ela pessoalmente fez à
procura do túmulo da autora para que pudes-
se, enfim, ser identificado, treze anos após sua
morte.
Em meio a essa busca, encontrava-se outra
ainda mais intensa: a das memórias que a an-
tropóloga tinha deixado no seu lugar de ori-
gem. Durante toda a narração, Walker se ocu-
pa da ressignificação das raízes de Hurston,
focando principalmente em Eatonville, cidade
sobre a qual Zora escreveu diversos contos.
Walker levanta, ainda, questões a respeito do
impacto da presença da autora na cidade, o
desafio do racismo sulista e a rígida hierarqui-
zação étnico-racial e de classe imperante, os
dilemas da independência feminina, as tensões
que surgem ao desvendar as raízes e práticas
culturais corriqueiras na comunidade, junto
com o orgulho interiorano que os moradores
da cidade cultivavam. Além disso, o texto de
Walker é extremamente pedagógico, desta-
cando vários comentários de outres autores a
respeito de Zora a fim de levar a nós leitores a
entender o paradoxo que se reflete na impor-
tância da contribuição de Hurston dentro da
Literatura assim como da Antropologia e o
simultâneo apagamento da autora dentro des-
ses mesmos cenários.
A inventividade de Hurston foi múltipla e não
se ateve à produção de textos escritos. Ela pro-
duziu também filmagens no tempo em que
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional245Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
seus contemporâneos antropólogues Margaret
Mead e Gregory Bateson começaram a desen-
volver vídeos curtos durante seus trabalhos de
campo (El Guindi, 2015). Porém, enquanto
que o casal Mead-Bateson foi registrado na
história da antropologia como sendo pionei-
ro no método, e portanto referência dentro da
área, o trabalho dos vídeos filmados e narra-
dos por Hurston foi ignorado. Foi assim que,
com a intenção de refazer a memória desta
importante subárea da Antropologia como é a
Antropologia visual, foram realizados alguns
trabalhos de legendagem de materiais audio-
visuais. Legendamos um vídeo (1’30’’) onde
Zora performa, canta e analisa a manifestação
norte-americana da Dança do Corvo e traça
uma hipótese sobre sua influência africana;
e de outro vídeo (6’45’’) gravado por ela em
1928, no qual observamos uma série de cenas
da vida cotidiana que ela descreve enquanto
conta piadas, canta músicas populares que, se-
gundo narra, “a sua avó lhe ensinou a cantar”,
convidando aos ouvintes a inventar os últimos
trechos das músicas de acordo com as frases
que elas acharem mais adequadas.
A partir da elaboração destes materiais, o proje-
to RECânone apostou nos processos de difusão
dos textos traduzidos. Entre outras atividades,
foi realizado o i Encontro RECânone “Zora nos
Corredores” se realizou na Semana da Cons-
ciência Negra, no final de novembro de 2019.
Foram instaladas mesas em um dos corredo-
res externos do Setor de Aulas ii do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes, na ufrn. Lá
foram exibidos e comentados livros escritos por
mulheres negras trazidos de forma colaborativa
das bibliotecas das nossas próprias casas. Reali-
zamos também a exibição dos vídeos legenda-
dos assim como dos materiais traduzidos e dos
produtos realizados a partir da reinterpretação
de sua obra: cordéis, fanzines, cesta de citações
e gibis. Também foi realizada uma oficina de
stencil de camisetas com algumas imagens do
cordel e logo do projeto que foram desenvolvi-
dos ao longo do semestre.
A atividade, performada de maneira lúdica,
expandiu seu alcance a alunes, professores e
demais pessoas que circularam no corredor do
setor de aulas cchla naquele dia, despertando
a curiosidade e reflexão acerca das obras de
Zora, bem como sobre as práticas acadêmicas
de legitimação de conhecimentos tidos como
universais, colocando em pé de discussão o di-
reito de poder falar, representar e de produzir
conhecimento num viés rizomático e inclusi-
vo. Foram confeccionadas receitas culinárias
que tínhamos traduzido, fazendo possível de-
gustar o bolo de chocolate que Zora recolhe
nas suas notas etnográficas (1935) assim como
uma limonada típica dos contextos suburba-
nos da Flórida dos anos 1930.
