ISSN 2011-799X
Artículo recibido: 18/07/2022
Artículo aceptado: 12/12/2022
doi: 10.17533/udea.mut.v16n1a07De freira a alferes, da Espanha à América:
transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo1
Leticia Pilger da Silva
leticiaspilger@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-1999-7336
Universidade Federal do Paraná (ufpr), Curitiba, Brasil.
Suéliton de Oliveira Silva Filho
seul.literato92@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-7740-794X
Universidade Federal do Paraná (ufpr), Curitiba, Brasil.
Resumo
O presente artigo estrutura-se a partir de uma tradução, feita pelos autores deste trabalho, da auto-
biografia de Antonio de Erauso para o português brasileiro contemporâneo. Escrita no século xvii,
mas publicada apenas dois séculos depois, sob o título Historia de la monja alférez, a obra traz a história
de Antonio de Erauso, nascido Catalina, que, após fugir do convento em que vivia, se veste com
roupas masculinas e empreende uma viagem para a América Latina, onde se transforma em soldado
da coroa espanhola até ser descoberto seu sexo, quando é deportado para a Europa e consegue uma
autorização do papa para continuar com o gênero assumido. Ancorada nas discussões atuais acerca
da identidade de gênero e nos estudos da tradução queer, a tradução proposta é uma atualização
crítica do texto ao reconhecer a personalidade de seu autor como homem trans. Para isso, será feita
uma análise das escolhas tradutórias, cotejando a versão utilizada como texto de partida, baseada na
edição de Ferrer (1829), com a tradução para o inglês de Stepto e Stepto (1996), com o objetivo de
afirmar a identidade de Erauso, em detrimento da feminina consolidada pela crítica. Assim, o estudo
se mostra relevante pela ressignificação do texto, respeitando seu caráter documental e histórico, e
pela discussão das possibilidades de tradução do gênero.
Palavras-chave: viagem, transexualidade, autobiografia, Antonio de Erauso, tradução
1 Este artigo é produto do projeto de pesquisa “FreirAlferes – Traduzindo Antonio de Erauso”, realizado pe-
los autores dentro da linha de pesquisa “Alteridade, mobilidade e tradução”, do Programa de Pós-graduação
em Letras da Universidade Federal do Paraná (ufpr).
Leticia Pilger da Silva e Suéliton de Oliveira Silva Filho110Re-sentir lo queer/cuir en la traducción iberoamericana
De monja a alférez, de España a América: transformando Antonio de Erauso
al portugués brasileño contemporáneo
Resumen
El artículo se estructura a partir de una traducción, realizada por los autores de este trabajo, de la
autobiografía de Antonio de Erauso al portugués brasileño contemporáneo. Escrita en el siglo xvii,
pero publicada solo dos siglos después, bajo el título Historia de la monja alférez, la obra trae la historia
de Antonio de Erauso, nacido Catalina, que, tras huir del convento donde vivía, se viste con ropas de
hombre y emprende un viaje a Latinoamérica, donde se convierte en soldado de la corona española hasta
que su sexo es revelado, cuando es deportado a Europa y obtiene autorización del papa para continuar con
la identidad de género asumida. Anclada en las discusiones de hoy sobre la identidad de género y los estu-
dios de la traducción queer, la traducción propuesta es una actualización crítica del texto al reconocer la
personalidad como hombre trans. Para ello, se hará un análisis de las elecciones de traducción, compa-
rando la versión utilizada como texto de partida, basada en la edición de Ferrer (1829), y la traducción
al inglés de Stepto y Stepto (1996), con el fin de afirmar la identidad de Erauso, en detrimento de
la femenina consolidada por la crítica. De esta manera, el estudio es relevante por la resignificación
del texto, respetando su carácter documental e histórico, y por la discusión de las posibilidades de
traducción del género.
Palabras clave: viaje, transexualidad, autobiografía, Antonio de Erauso, traducción
From Nun to Soldier, from Spain to America: Transforming Antonio de Erauso
into Contemporary Brazilian Portuguese
Abstract
This paper aims to analyse the translation, by the authors of this work, of Antonio de Erauso’s au-
tobiography to contemporary Brazilian Portuguese. Written in the 17th century and first published two
centuries after under the title of Historia de la monja alférez, the book tells Antonio de Erauso’s life, who
was born Catalina and ran away with masculine clothes from the convent. He travelled to Latin Ameri-
ca, where he became a soldier of the Spanish Empire until his sex was revealed, then he was deported
to Europe and received an authorization from the Pope to continue with his assumed gender identity.
Considering the discussions from today on gender identity and queer translation studies, our translation
is a critical actualization of the text by recognizing the character as a trans man. For this, we will explain
our translating choices by means of comparison to Ferrer’s edition (1829), and the Stepto’s translation
(1996) to English, so that Erauso’s identity will be affirmed in opposition to the female one that the
critique has consolidated. This work, thus, is relevant by the resignification of the text, respecting its
documental and historical aspect and discussing the possibilities of gender.
Keywords: travel, transsexuality, autobiography, Antonio de Erauso, translation
De freira a alferes, da Espanha à América: transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo111Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 16, N.°1, 2023, enero-junio,pp.109-131
De nonne à lieutenant, de l’Espagne à l’Amérique : adapter
Antonio de Erauso en portugais brésilien contemporain
Résumé
Cet article a été rédigé à partir d’une traduction de l’autobiographie d’Antonio de Erauso, écrite au
xviie siècle et publiée seulement deux siècles après, sous le titre Historia de la monja alférez (Histoire
de la nonne lieutenant), en portugais brésilien contemporain. L’œuvre raconte l’histoire d’Antonio de
Erauso, né Catalina, qui, après s’être enfui du couvent dans lequel il vivait depuis l’âge de quatre ans,
décide de s’habiller en homme et entreprend un voyage en Amérique Latine, où il devient soldat de la
couronne espagnole jusqu’à ce que son sexe (biologique) soit révélé. Il est alors déporté en Europe et
obtient du pape l’autorisation de continuer à vivre sous l’identité de genre adoptée. Au cœur des déba-
ts actuels sur l’identité de genre et les “queer studies”, la traduction proposée offre un regard nouveau
et un œil critique sur le texte, dans la mesure où, non seulement elle reconnait la personnalité trans de
cet homme, mais va jusqu’à voir dans cette œuvre un portrait du processus violent de la colonisation
de l’espace et du genre. Dans cet esprit et en dépit de l’identité féminine consolidée par la critique,
l’analyse de la traduction justifie le choix de l’affirmation de l’identité d’Erauso, au-delà de l’histo-
ricisation de la transsexualité. Ainsi, l’analyse se révèle particulièrement pertinente puisqu’elle rend
possible la redéfinition du texte, tout en respectant son caractère documentaire et historique, mais
aussi parce qu’elle permet d’échanger sur les différentes possibilités qu’offre la traduction du genre.
Mots-clés : voyage, transidentité, autobiographie, Antonio de Erauso, traduction
Leticia Pilger da Silva e Suéliton de Oliveira Silva Filho112Re-sentir lo queer/cuir en la traducción iberoamericana
1. Introdução, ou o começo da viagem
Escrita por volta de 1626, a obra com que tra-
balhamos aqui traz a autobiografia de Antonio
de Erauso, viajante basco que contribuiu para
o processo de colonização espanhola da Amé-
rica Latina. Durante a leitura, descobre-se que,
nascido Catalina, no ano de 1592, Antonio foi
criado com seus outros irmãos até completar
quatro anos, quando foi mandado por sua famí-
lia para o convento de San Sebastián, de freiras
dominicanas, onde permaneceu até 1607. Com
15 anos, prestes a fazer seus votos, Erauso re-
lata que numa determinada oportunidade, com
as chaves do convento, fugiu e, a partir desse
evento, se escondeu, cortou e costurou as rou-
pas que trajava, transformando-as em peças
masculinas e assumindo, com isso, uma nova
identidade (Erauso, 1894; 2021).
Sozinho e tateando o mundo, em suas andan-
ças pela Espanha enquanto exercia pequenos
ofícios para terceiros, rapidamente descobriu o
significado de ser senhor de si. O primeiro nome
que assumiu, condizente com sua nova identi-
dade, como relata na autobiografia, foi Francis-
co Loyola e, ao longo do relato, assume outros
nomes masculinos até chegar, muitos anos de-
pois, a Antonio de Erauso. Ainda em 1610, na
Espanha, sobe em uma embarcação rumo à
América Latina, onde dará início à vida mili-
tar (Erauso, 1894; 2021).
Organizado, dois séculos depois, por Joaquín
M.ª de Ferrer, o texto foi publicado como livro
apenas em 1829, pela Imprenta Julio Didot.
Recebeu o título Historia de la monja alférez, doña
Catalina de Erauso, escrita por ella misma, sendo a
autoria atribuída a Catalina de Erauso. Até então
sem versão no português brasileiro2, a obra foi
traduzida coletivamente pelos dois autores deste
artigo, no Brasil, e publicada em 2021 pela edi-
tora Medusa. Intitulada “FreirAlferes: transfor-
mando Antonio de Erauso”, é essa edição que
2 A obra foi traduzida ao português europeu por Edi-
torial Teorema, em 2000, com tradução de Jorge
Fallorca. No entanto, não tivemos acesso à edição.
será o foco do presente artigo, no qual analisa-
remos o processo de formação de Erauso, além
de justificarmos nossas escolhas tradutórias.
É válido apontar como a obra foi acessada, na
tentativa de recuperar a forma como a crítica
vem lendo o livro de memórias desse viajante
basco. Em meados de 2018, a autora do artigo,
que é também uma das tradutoras da obra, teve
contato com o título No Place for a Lady: Tales of
Adventurous Women Travelers, de Barbara Hodg-
son (2003), que traz um compilado de histórias
de mulheres que conseguiram se deslocar sig-
nificativamente do lugar onde haviam nascido
– quando a prática não era tão comum por di-
versos motivos que coibiam a liberdade femini-
na. Um dos relatos que compõem o estudo de
Hodgson é justo o de dona Catalina de Erauso.
Impulsionada pela estranheza que a descrição
causava – a história de uma freira que vive como
soldado –, a então leitora que se transforma-
ria em uma das tradutoras de FreirAlferes teve
acesso ao texto pelo site do Instituto Miguel de
Cervantes. Já na primeira leitura percebeu que
era necessário repensar a representação de gê-
nero do livro. Em 2020, após apresentar o texto
ao tradutor brasileiro, é que a tradução coletiva
iniciou.
É importante afirmar que o processo tradutório
desenvolvido figura também como de atualiza-
ção crítica da obra, que vem sendo estudada de
forma prolífica desde os estudos de gênero (Me-
rim, 1999; Velazco, 2000; Rutter-Jensen, 2007;
García-Sánchez, 2015; Goldmark, 2015). Isso
porque, diferentemente da publicação do século
xix, em língua espanhola, e da realizada ao fi-
nal do século xx – uma tradução para a língua
inglesa, publicada em 1996, pela Beacon Press,
sob o título Lieutenant Nun: Memoir of a Basque
Transvestite in the New World, e realizada por Mi-
chele Stepto e Gabriel Stepto –, a feita para o
português brasileiro é a primeira, segundo te-
mos notícias, a creditar a autoria a Antonio de
Erauso, e não a Catalina, como acontece com
as versões das demais línguas. Além das cita-
das em espanhol e inglês, por meio de pesqui-
sas, chegamos a uma em francês (Histoire de la
De freira a alferes, da Espanha à América: transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo113Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 16, N.°1, 2023, enero-junio,pp.109-131
monja-alferez, doña Catalina de Erauso: écrite par
elle-Même, et enrichie de notes et documens, de
1830, traduzido por L. V.), outra em italiano
(Storia della monaca alfiere scritta da lei medesima,
com tradução de Lucrezia Panunzio Cipria-
ni, de 1991), além de um estudo interpretativo
em alemão (La Monja Alferez: Die Autobiographie
Der Catalina de Erauso in Ihrem Literarischen Und
Gesellschaftlichen Kontext, de Cornelia Lottham-
mer). Há em todas, já no paratexto, referência
a Catalina de Erauso como responsável pela
escrita.
O objetivo deste estudo, portanto, é analisar
comparativamente nossa tradução para o portu-
guês brasileiro, intitulada FreirAlferes, e seu texto
de partida, Historia de la monja alférez, mas tam-
bém perscrutar ocorrências da tradução para o
inglês – pela relevância da língua em escala inter-
nacional e o alcance de público. Considerando
que os estudos da tradução queer fundamentam
nosso projeto tradutório e justificam muitas das
nossas escolhas – como a atribuição da autoria
a Antonio de Erauso e, com isso, a necessidade
de pensar um novo título –, na próxima seção
recuperaremos discussões desenvolvidas nesse
campo. Na seção de número quatro esmiuçare-
mos detalhes do nosso projeto, para finalmente,
na última, analisarmos passagens nas quais há
oscilação de gênero e justificar nossas escolhas
tradutórias.
2. Pelos caminhos da tradução queer
Considerando que a tradução, como defende
Venuti (2008), pode reafirmar ou subverter
ideologias, nosso exercício de traduzir a auto-
biografia de Erauso teve como objetivo, além
de disponibilizar o texto em português, ressig-
nificar e destacar a autoria de modo a contribuir
para que a comunidade transgênero brasileira
construa a história de sua representatividade
trans-historicamente. Assim, a partir da tra-
dução como um ato político de afirmação de
identidades e autorias marginalizadas (Pinhei-
ro, 2021), dialogamos com os preceitos dos
estudos da tradução queer, apesar de sermos
tradutores cisgênero, pois, conforme Robinson
(2019) – que constrói a primeira parte de seu
livro a partir do conceito de “conhecimento-e-
mancipação”, de Boaventura de Sousa Santos,
para justificar a necessidade do olhar cis para
a tradução queer –, pesquisadores e tradutores
cis devem pensar a tradução queer por diversos
motivos, como o fato de inscrever na prática da
pesquisa a alteridade, lutar contra a normati-
zação e o epistemicídio e produzir novos regi-
mes de valor, por meio do conhecimento como
emancipação e solidariedade.
A aproximação entre os estudos queer e os da
tradução é recente (Santaemilia, 2018); no en-
tanto, no início dos anos 2000, Keith Harvey
(2000) foi uma voz solitária na defesa da tra-
dução como forma de subverter representações
do gênero e disponibilizar modelos diferentes
a minorias durante a leitura. Hoje, com uma
discussão maior, temos o aporte de diversas pu-
blicações, em livros ou revistas – como o volu-
me no qual este artigo foi publicado. Segundo
Mazzei,
Se os Estudos Queer problematizam a repre-
sentação da outridade, os Estudos da Tra-
dução destacam a outridade da representação.