A vivência sensorial foi tratada num patamar
próximo da experiência cognitiva de alunes e
docentes, ao mesmo tempo em que a criação
artística a partir do que as traduções nos ge-
raram foi colocada no nível da produção pro-
priamente técnica dos textos, em uma propos-
ta de tradução intersemiótica. Sabemos que,
ainda quando nas maquinarias acadêmicas da
produtividade sejam contabilizadas apenas as
produções técnicas e os conteúdos produzi-
dos, o processo exalou uma série de vivências
que nos colocaram em um lugar ativo, criativo
e desafiador das estruturas colonizadoras do
saber, ressignificando o espaço dos corredores
universitários que se tornaram um meio de
publicação dos materiais produzidos durante
o semestre.
6. A recepção de Zora em sala de aula
Uma educação libertadora fornece diversas
possibilidades em que os sujeitos possam en-
xergar a história, o seu próprio tempo e os
outros sujeitos, ampliando-lhes a visão de
Ana Gretel Echazú Böschemeier, Natalia Cabanillas, Sandra S. F. Erickson, Victória Dias Barbosa,
Fernanda Ferreira do Nascimento, Mikaelle Thaisa da Costa e Fídias Cavalcanti Freire246Mujeres y traducción en América Latina y el Caribe
mundo, enxergando as diversas contradições.
Segundo Paulo Freire:
[Nós, enquanto que] seres histórico-sociais, nos
tornamos capazes de comparar, de valorar, de
intervir, de escolher, de dialogar, de decidir, de
romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos.
Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é
a condição, entre nós, para ser. Não é possível
pensar os seres humanos longe, sequer, da éti-
ca, quanto mais fora dela. (Freire, 1996, p. 33)
A condição dialética humana de ser sendo pos-
tulada por Paulo Freire, é medular para que
possamos ter uma noção das contradições
que nos rodeiam. Contradições de interesse
entre autores, contradições entre literaturas, entre
as próprias linhas epistemológicas da produ-
ção do conhecimento. Desta maneira, trazer
à tona a epistemologia de autores esquecides
é uma forma concreta de remar contra a maré
constante do epistemicídio (Carneiro, 2005),
fornecendo às Ciências Sociais o conheci-
mento de autores desconhecides, mas cujas
contribuições avaliamos hoje como sendo de
grande magnitude.
O ambiente da sala é um contexto para o de-
senvolvimento dialogado do conhecimento.
Reconhecendo esse pressuposto, o trabalho
com Zora Hurston na disciplina Teoria Antro-
pológica i para o curso de Ciências Sociais na
ufrn durante o semestre 2019.2 promoveu o
engajamento des alunes na produção de en-
saios que abordassem a biografia e a produção
acadêmica de Zora Hurston a partir de uma
perspectiva interseccional. Os diálogos críti-
cos e as produções ali registradas serviram à
docente e discentes como escadas provisórias
para observar os horizontes do mundo da
vida para além do grande muro do cânone.
Uma das integrantes do projeto, a Profa. Ana
Gretel, ministrou durante o semestre 2019.2 a
disciplina Teoria Antropológica I. Ali foram
realizados, em diálogo entre espaços de ensi-
no e extensão, alguns exercícios de apropria-
ção da obra de Hurston a partir de leituras dos
textos recentemente traduzidos. Nesta disci-
plina, a metodologia e bibliografia propostas
abriram um espaço para que os e as discentes
conhecessem outres autores para além daque-
les nomeados e privilegiados pela episteme
hegemônica (Branco et al., 2018).
Estudantes acolheram a proposta refletindo
sobre as formas em que o curso de ciências
sociais, assim como os cursos que formam o
conhecido campo das humanas, carrega em
sua formação um discurso que deslegitima e
apaga o pensamento, voz e produção de de-
terminados grupos sociais que foram e conti-
nuam sendo há muito tempo subalternizados.
Nesse sentido, Djamila Ribeiro (2019, p. 55),
analisando a noção foucaultiana de discurso,
afirma que não devemos pensar nele como um
simples amontoado de palavras ou concatena-
ção de frases, mas sim que ele é um sistema
que estrutura determinados imaginários so-
ciais histórica e socialmente situados.