Aproximar os Estudos Queer e os Estudos da
Tradução, portanto, desestabilizaria não ape-
nas os modelos tradicionais da representação,
entendida como mimese, reflexão, cópia, mas
também as vozes autorais e as subjetivida-
des que eles produzem. (2007, p. 2, tradução
nossa).
Conforme Baer (2021), a relação entre as áreas
é muito produtiva porque o queer problematiza
a forma como se traduzem – e se leem – os
gêneros e as sexualidades, o que faz com que
a tradução queer seja, como defende Silva-Reis
(2021), “contra-cistema”. A tradução, dentro
da Teoria Queer, expõe como os sentidos são
construídos, também repensa o sistema binário e
a forma como o gênero é usado como categoria
analítica hierarquizante em diversas culturas.
Assim, a tradução do queer é um processo po-
lítico que envolve “o reconhecimento das mar-
gens, exclusões, abjeções e opressões de corpos
Leticia Pilger da Silva e Suéliton de Oliveira Silva Filho114Re-sentir lo queer/cuir en la traducción iberoamericana
alternativos” (Ruvalcaba, 2016, p. 5, tradução
nossa), de forma a desafiar os conhecimentos
e as práticas corporais. Portanto, estudar a tra-
dução junto dos estudos queer é radicalmente
destruir noções de poder na linguagem e nas
construções cis-heteronormativas. Para Baer,
A tradução como um método para com-
preender a circulação transnacional de se-
xualidades queer não é restrita a uma leitura
crítica de traduções propriamente ditas, mas
se estende para o enquadramento dessas
traduções para novas leituras em um contexto
cultural distinto, para uma língua diferente, e
geralmente em um outro período histórico,
com atenção especial para a contextualização
da escrita da vida queer. (2021, p. 11, tradução
nossa).
Os estudos queer também contribuem para que
repensemos as metáforas da tradução e, conse-
quentemente, para a própria compreensão do
fazer tradutório. Tradicionalmente, como apre-
senta Chamberlain (2005), a tradução foi vista
como feminina, logo inferior, enquanto o su-
posto original seria superior, como o masculino;
a tradução queer quebra essa lógica reprodutivis-
ta e sexista. A partir da concepção da tradução
como o ato de vestir o texto de partida com a
roupagem de outra língua, St. Andrés (2010)
propõe a tradução como cross-dressing (traves-
timento), considerando que tanto a tradução
quanto o travestimento foram vistos historica-
mente como formas de “esconder” a verdade.
Tal leitura se mostra enviesada, a nosso ver,
porque a tradução, enquanto atividade criativa,
cobre o corpo do texto com um novo texto, uma
nova roupagem que agrega sentidos.
A partir dessa nova roupagem, a tradução queer
pode ser aproximada da ideia de palimpsesto,
visto que ela se revela uma leitura que acrescenta
camadas ao texto de partida, reescrevendo, atua-
lizando e potencializando-o em diversos níveis,
por meio de “relações entre dois ou mais tex-
tos, entre textos específicos e discursos prévios
e existentes” (Buendía, 1999, p. 196, tradução
nossa). Nesse sentido, Bancroft (2020) recupe-
ra o conceito de “reparative reading” (leitura
reparadora), desenvolvido por Eve Sedwick,
para propor uma tradução que também seja re-
paradora e analisa a tradução da Odisseia e de
poemas de Safo por H. D., que alterava os textos
de modo a mostrar uma perspectiva alternativa
à consolidada, androcêntrica: a presença de mu-
lheres e do queer. A alteração do texto grego pela
poeta estadunidense, bem como sua prática de
realizar comentários junto da prática tradutó-
ria, cria um novo texto e faz da tradução uma
proposta que atualiza o texto de partida por
meio da diferença, formal e subjetiva. A tradu-
ção queer, portanto, mostra-se uma metodolo-
gia para pensar sentidos outros e reimaginar o
contexto.
Ao pensar a tradução pela chave da transgene-
ridade, Emily Rose (2018) defende que a metá-
fora desconstrói, concomitantemente, o binário
entre feminino e masculino e entre original e tra-
dução. Segundo ela, assim como o gênero é flui-
do e performativo (a partir de Butler, 2002, 2016)
e não há um corpo primeiro capaz de trazer um
gênero inaugural – não existe uma essência e
um corpo único e monolítico –, a tradução não
é uma traição como mascaramento do texto,
mas parte dele, por não existir um sentido úni-
co e verdadeiro (as discussões sobre a morte
do autor dos pós-estruturalistas já provam isso.
Iser, 1996; Barthes, 2004). Enquanto, histori-
camente, as pessoas transgênero e a tradução
tiveram que se esconder atrás de categorias con-
sideradas superiores, como “gênero igualado ao
sexo” e “texto original”, a abordagem queer da
tradução permite não apenas que as identida-
des trans sejam reveladas e a tradução seja vista
como um processo criativo de um novo texto,
mas mostra como o tido “normal” é também
um mascaramento. Rose conclui:
Gênero é estável apesar de fluido, dicotômi-
co ainda que múltiplo, conservador mesmo
que radical e, por causa dessas contradições,
é queer. Tradução é tudo isso, e é a justapo-
sição da expressão trans e a tradução que nos
ajuda a ver a tradução como fluida, múltipla,
radical e queer. (2018, p. 22, tradução nossa)
De freira a alferes, da Espanha à América: transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo115Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 16, N.°1, 2023, enero-junio,pp.109-131
Com isso, a aproximação entre as áreas tam-
bém contribui para a quebra da invisibilidade
do tradutor, porque tradicionalmente foi preco-
nizada a fluência da tradução3, a partir da do-
mesticação do texto de partida (Venuti, 2008).
Nesse sentido, é importante recuperarmos o
exemplo de Venuti para desmistificar a domes-
ticação que almeja a fluência: a tradução de
Robert Graves para De vitis Caesarum, de Sue-
tonius, como The Twelve Caesaers. Na tentativa
de deixar mais didático, considerando seu pú-
blico de estudantes e leitores não especialistas,
Graves não apenas elimina trechos que acha ir-
relevantes, mas traduz passagens com teor queer
de forma homofóbica, o que mostra que a flui-
dez não afirma necessariamente a tão buscada
fidelidade. Sua suposta invisibilidade, nesse
contexto, trabalha a favor da cultura dominan-
te. Dessa forma, ao se romper com a lógica da
fluência e da domesticação, a tradução queer
concede ao tradutor a liberdade de interpretar
e criticar o texto no processo tradutório, assim
como criar novos sentidos e trabalhar a favor
da visibilidade de suas escolhas e do significado
político do texto.
3. A viagem do texto de Erauso
A falta de um título é um dos traços particulares
do texto de Antonio de Erauso, que se compre-
ende pelo fato de ter sido editado e publicado
como livro apenas no século XIX. Outro traço
que resulta particular é a inclusão, nos apêndices,
da transcrição do memorial de Erauso4, dirigido
ao rei espanhol com o objetivo de assegurar a
pensão pelos serviços militares realizados (An-
drès, 2002). A propósito, revela-se uma ques-
tão espinhosa: a ausência de um texto primeiro
permite que se desconfie da autoria e/ou se leia
3 Para Venuti (2008), a definição de “fluência” é
histórica, visto que depende de épocas, culturas
e contextos para que determinada estratégia seja
tomada como fluente.
4 Memorial de los méritos y servicios del Alférez
Erauso, localizado no Arquivo Geral das Índias de
Sevilha, e incluído na edição de Ferrer como provas
da existência de Erauso. Esses documentos foram
traduzidos ao português no Apêndice do livro.
a obra como apócrifa; diz-se que supostamente
teria sido escrita por uma autoria coletiva a par-
tir dos depoimentos do apêndice (Goldmark,
2015) e há quem considere o relato uma forma
pioneira de literatura de testemunho (Merrim,
1999). Segundo a tradutora do inglês, Stepto
(1996), o texto foi mantido por um século pela
família Urbizu, descendentes do primeiro pa-
trão de Erauso. Então foi copiado, no século
xviii , por Cándido María Trigueros e, poste-
riormente, por Juan Bautista Muñoz.
No entanto, segundo Rose (2018), existem, hoje,
três versões do texto: uma na Academia Real
de História de Madrid, com cópia de Bautista
Muñoz, e duas na Catedral de Sevilha, com co-
pistas desconhecidos. Erauso de fato existiu e,
em 1625, entregou o manuscrito para Benar-
dino de Guzmán, tendo escrito com suas pró-
prias mãos ou ditado (ou inspirado a escrita).
Conforme Mendieta:
É bem provável que haja uma versão original
do texto na qual apenas uma voz autoral
possa ser ouvida. Em um dado momento o
texto começou a ser preenchido com outras
vozes que enriqueceram seu valor literário,
mas adicionaram elementos que foram
removidos do contexto histórico vital de
Erauso. (2009, p. 45, tradução nossa).
É importante comentar que a partir do
manuscrito de Madrid foram publicadas duas
versões distintas. A primeira é La Historia de la
Monja Alférez, doña Catalina de Erauso escrita por
ella misma, editada em 1829 por Joaquín María
Ferrer – versão usada como modelo para a edi-
ção consultada para a tradução –, que afirmou
ter feito sua transcrição a partir de um texto
intitulado Vida y sucesos de la Monja Alférez Doña
Catalina de Erauso, doncella natural de San Se-
bastian de Guipuzcoa, escrita por ella misma. Con-
forme Rose (2018), essa versão é menor que a
versão de Madrid, o que revela que alterações
foram feitas, não apenas na dimensão, mas nos
nomes de cidades, porque, segundo o próprio
Ferrer (1829), em seu prefácio, o copista prova-
velmente equivocou-se, de modo que ele os al-
terou – ele questiona, inclusive, se o sobrenome
Leticia Pilger da Silva e Suéliton de Oliveira Silva Filho116Re-sentir lo queer/cuir en la traducción iberoamericana
“Erauso” não foi alterado pelo copista. No en-
tanto, enquanto julgava estar corrigindo erros,
há quem considere que ele os estava criando
(Vallbona, 1992, apud Rose, 2018).
A segunda versão disponível em Madrid tem
como título Vida i sucesos de la monja alférez, Au-
tobiografía atribuida a Doña Catalina de Erauso,
editada por Rima de Vallbona. Rose demonstra
que tal versão foi transcrita da versão de Madrid
e seu título confirmaria a autoria de Erauso.
Já as versões encontradas em Sevilha, na déca-
da de 1990, por Pedro Rubio Merino, na Cate-
dral Santa Igreja de Sevilha, foram publicadas
com o título La Monja Alférez: Doña Catalina de
Erauso, Dos Manuscritos inéditos de su autobiografía
conservados en el Archivo de la Santa Iglesia Catedral
de Sevilla. Merino acredita – e Rose corrobora –
que ambas as cópias foram transcritas pelo mes-
mo copista, embora haja algumas variações.
Dessa forma, afirma Rose:
A complicada história textual das memórias
torna difícil chegar a qualquer conclusão
definitiva sobre o texto e espelha a dificul-
dade de tirar conclusões definitivas sobre a
identidade encontrada nele. E o fato de essa
identidade ser difícil de definir é causado pe-
los vários manuscritos: o uso de gênero não é
apenas inconsistente nos textos, mas também
entre os textos. (2018, p. 61, tradução nossa,
grifo no original).
Considerando, a seguir, a análise sobre o gê-
nero quanto às marcações, Rose faz um ma-
peamento das versões existentes consideradas
manuscritos (veja Tabela 1).
Utilizamos, como texto de partida, a versão
disponibilizada no site do Instituto Cervantes5,
com prefácio do poeta franco-cubano José M.
de Heredia, publicada em 1894 – que remonta à
5 O texto pode ser consultado no link: http://
www.cervantesvirtual.com/obra-visor/histo-
ria-de-la-monja-alferez/html/ff38d5be-82b1-
11df-acc7-002185ce6064_10.html#I_2_ Acesso
em: 20 mar. 2022.
edição da Biblioteca Nacional do Perú, de 1988
e digitalizada em 2001. Embora não conste a
informação como paratexto, por comparações
das notas de rodapé e dos apêndices, vemos que
é baseada na edição de Ferrer. A versão apresen-
ta um prefácio que situa a edição como nove-
centista e alinhada à matriz heteronormativa
do contexto.
A partir da versão utilizada como texto fon-
te, atualizamos a tabela de Rose, de modo a
comparar os usos do feminino e do masculino
(Tabela 2).
Percebemos que a contagem no texto fonte e
a de Ferrer são parecidas, embora não coinci-
dam, visto que o feminino se aproxima, mas o
masculino é discrepante. Assim, vemos as mo-
dificações de edição a edição, mesmo quando,
na premissa, se trate do mesmo texto. Tal fato
corrobora a viagem da obra e as manipulações
da identidade de Erauso. É válido mencionar
que, no Apêndice, a tabela será pormenoriza-
da considerando nossa tradução, para justificar
algumas das escolhas tradutórias do gênero, já
que, na tradução para o português brasileiro,
aparecerão 22 marcações no feminino e 120 no
masculino.
Manuscrito Marcadores
femininos
Marcadores
masculinos
Madrid: Ferrer 22 87
Madrid:
Vallbona 33 76
Sevilha: M-1 40 36
Sevilha: M-2 16 48
Tabela 1. Gênero nas versões consultadas por
Emily Rose
Fonte: Rose (2018, p. 70, tradução nossa).
Marcações
no feminino
Marcações no
masculino
José M. de
Heredia 24 113
Tabela 2. Gêneros na edição consultada para a
tradução ao português
De freira a alferes, da Espanha à América: transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo117Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 16, N.°1, 2023, enero-junio,pp.109-131
4. Construindo o corpo do projeto
Sobre a autoria ter sido creditada a Antonio de
Erauso, como recuperado desde a introdução,
julgamos necessário atualizar o título dado por
editores do século xix, por não condizer com a
identidade assumida pelo viajante. Conside-
rando estratégias tradutórias, sabemos que a
matriz heteronormativa costuma ser afirmada
no apagamento do queer pela heteronormatiza-
ção da linguagem, e contribuiríamos com essa
lógica ao afirmar o nome de batismo de Erau-
so. Diante disso, de acordo com Marc Demónt
(2018), há ao menos três formas de traduzir o
elemento queer, sendo uma delas pelo reconhe-
cimento equivocado – misrecognizing –, quando
se ignora e traduz tal elemento a partir da pers-
pectiva dominante heteronormativa que apaga
aspectos subversivos. Essa estratégia é comum
em publicações mainstream, porque
Mesmo quando o conteúdo homoerótico de
textos queer não é completamente censurado
[...], é frequentemente perdido na tradução
devido a problemas como o privilégio de
elementos heteronormativos e construções
frasais que retirem o elemento queer para au-
mentar fluência, ou uma simples falta de
cuidado na leitura causada pela matriz he-
teronormativa. (Lewis, 2010, p. 3, tradução
nossa).