Deste modo foi que ensaios teóricos, histó-
rias em quadrinhos, cordéis e fotomontagens
foram criados no intuito de fazer diversas re-
leituras da contribuição de Hurston. Destaca-
mos a elaboração de Fernandes dos Santos et
al. (2019) da narrativa da novela “Seus olhos
viam Deus” a partir do uso de técnicas diver-
sas como a performance, fotografia, histórias
em quadrinhos e técnicas audiovisuais, na
consecução de um produto audiovisual leve,
divertido e que é expressivo da receptividade
deste grupo em particular e da turma em geral.
O problema do epistemicídio, denunciado
contemporaneamente (Carneiro, 2005) já era
exposto criticamente por Zora desde as pró-
prias turbulências da sua vida acadêmica, con-
frontando a forma pela qual as pessoas negras
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional247Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
estadunidenses eram representadas na litera-
tura e, ainda, como era a realidade des pesqui-
sadores negres enquanto sujeites produtores
de saber, coisa que é abarcada com excelência
no texto O Sistema do Negro de Estimação
[The Pet Negro System].
Apresentar Zora em sala de aula permitiu-nos
vivenciar a prática de uma micro justiça epis-
têmica na reivindicação da fala de uma antro-
póloga, artista e folclorista que foi apagada,
não acidentalmente, por esse mesmo racismo
estrutural e epistêmico denunciado por ela
décadas antes. A experiência vivenciada pela
turma e por participantes do projeto enrique-
ceu o debate acerca da necessidade de se pen-
sar numa teoria que se alie à prática dialeti-
camente, bem como onde o questionamento
e pensamento crítico sejam estimulados cada
vez mais sustentando um olhar descoloniza-
dor sobre essas produções, para que assim
essas pessoas que foram e são silenciados até
hoje pelo cânone possam passar a ser sujeitas
ativas, visto que se trata não apenas de “falar”
ou ser representades nos textos, mas também
da própria possibilidade de existir.
Grada Kilomba (2019, p. 41) afirma que há
um medo apreensivo de que, se o sujeito co-
lonial falar, o colonizador terá que escutar.
Ele(a) seria forçado a um confronto desconfor-
tável com as verdades des “Outres”. Verdades
que foram negadas, reprimidas e mantidas em
silêncio, como segredos. Segredos como a es-
cravidão, o colonialismo e o racismo. As ativi-
dades realizadas em sala de aula favoreceram
a comparação de perspectivas, entendendo-se
que há um mundo vasto, repleto de conheci-
mentos e nuances fora do que temos constan-
temente perpetuado como ciência, sustentado
pelo cânone. O despertar da curiosidade, das
dúvidas e do próprio interesse humano no
enxergar das diversas possibilidades que ro-
deiam as contradições é auxiliar na defesa da
existência de uma diversidade epistêmica.
O projeto RECânone procura desarticular os
dispositivos de despersonalização na tradução,
trabalhando simultaneamente na obra e na sen-
sibilidade cultural que permite a sua recepção,
na trajetória biográfica da pessoa traduzida e o
efeito que o conhecimento desta vida gera nos
entornos de formação, incorporando o conjun-
to da obra autoral ao repertório cultural próprio
das nossas comunidades, que abraça processos
culturais múltiplos como o cordel, o texto aca-
dêmico e a interpretação teatral. As genealo-
gias próprias (Anzaldúa, 1987) nos permitem
libertar a imaginação do prisma da modernida-
de decimonônica. Podemos dizer que a equipe
embarcou na construção de uma genealogia
própria, à procura de exercer o direito “a ter um
nome” através do estudo e tradução de figuras
autorais que façam sentido para nossa comu-
nidade de estudantes, especialmente àqueles
pertencentes a setores sociais vulnerabilizados.
7. Traduzir para analisar: pontos chave
na obra de Zora Hurston
Um dos desafios do projeto tem sido a bar-
reira linguística, considerando que estudantes
de graduação do nordeste, tanto das capitais
quanto do interior têm acesso relativamente
escasso à língua hegemônica no mundo aca-
dêmico, que é o inglês. Nesse contexto, a lin-
guagem dominante pode ser utilizada como
forma de manutenção de poder, uma vez que
exclui pessoas que foram marginalizadas de
um sistema educacional justo (Ribeiro, 2019,
p. 25). Assim, a qualidade técnica das tradu-
ções foi garantida nos apoiando nas ferra-
mentas analíticas ativadas como recursos por
participantes no projeto que já estão forma-
des e em processo de formação nesse campo.
Porém, temos considerado nossas traduções
como peças cujo valor emerge não só da sua
potência teórica, de seu preciosismo técnico
ou ainda da sua “autonomia estética” (Bloom,
1995), mas também, e de forma medular, do
Ana Gretel Echazú Böschemeier, Natalia Cabanillas, Sandra S. F. Erickson, Victória Dias Barbosa,
Fernanda Ferreira do Nascimento, Mikaelle Thaisa da Costa e Fídias Cavalcanti Freire248Mujeres y traducción en América Latina y el Caribe
seu vínculo cultural, social e político com os
contextos nos quais elas foram produzidas.
Também nos ocupamos de realizar uma tra-
dução sensível ao contexto de recepção, com
notas de rodapé explicitando conceitos que
podiam permanecer confusos, ressaltando os
poucos — mas verdadeiramente existentes
— casos nos quais não compreendemos o que
a autora quis dizer. Temos refletido sobre o
sentido da escolha de cada texto, ao mesmo
tempo em que projetamos algumas condições
para que estes textos fossem lidos e relidos,
recontextualizados, citados, estudados e po-
tencializados em novas aproximações teóri-
cas, etnográficas e literárias de índole local
de modo que, para usar a metáfora da própria
Zora, pudéssemos encher de luz os cinzentos
corredores acadêmicos, tanto quanto os itine-
rários formativos de nossos leitores.
Pensar na obra de Zora Hurston é refletir so-
bre a produção de uma sujeita que, havendo
transitado pela ficção, também o fez pela ciên-
cia antropológica na sua vertente etnográfica,
compilando os saberes da oralidade (à ma-
neira da lenda de John Henry, compilada em
Mules and Men, de 1935), colhendo narrativas
locais sobre saúde popular (à maneira das Pres-
criptions of Root Doctors, de 1935). Ao mesmo
tempo, Zora não se poupou de falar em te-
mas urgentes, como a reflexão crítica sobre o
racismo intelectual em formato ensaístico na
escrita de The Pet Negro System, do ano 1943.
A produção de Zora é diversa, radical, colo-
rida. O trabalho das traduções coletivas nos
incitou a desenvolver novos olhares sobre a au-
tora e levantar uma série de questionamentos
de tipo narrativo, científico e epistemológico.
Acreditamos que há uma importante revisão
histórica a ser realizada da forma em que a an-
tropologia cultural norte-americana tem reagi-
do perante as propostas de Hurston. Longe de
serem incorporadas e problematizadas dentro
do projeto maior desta disciplina, houve um
silenciamento e uma marginalização da obra
de Hurston cuja genealogia crítica merece ser
reconstruída. Nosso trabalho tentou desem-
poeirar, no sentido de trazer para o uso coti-
diano um dispositivo esquecido em algum baú
da casa da antropologia, algumas estratégias
significativas da escrita de Zora Hurston nas
fronteiras entre a antropologia, a performance
artística e a produção literária. Fizemos isso
com o cuidado que requer lidar com a delica-
deza da reconstrução deste tipo de material, e
estamos prestes ao aprimoramento destas me-
todologias situadas e cuidadosas de reconstru-
ção genealógica.