Em contrapartida, não pretendíamos apagar
qualquer dado que, teoricamente, possa ter
sido inserido por Erauso. Assim, optamos pela
substituição comentada: “FreirAlferes: transfor-
mando Antonio de Erauso”. Por mais moder-
no-concretista que tal escolha possa parecer,
enxergávamos, desde nossas leituras iniciais,
um visível processo de formação. Não tendo
nascido Antonio, transforma-se em Antonio.
Nosso título, dessa forma, sinaliza ao leitor
como o texto deve ser abordado, afinal, como
defende Mazzei (2007, p. 13, tradução nossa),
“não se deve apenas ler ‘entre as linhas’, mas
também ‘entre os corpos’”.
Sabemos que, ainda como Catalina, foi encar-
cerado num convento. No entanto, assegurar
que era uma freira é um erro de leitura, pois
Erauso afirma, no primeiro capítulo – e reitera
no capítulo xxi –, ter fugido do convento no
ano em que faria seus votos. Assim, ele quase
foi freira, mas tal evento foi interrompido a par-
tir de uma ação pessoal, chegando a se tornar
soldado. Ele assume o papel “religioso” ape-
nas quando lhe convém, para escapar da pena
de morte. Dito isto, com o substantivo incom-
pleto no título – ele é interrompido em “freir...”
–, o processo de formação em “alferes” inicia
com a transição de gênero – entendida como
ponto de partida, uma vez que Antonio passa
por alguns anos de aventuras antes de ingressar
na vida militar, além de entender que o termo
pode ser considerado anacrônico por ser do
nosso tempo. Já que afirmamos que Erauso era
um homem trans – conceito inexistente na épo-
ca, embora, conforme Esteban (2006) e Perry
(1990), houvesse distinções de gênero colocadas
sobre o sexo e o conceito fosse mais relacionado
à hierarquia social6 –, propomos uma atualiza-
ção crítica.
Julgávamos importante, também, que a capa
condissesse com o conteúdo e participasse da
mediação da leitura. Publicada pela Medusa,
FreirAlferes é uma das obras a constituir a “co-
leção Babel”, selo de traduções ao português
brasileiro da editora em questão. O projeto
gráfico da coleção, desenvolvido por Eliana
Borges era padronizado: uma cor uniforme ao
fundo e, no centro da capa, dois quadrados so-
brepostos, de tonalidades diferentes, represen-
tando os textos de partida e de chegada. Logo
pensamos que as cores da capa da nossa tradu-
ção poderiam ser as da bandeira do movimen-
to transgênero: rosa, azul e branco, e assim
o fizemos (Figura 1). Dessa forma, a capa já
auxilia na compreensão do projeto tradutório
enquanto uma atualização crítica do texto.
6 É importante ressaltarmos que o êxito de Erauso
não era democrático, porque Eleno de Céspedes,
apesar de receber autorização para ser um médi-
co, foi queimado pela Inquisição por bigamia e
intersexo. (Esteban, 2006).
Leticia Pilger da Silva e Suéliton de Oliveira Silva Filho118Re-sentir lo queer/cuir en la traducción iberoamericana
Para chegarmos ao formato publicado, realiza-
mos uma tradução coletiva, estratégia aponta-
da por Campos (2006) como a solução para a
tradução criativa ou de textos antigos – ambas
as situações se inserem no projeto aqui analisa-
do, pois remete a um texto do Século de Ouro
espanhol.
A metodologia usada para a tradução corres-
ponde a (esquematizado na Figura 2): primei-
ro, realizou-se a leitura da obra e uma pesquisa
sobre seu contexto. Em seguida, cada tradutor
realizou sua versão, capítulo a capítulo, para,
em reuniões semanais, serem comparadas e
discutidas as escolhas tradutórias. Com isso,
criou-se uma terceira versão, construída a par-
tir do diálogo e da sobreposição das versões
individuais. Depois de a terceira versão ser
finalizada pelos tradutores, o material foi re-
visado pela professora doutora Nylcéa Pedra,
que fez apontamentos e revisões. Mais uma
vez, o texto voltou aos tradutores e moldou-se
uma quarta versão.
Nosso projeto tradutório ainda acrescenta dois
paratextos em torno da figura de Antonio de
Erauso: um texto de apresentação da professo-
ra doutora Isabel Jasinski, especialista em lite-
ratura hispano-americana, sobre a importância
da obra; e um prefácio no qual apresentamos
politicamente o projeto e nossas escolhas tra-
dutórias. Diante disso, é importante explicitar
que, diferentemente do texto traduzido, esses
“paratextos adicionais” indicavam uma finali-
dade prática, que expandia o texto e a experi-
ência de leitura.
Figura 1. Capa de FreirAlferes (Eliana Borges, 2021).
Figura 2. Processo tradutório.
De freira a alferes, da Espanha à América: transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo119Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 16, N.°1, 2023, enero-junio,pp.109-131
Outro paratexto foi a atualização do retrato
de Antonio de Erauso, realizada por Gabriel
Kleinke (Figura 3)7. Para isso, Kleinke usou
7 Além de ilustrar a orelha esquerda do FreirAlferes,
a atualização de Kleinke foi vendida à parte, na
pré-venda iniciada antes de enviarmos a tradução
para a gráfica. Ressaltamos que esse apoio do pú-
blico-leitor foi determinante para FreirAlferes ser
lançado tão rapidamente, e que, além dele, conta-
mos com o Edital de Fomento para a publicação
de livros, lançado pela Universidade Federal do
como base uma obra de 1833 (Figura 4), de
Alphonse-León Noël, que, por sua vez, se ba-
seou no retrato pintado em 1626 (Figura 5),
por Juan van der Hamen y Gómez de León –
usada como abertura da exposição espanhola
Paraná, que possibilitou a impressão de mais 30
exemplares, doados para bibliotecas da ufpr , as-
sim como para as de outras instituições de ensino
superior brasileiras e bibliotecas públicas. Tam-
bém é importante marcar que o pagamento de
Kleinke entrou nos custos da publicação.
Figura 3. Retrato de Gabriel Kleinke Figura 4. Retrato de Alphonse-León Noël
Figura 5. Retrato de Juan van der Hamen y Gómez de León
Leticia Pilger da Silva e Suéliton de Oliveira Silva Filho120Re-sentir lo queer/cuir en la traducción iberoamericana
Trans. diversidad de identidades y roles de género,
no Museu da América, em 2017, com curado-
ria de Andrés Gutiérrez Usillos.
A ideia da atualização do retrato dialoga com
nosso projeto tradutório. O retrato de Kleinke
é uma atualização de uma das imagens de
Erauso, porque, quando comparamos os con-
tornos, percebemos que os estilos são diferen-
tes, mas seguem a mesma base. São, portanto,
uma sobreposição de épocas e possibilidades
de ver a mesma figura histórica. Nossa tradu-
ção pretende-se, como já mencionamos, uma
atualização do texto a partir do aparato teórico
atual, isto é, adicionando camadas de leitura
nos paratextos – ou colocando o gênero em
determinadas palavras –, de modo que nossa
tradução se propõe um palimpsesto: “o texto
que se apaga, em cada comunidade cultural e
em cada época, para dar lugar a outra escritura
do ‘mesmo’ texto” (Arrojo, 1985, p. 20). Com
isso, ao invés de manter uma suposta origina-
lidade ou verdade do texto de partida, a tradu-
ção passa a ser uma “uma atividade produtora,
através da qual o texto se realiza e atualiza”
(Arrojo, 1985, p. 20).
É interessante pensar que a prática da tradução
enquanto palimpsesto-reescritura cria uma rela-
ção crítica, já que, ao evocar os discursos do en-
torno do texto de partida na sua viagem ao novo
contexto, “toda tradução envolve um comentário
crítico e uma reavaliação do texto original (sic)”
(Buendía, 1999, p. 197, tradução nossa).
Com essa abordagem, a tradução de um tex-
to antigo como o que trabalhamos permite,
então, que seja representado e repensado o
passado no aqui e no agora, mas também que
tanto passado quanto presente apontem para
um futuro (Bancroft, 2020), no sentido da re-
presentação de novas formas de viver, escrever
e traduzir. Dessa forma, nossa tradução, em
todo o seu projeto editorial, carrega o contexto
de leitura crítica construída ao longo do tempo
nos estudos queer de modo a atualizar a leitura
da identidade de Erauso, ou, ainda, propor um
novo texto.
Nesse sentido, precisamos comentar que, em-
bora haja a intenção de ser uma atualização
crítica, realizamos escolhas tradutórias que
fossem próximas ao texto, contra uma pers-
pectiva domesticadora (Venuti, 2008; 2019),
cotejando as palavras para que o leitor bra-
sileiro de hoje sinta a distância temporal da
narrativa do século xvii na Espanha. Para isso,
escolhemos, por exemplo, manter os nomes
dos locais em espanhol ao invés de transpô-los
ao português.
Parte de Cádiz a Sevi-
lla; de Sevilla a Madrid,
a Pamplona y a Roma;
pero habiendo sido ro-
bada en el Piamonte...
(Erauso, 1894).
Parte de Cádiz para Se-
villa; de Sevilla para Ma-
drid, Pamplona e Roma;
mas, ao ser roubada
no Piamonte… (Erauso,
2021, p. 99).
Bem como as inversões sintáticas:
Yo puse luego por obra
lo que me mandó y fui
descargando la hacien-
da por sus números, y
por ellos fui la remitiendo
(Erauso, 1894).
Comecei logo a fazer a
tarefa que me mandou
e fui descarregando as
mercadorias de acordo
com seus números e as
enviando (Erauso, 2021,
p. 31).
Da mesma forma, o uso de pontos e vírgulas,
muito marcado no texto:
Volví en llamando
a San José; tuve para
todo grandes asisten-
cias, que provee Dios en
la necesidad; fuéronse
pasando los tres días;
luego, los cinco, y con-
cibiéronse esperanzas
(Erauso, 1894).
Voltei a mim chamando
por São José; tive, para
tudo, grande ajuda,
enviada por Deus em
momentos de necessi-
dade; foram se passan-
do três dias; logo, cinco,
e as esperanças foram
aumentando (Erauso,
2021, p. 83).
E o excesso de conjunções aditivas “e” – em-
bora o texto fonte apresente ainda mais con-
junções aditivas, o efeito segue semelhante:
De freira a alferes, da Espanha à América: transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo121Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 16, N.°1, 2023, enero-junio,pp.109-131
Tomó la lista de la gen-
te, fue pasando y pre-
guntando a cada uno
su nombre y patria, y
llegando a mí y oyendo
mi nombre y patria, soltó
la pluma y me abrazó y
fue haciendo preguntas
por su padre, y su ma-
dre, y hermanos, y por
su querida Catalina, la
monja (Erauso, 1894).
Pegou a lista de pes-
soas, foi passando e
perguntando a cada
um seu nome e pátria e,
ao chegar a mim e ou-
vir o meu nome e minha
pátria, soltou a pena,
me abraçou e foi me
fazendo perguntas so-
bre o seu pai, sua mãe e
irmãos, e sobre sua que-
rida Catalina, a freira
(Erauso, 2021, p. 40).
Isso causa um estranhamento na estrutura, o
que historiciza o texto e explicita o desloca-
mento espacial de Erauso na leitura.
Um último paratexto foi a confecção de um
mapa virtual interativo8 que seria disponibili-
zado no dia do lançamento da obra. Desenvol-
vido por Paulo Renato Reche Bezerra – que
nos doou seu trabalho –, o mapa (Figura 6)
apresenta os lugares por onde Erauso passou e,
nesses pontos específicos, há a inserção de um
trecho do texto de partida e sua tradução para
8 Acesso livre ao mapa no site: https://renatore-
che.com/freiralferes.
o português sobre uma situação que ocorreu
naquele ponto do percurso. Estão marcados
em números sequenciais, para que o visitante/
leitor possa viajar junto com Erauso, ao ler em
ambas as línguas – comparando-as – e ao ver a
dimensão espacial percorrida pelo personagem
durante sua viagem.
Realizamos o lançamento do livro virtualmen-
te no Canal do Programa de Pós-graduação
em Letras da ufpr9, com uma conversa entre
os tradutores e as pesquisadoras Amara Moira,
travesti responsável por pesquisas de literatura
e representação trans e autora de livros que
contemplam a temática; e Emanuela Siqueira,
doutoranda em tradução pela ufpr e uma das
tradutoras do livro Bash back: ultraviolência que-
er (2020), no qual é usada a linguagem neutra
na língua portuguesa.
5. Traduzindo o gênero
Ancorados em saberes consolidados em nossa
cultura, o projeto objetivava revisar a leitura
9 A gravação do evento pode ser acessada no link:
Lançamento de FreirAlferes, de Antonio de Erau-
so - YouTube. Último acesso: 10 mai. 2022.
Figura 6. Mapa virtual.
Leticia Pilger da Silva e Suéliton de Oliveira Silva Filho122Re-sentir lo queer/cuir en la traducción iberoamericana
histórica (Traverso, 2007) feita da identidade
de Erauso, de modo que pensamos nas várias
formas de traduzir o gênero. Longe de uma
adequação para atender supostas necessidades,
enxergamos na autobiografia não uma gênese
para o que conhecemos como transexualidade,
senão a história de um indivíduo que, reinter-
pretada com o auxílio dos estudos contempo-
râneos (Butler, 2016; Baer, 2021), questiona até
que ponto as vivências de gênero e sexualidade
do período poderiam ser reordenadas, consi-
derando diferenças entre o território latino-a-
mericano da epóca, mais diverso, e o europeu,
moldado pela religião católica (Usillos, 2017).