María Cotera (2008) descreve a experiência de
três autoras mulheres, pertencentes a três gru-
pos etnicamente diferenciados: Ella Deloria,
de ascendência indígena; Jovita González, de
ancestralidade chicana [mexicana] e finalmen-
te a afrodiaspórica Zora Neale Hurston. Dos
casos analisados, o de Hurston manifesta seu
caráter excepcional no que diz respeito a um
aspecto específico: ela alcançou um status
acadêmico atípico para mulheres racializa-
das como não brancas na época, enquanto de
acordo com o paradoxo antes mencionado, o
efeito da sua produção dentro do cânone aca-
dêmico da época resultou ser muito menor
do esperável em virtude do mérito alcançado
pelo seu trabalho. Isto nos traz, rapidamente
para a consideração de que o acesso não se
resolve somente com o ingresso nessas insti-
tuições, mas também com a possibilidade de
fazer redes, dialogar no marco de interlocu-
ções significativas e, finalmente, conseguir se
identificar subjetivamente com esses espaços,
garantindo a própria permanência neles.
Cotera relata como, através da análise compara-
tiva de correspondências enviadas entre Franz
Boas e alguns de seus alunes, Zora recebeu
muito menos atenção do que as “estrelas” da
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional249Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
escola, especialmente Ruth Benedict e Marga-
ret Mead, por parte do mestre (Cotera, 2008).
A autora mede a proficuidade da comunicação
entre Hurston e Boas a partir da quantidade e
do teor das correspondências enviadas entre o
mestre e seus alunes. E essa análise demonstra
que a comunicação era escassa, tanto em ter-
mos de intercâmbios de fato quanto em termos
do grau de intimidade impregnado na escrita
dessas cartas. Assim mesmo, a comunicação de
Hurston com outres colegues da antropologia
era escassa. Desta forma, observamos que, ape-
sar de ela pertencer a uma prestigiosa instituição
científica, um vazio foi criado ao redor do seu
trabalho. O seu intercâmbio com interlocutores
significativos, como vimos no tópico anterior,
permaneceu fortemente ligada ao movimento
cultural e dos direitos humanos do Harlem Re-
naissance mais do que à própria antropologia.
Talvez tenha sido por isso que Zora é lembrada
hoje como um ícone da literatura norte-america-
na, mas não como a antropóloga criativa, crítica
e audaz que ela foi.
É importante destacar, também, que a or-
dem eurocêntrica do conhecimento advém de
um sistema de relações desiguais de poder de
“raça”, e que qualquer forma de saber que não
se enquadre nesta ordem é rejeitada. O siste-
ma acadêmico hegemônico construído em um
espaço de e para brancos emudece as vozes
daqueles que foram subalternizados, desquali-
ficando suas produções e conhecimentos, num
processo de silenciamento e apagamento, de-
limitando que aquele espaço não lhe cabe, “a
confirmação de que não há espaço onde coloni-
zadas/os podem falar” (Kilomba, 2019, p. 53).
Colocaremos aqui as pontas de alguns fios
que consideramos chave para uma análise de-
colonial da obra desta autora e que podem nos
ajudar a questionar o caráter eurocêntrico da
antropologia que performamos na academia.
Tais considerações pretendem criar laços de
afeto e identificação entre a obra de Zora Hurs-
ton e o coletivo de antropólogues brasileires e
latino-americanes em geral: antropólogues ne-
gres, indígenas e, de forma mais ampla, aqueles
que provêm das comunidades que se dedicam
a pesquisar - aqueles que cultivam a necessá-
ria antropologia feita em casa e representativa
em termos de lugares de enunciação. Mais em
cima citamos alguns aspectos chave da obra de
Zora Hurston, a saber: antropologia como crí-
tica cultural, apagamento das fronteiras entre
gêneros textuais, conhecimento corporificado e
situado, descentramento a respeito do logocen-
trismo, questionamento radical da dicotomia
sujeito-objeto, reconhecimento da provisorie-
dade das produções científicas, visibilização
de epistemologias situadas em pontos de vista
- standpoint epistemologies, diálogo aberto entre
ciência e produção cultural. Para os fins deste
artigo, gostaríamos de nos determos somente
no ponto que diz respeito ao apagamento entre
os gêneros textuais da literatura e da antropolo-
gia, pois ele se manifestou como uma constante
inquietação ao longo do trabalho de tradução
dos textos de e sobre Zora Hurston.