Para isso, reforçamos não ser possível afirmar
com segurança se a flexão de gênero é escolha
de Erauso ou correção de copistas, de forma
que é complexo definir qualquer especulação
sobre a identidade de Erauso. Inicialmente,
pensamos em apagar os usos no feminino, de
forma semelhante à estratégia de Rose (2018),
que se refere a Erauso com os pronomes neu-
tros do inglês “ze” e “hir” para marcar a inde-
cibilidade de sua identidade. Mendieta (2019,
p. 231, tradução nossa) também defende que
Erauso habitava uma fluidez de gênero ao ne-
gar categorizações: “Catalina coloca-se fora de
oposições binárias de preferência de gênero e
sexual (masculino/feminino, homossexual/
heterossexual), mas nela também desaparece o
nacional tradicional e fronteiras ocupacionais
(Europa/América; espanhol/basco; armas/
letras).”
Contudo, após pesquisas, discordamos de tal
leitura por pensarmos que fazer tal alteração
apagaria os caminhos percorridos pelo texto
e o seu caráter de documento histórico, assim
como a força de Erauso para afirmar sua mas-
culinidade perante o rei espanhol e o papa.
Defendemos que Erauso se identificava como
“homem”, mesmo quando consideramos a in-
formação, já mencionada, presente no prefácio
de Heredia sobre o relato de Pedro del Valle,
que afirmou Erauso ter lhe contado – após ser
reinserido socialmente, contra a sua vontade,
no papel de Catalina – que usou um remédio
para tirar seus seios:
Alta e forte, de aparência masculina, não pos-
sui mais peito que uma menina. Contou-me
que havia empregado não sei qual remédio
para fazê-los desaparecer. Foi, acredito, um
emplastro receitado por um italiano; o efeito
foi doloroso, mas realizou seu desejo (Here-
dia, 1894, tradução nossa).
Nesse sentido, muito além de uma pretensa fi-
delidade, nossa escolha tradutória foi intervir
minimamente no texto, de modo a manter as
marcas gramaticais de gêneros conforme apare-
ciam para analisarmos as implicações de cada
um dos usos. Voltamos, com isso, às estraté-
gias de tradução (Demónt, 2018) citadas na se-
ção anterior, sendo a segunda delas a tradução
tida como minoritária — minoriting translation
–, quando o texto é simplificado para a política
identitária ser afirmada, o que reduz as possi-
bilidades de forma unidimensional e retira os
elementos conotativos e ambíguos importantes
na construção de sentidos. Diante disso, nossa
prática tradutória está mais alinhada à queering
translation, que não inscreve o texto em uma
perspectiva dominante, nem o simplifica, man-
tendo suas sequências conotativas. Essa abor-
dagem, conforme Pinheiro (2021), dialoga com
o conceito de estrangeirização, por marcar os
elementos que fogem da matriz heteronorma-
tiva e subverter a homogeneização na tradução
do gênero. Da mesma forma, Demónt (2018)
propõe que uma abordagem queer na tradução
resiste à dominação e à apropriação dos sen-
tidos ao preservar conotações e ambiguidades
que mantém diversas possibilidades do texto
na língua alvo. Conservando as ambiguidades
do material, utilizamos os paratextos para dis-
cutir tais questões, alteramos o título e a auto-
ria, escrevemos nosso prefácio, situando a obra
em seu contexto de partida, e reescrevemos as
notas de rodapé da versão consultada, o que é
reafirmado por Lewis (2010) ao entender que
a tradução queer, enquanto área em constru-
ção, adota estratégias da tradução feminista:
a complementação, a escrita de paratextos e
o hijacking. Quando se usa a complementa-
ção, quem traduz insere termos ou expressões
por causa das diferenças entre as línguas. Já a
De freira a alferes, da Espanha à América: transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo123Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 16, N.°1, 2023, enero-junio,pp.109-131
escrita de prefácios e notas é usada para realizar
críticas e comentários sobre as escolhas tradu-
tórias – como fizemos em nosso projeto, e não
apenas com questões relacionadas ao queer –,
ou para evidenciar o conteúdo queer, de forma
a mediar a leitura e a preparar quem lê. Baer
(2021) apresenta a nota de rodapé em projetos
queer como uma forma de propor um “descon-
forto” na leitura, considerando que convidará
quem lê a pensar sobre determinadas escolhas
de palavras ou compreender o contexto.
Justificando nossas escolhas pelas diversas ca-
madas de sentido, começamos recuperando
as notas dos tradutores para o inglês, Michele
Stepto e Gabriel Stepto:
Há diversos desafios para o tradutor que se
renda a verter as memórias de Catalina ao
inglês. Pelo menos um é insuperável: não há
nenhum equivalente em inglês para as fle-
xões de gênero do adjetivo espanhol, o que
marca uma primária notação gramatical de
gênero em praticamente cada sentença, de
modo a configurar uma marca de autoiden-
tificação sexual que reverbera de um pedaço
ao outro do texto. O fato de Catalina quase
invariavelmente usar desinências masculinas
para descrever a si mesma é perdido no in-
glês, assim como nos raros momentos em que
ela escolhe uma desinência feminina (Stepto,
1996, p. xvi, tradução nossa).
Mesmo sinalizando a dificuldade de manter a
ambiguidade de gênero, percebemos a escolha
consciente dos tradutores em manter a identi-
dade feminina, com a inserção dos pronomes
“she” e “her” quando não havia marcação, a
exemplificar pelos subtítulos, como
Parte del Cuzco para
Guamanga. Pasa por el
puente de Andahuailas
y Guancavélica (Erauso,
1894).
She leaves Cuzco for
Guamanga, crossing
the bridge near An-
dahuailas, and passing
through Guancavélica
(Erauso, 1996).
o que revela a estrutura diferente das línguas,
porque o inglês demanda sujeito marcado,
diferente do português e do espanhol. Essa
estratégia de manter o gênero é uma reafirma-
ção da leitura crítica feita até então. Tal escolha
também pode ser vista por uma leitura feminis-
ta, já que marca a imagem da mulher aventurei-
ra, como Erauso foi lido até aquele momento.
Considerando o contexto em que a tradução dos
Steptos foi publicada, talvez fosse demais espe-
rar uma tradução não sexista, embora o prefácio
feito pelos tradutores revele certo caráter progres-
sista. A partir disso, poderíamos pensar em esco-
lhas que dialoguem com os debates de gênero na
tradução para o inglês hoje: usar “They/them”;
marcar a identidade de gênero como homem
com os pronomes “he/him”, tendo em vista o
nome escolhido no final da vida por Erauso; ou,
como defende Rose, deixar na fluidez de “ze/
hir”? Cada escolha apresenta uma política e
traduz uma leitura desse texto que, por si só, é
variado em sua forma. Cada possibilidade tem
seus ganhos e perdas e dialoga com o contexto
em que a obra foi traduzida.
Nos trechos sem gênero no espanhol, como no
caso dos pronomes “le” ou “me”, decidimos
marcar o masculino, de modo a preencher a
identidade defendida pelo autor. Por exemplo,
no subtítulo do capítulo xvii, temos “Pasa a
Lima. De allí sale contra los holandeses. Piér-
dese y acógese a su armada. Échanle a la costa
de Paita, y desde allí vuelve a Lima” (Erauso,
1894), traduzido para: “Vai para Lima. Ali
enfrenta os holandeses. Perde-se e sua arma-
da é acolhida. Jogam-no na costa de Paita e de
lá retorna a Lima” (Erauso, 2021, p. 78, grifo
nosso). No mesmo capítulo, consta no material
consultado: “andúveme en él unos pocos días,
tratándome de partir para el Cuzco” (Erauso,
1894), ao que traduzimos: “montei nele por
alguns poucos dias, decidido a voltar para Cuz-
co” (Erauso, 2021, p. 79, grifo nosso); ou ainda:
“Rodeáronme ministros” (Erauso, 1894), sendo
traduzido: “Fui rodeado por ministros” (Erauso,
2021, p. 79, grifo nosso), visto considerarmos
incômodo usar “lhe” ou “me” também por apa-
gar a identidade de Erauso, que costuma usar o
masculino para referir-se a si mesmo.