Zora colhia relatos da própria comunidade
para reinterpretá-los, muitas vezes, de forma
livre e aberta. Concordando com a ideia de
que “quem conta um conto aumenta um pon-
to”, a maior parte da obra de Zora se encontra
situada em uma área intersticial entre os gê-
neros onde não há uma delimitação explícita
entre “verdade objetiva” (terreno legitimado
pela “ciência antropológica”) e “construção
ficcional” (espaço cabível à literatura). Os es-
forços de verossimilhança na descrição dos
dados de campo são colocados em segundo
plano para privilegiar a expansão dos fatos da
cultura “para além dela”, estimulando leitores
e ouvintes para somar seu ponto no bordado
das práticas colhidas.
Assim, em um vídeo onde ela realiza várias
capturas de seu trabalho de campo na Flórida
Ana Gretel Echazú Böschemeier, Natalia Cabanillas, Sandra S. F. Erickson, Victória Dias Barbosa,
Fernanda Ferreira do Nascimento, Mikaelle Thaisa da Costa e Fídias Cavalcanti Freire250Mujeres y traducción en América Latina y el Caribe
rural (Hurston, 2019), ela sugere “inventar”
partes de uma música cujos detalhes assume
não lembrar: “não sei quem me contou essa
música, eu ouvi essa música no meu povoado
de origem quando eu era uma criança (...) eu
vou chamar esse verso de (...), mas você pode
pegar qualquer verso e customizá-lo” (2019:
2’45’’). Preenchendo o sentido mais antigo
da ideia de “mito”, Hurston compreendia as
histórias do folclore do seu próprio povo não
como “mentiras”, mas como imaginações
com peso social onde as narrativas tinham o
trabalho, por si próprias, de serem construto-
ras de verdade e performadoras de práticas.
Acreditamos que o trabalho científico de Zora
tenha sido relegado ao ficcional, e que o fic-
cional atuou, neste caso, como uma prisão.
Entendemos aqui o espaço do ficcional como
um território cativo em um sentido bem es-
pecífico: as ficções, com seu poder único de
imaginar o individual junto com o social, com
a possibilidade de macerar distopias, absurdos
e sistemas bizarros comparáveis ao real atra-
vés da metáfora, da hipérbole ou da ironia,
possuem um potencial altamente libertador.
Porém, no que diz respeito ao contexto espe-
cífico da recepção da obra de Zora na ciência
antropológica, o ficcional tem sido o gueto (e
fazemos um uso bem consciente desse termo,
com suas evidentes implicações sócio-histó-
ricas) onde a produção de conhecimento da
autora foi relegada.
8. Conclusões: a tradução como tarefa
de reparação epistêmica
“Não quero uma literatura que deprecia meu
trabalho”
Oyeronke Oyegumi, 1988 (como citada em Mudimbe,
2013 [1988]).
Nas últimas décadas, o incremento na pre-
sença de novos atores – estudantes negros e
negras, quilombolas, indígenas, dentre outres,
trouxe novos olhares e perguntas fortalecidas,
enriquecendo com esses questionamentos o
campo das humanidades e das ciências sociais.
Dentro dessas perguntas se encontra, de forma
central, a procura pela bibliografia de autores
negres e outros elementos que as constituem
pelas genealogias intelectuais da diáspora afri-
cana, indígena e latina.
“Não quero [ler] uma literatura que deprecia meu
trabalho”, foi a resposta que a socióloga ni-
geriana Oyeronke Oyegumi deu a seu orien-
tador quando ele insistia para que Oyeronke
abordasse a biblioteca colonial (Mudimbe, 2013
[1988]) para elaborar o famoso “Estado da
Arte” que se coloca como prerrogativa à toda
pesquisa. É preciso questionar essas práticas
e criar novas. Procuramos o diálogo Sul-Sul
como uma estratégia de reciprocidade, aten-
dendo à novas formas de atenção ao que é
potencialmente libertador. Porque tanto como
precisamos falar, precisamos escutar. Não se
trata somente de “criticar” o conhecimento
eurocentrado e heteronormativo para conti-
nuarmos imerses nele: precisamos reconstruir
o itinerário que até aqui nos trouxe, conside-
rando o significado talhado sob a forma do
silêncio histórico e cultural. Parafraseamos
Glória Anzaldúa (2012 [1987]), quando no
seu último capítulo de “Borderlands. La Fron-
tera: The New Mestiza”, propõe (re)existir na
criação de novas genealogias culturais.
A partir da contribuição de autoras como Zora
Neale Hurston é que nutrimos nossa teoria e
nossa prática, voltando às suas produções para
procurar respostas em nossos tempos embru-
tecidos. No decorrer do trabalho, fomos nos
tornando afetiva e intelectualmente mais pró-
ximes à obra de Zora, dialogando com ela em
vários níveis e restituindo, na experiência, uma
parte da escuta intelectual que a academia do
seu tempo lhe negou. A prática da escrita de
A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone antropológico:
Práticas de extensão desde uma perspectiva feminista e interseccional251Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 13, N.°2, 2020, julho-dezembro,pp.228-254
Zora Neale Hurston foi marcada pela resis-
tência e confronto aos poderes estabelecidos
dentro e fora da academia: Zora tinha o co-
nhecimento de que se tratava de dar voz à sua
própria comunidade cuja sobrevivência esta-
va ameaçada por genocídios e epistemicídios
sistêmicos.
Conforme anuncia Ribeiro (2019, p. 42),
quando pessoas negras estão reivindicando o
direito de ter voz, de serem sujeites, elas rei-
vindicam, ao mesmo tempo, o direito à pró-
pria vida. Assim como tantas outras autoras
negras, Hurston abriu novos caminhos para
pensar e exercer a antropologia a partir de um
lugar potencialmente libertador. A leitura des-
ta autora poderia ter sido chave interpretativa
para referência de etnógrafos e etnógrafas das
seguintes gerações, particularmente em con-
textos onde os temas que se estudam fazem
parte da dinâmica social das próprias comu-
nidades. Hoje, das universidades do nordeste
brasileiro, situades nesse cruzamento de ca-
minhos geo-temporal do ano 2020, nos alenta
recuperar a obra desta autora, rica em escre-
vivências (Evaristo, 2006) e, como tradutoras
e comentaristas, nos destinamos nossos traba-
lho à sua efetiva reinscrição na genealogia de
pensamento antropológico, com ela reivindi-
cando processos de escuta, leitura, tradução,
ensino e criação radicalmente libertadores.
Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer à antropóloga Ni-
cole Washburn pelas suas revisões qualifica-
das desde o sul dos Estados Unidos; ao Prof.
Rafael Antunes Almeida pela organização da
Oficina Recânone na unilab, à doutoranda em
Antropologia Peti Mama Gomes pelo apoio
com informações específicas sobre a comuni-
dade de Estudantes Africanos na unilab, ao
Sócio-Antropólogo Dr. Pingréwaoga Béma
Abdoul Hadi Savadogo pela revisão do resumo
em francês, à filósofa e tradutora Caterina Rea
pelas orientações e à Profª. Denise Costa pelo
estímulo e fornecimento de bibliografias para
serem traduzidas pelo projeto. Integrantes do
Projeto RECânone: Sandra F. Erickson, Tânia
Lima, Fernanda F. do Nascimento, Maria Cla-
ra F. dos Santos, Pábllo E. Viana Pereira, Pa-
blo S. Lisboa, Thiago J. Nascimento, Uriell B.
Gomes Costa, Marie Castanheda, Victória D.
Barbosa, Vinicius C. Chaves, Natalia Cabani-
llas e Ana Gretel Echazú B. Agradecemos aos
seguintes discentes do curso de Ciências So-
ciais a sua colaboração no I Evento RECâno-
ne - Zora Nos Corredores: Juliana Mytzi, Vic-
toria Regia S. de Moura, Clístenes E. da Silva
Costa, Taizia T. Dos Santos, Elton C. Barbosa.
Estamos gratas à colaboração do arteativista
Pedro I. Barros Castro na Oficina de Stencil
sobre Zora Hurston.
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Como citar este artigo: Echazú, A., Cabanillas, N., Erickson, S., Barbosa, V., do Nascimen-
to, F., da Costa, M. e Cavalcanti, F. (2020). A tradução de Zora Neale Hurston para o cânone
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