Leticia Pilger da Silva e Suéliton de Oliveira Silva Filho124Re-sentir lo queer/cuir en la traducción iberoamericana
Essa decisão preservou a incongruência do ca-
pítulo em questão porque as partes em que apa-
rece a marcação de gênero10 no texto de partida
estão tanto no masculino quanto no feminino
– apesar de não haver qualquer explicação para
que a marcação no feminino ocorra nessa altu-
ra do relato. Enquanto no segundo parágrafo
do capítulo, temos:
sin que pudiesen esca-
par más que tres hom-
bres, que nadando nos
acogimos a un navío
enemigo, que nos reco-
gió. Éramos: yo, un fraile
franciscano descalzo
y un soldado (Erauso,
1894).
sem que pudessem es-
capar mais de três ho-
mens que, nadando,
conseguimos chegar a
um navio inimigo que
nos resgatou. Éramos:
eu, um frei franciscano
descalço e um soldado
(Erauso, 2021, p. 78, grifo
nosso).
No seguinte os adjetivos passam ao feminino:
Yo, cogida de repente,
no sabía qué decir; va-
cilante y confusa, pare-
cía delincuente (Erauso,
1894).
Abruptamente sur-
preendida, eu não sa-
bia o que dizer. Hesitan-
te e confusa, parecia
delinquente (Erauso,
2021, p. 79, grifo nosso).
No capítulo xvii de FreirAlferes, assim, cons-
tam sete marcações de gênero, sendo duas no
feminino e cinco no masculino. A diferença
com o texto de partida é que, embora seja pre-
servada a ambiguidade, na tradução foram
acrescentadas três no masculino.
Embora tais flexões possam ser usadas para
se defender uma fluidez de gênero, pelo uso
intercambiável entre “ele” e “ela”, pensamos
no caráter picaresco de Erauso, que tenta en-
ganar a todos no seu caminho. Assim, é possí-
vel que, diferentemente do que pensam depois
10 É importante frisar que a decisão da não alte-
ração do gênero (quando explicitado) foi manti-
da inclusive nos subtítulos, que, como dito, não
foram escritos por Erauso. Assim que o subtítu-
lo do capítulo xviii: “Mata en el Cuzco al nuevo
Cid, quedando herida” (Erauso, 1894), foi tra-
duzido: “Em Cuzco mata o novo Cid, ficando
ferida” (Erauso, 2021, p. 81, grifo nosso).
da revelação, a grande mentira de Erauso foi
assumir o feminino quando seria condenado à
morte após assassinar um importante homem.
Em outras palavras, Erauso assume tal iden-
tidade apenas para se safar, além de simular
uma passividade nos momentos em que se co-
loca no feminino por supostamente entender
que esse era o código do contexto, já que nas
demais situações defende sua bravura.
Mais do que isso, considerando o que Butler
(2002) fala sobre traços que se apresentam na
superfície (camada exterior) e o que ocorre no
íntimo (psique), podemos compreender com
maior clareza que Erauso não possuía necessa-
riamente consciência e domínio das hipotéticas
escolhas. Tanto que, sendo o exterior – passa a
se vestir com roupas masculinas – condizente
com o que de antemão sentia interiormente11,
mesmo após ser revelado o sexo biológico e
ser socialmente conhecido como “freira alfe-
res”, há urgência de permanecer com as rou-
pas masculinas e de continuar se chamando
Antonio. Isso reforça a premissa de que os
11 Esse sentimento pode ser verificado em diver-
sas passagens tanto da autobiografia, em que
faz referência a si mesmo como homem: “pero
cargó sobre nuestra almiranta de forma que la
echó a pique, sin que pudiesen escapar más que
tres hombres, que nadando nos acogimos a un
navío enemigo, que nos recogió. Éramos: yo, un
fraile franciscano descalzo y un soldado” (Erau-
so, 1984); “mas a nossa almiranta foi a pique,
sem que pudessem escapar mais de três homens
que, nadando, conseguimos chegar a um navio
inimigo que nos resgatou. Éramos: eu, um frei
franciscano descalço e um soldado” (Erauso,
2021, p. 78), quanto em relatos de conhecidos,
como aparecem em notas finais: “e apaixonou-se
na viagem de Veracruz a México de uma dama
a quem os pais haviam encarregado que viajas-
se acompanhada, cientes de que dona Catalina
era mulher, ainda que se vestisse como homem;
aquela paixão causou grandes infortúnios, e este-
ve a ponto de duelar com o homem com quem
a dama se casou. Dona Catalina o desafiou em
uma carta; mas algumas pessoas importantes
conseguiram impedir o confronto.” (Erauso,
1894, tradução nossa).
De freira a alferes, da Espanha à América: transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo125Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 16, N.°1, 2023, enero-junio,pp.109-131
acontecimentos precedem a sua categorização
– indivíduos transgênero não passam a existir
somente após a classificação e estudo do termo.
O movimento é justo o contrário. Sendo obser-
vada a presença de tais indivíduos ao longo da
história, surge a necessidade de compreensão e,
com isso, identificação. Uma tradução que des-
considera essa oscilação entre gêneros em um
texto como o trabalhado aqui faz com que esse
entendimento seja perdido, como ocorre com
a versão em inglês, visto a marcação de gênero
ser apagada, sendo, assim, retirada uma cama-
da de sentido para a pesquisa, já que o leitor do
inglês não pode ver a incongruência textual e
uma possível mudança de identidade:
Rodeáronme ministros,
y dijo el alcalde: «¿Qué
hemos de hacer en
esto?» Yo, cogida de re-
pente, no sabía qué de-
cir; vacilante y confusa,
parecía delincuente,
cuando se me ocurre
de pronto quitarme la
capa y tapele con ella
la cabeza al caballo
(Erauso, 1894).
The deputies surroun-
ded me and the mayor
said, “Well, what do we
have here?” The who-
le thing was so sudden
that I didn’t know what
to say, and there I stood,
confounded and stam-
mering, the very picture
of guilt, when it suddenly
occurred to me to take
off my cloak and throw
it over the horse’s head
(Erauso, 1996, p. 53).
Outra alteração foi realizada na primeira frase
do texto traduzido, em que temos, na edição
consultada, “Nací yo, doña Catalina de Erau-
so”, enquanto na edição física de 1829 não há
vírgula. Tal inconsistência no uso da vírgula
nos leva a pensar sobre a identidade de Erauso
e a afirmação de um nome, porque o sinal de
pontuação faz com que “Catalina de Erauso”
seja o nome do sujeito que fala, enquanto sua
ausência pode ser lida como afirmação de uma
mudança: Erauso nasceu com aquele nome,
mas o deixou ao longo da vida. Decidimos, en-
tão, pela sua retirada. Assim, o verbo que inicia
o relato no pretérito perfeito do indicativo reto-
ma mais do que um fato passado, uma identi-
dade deixada. Inclusive, antes de ser Antonio,
nome escolhido por último para viver no -
xico, Erauso foi muitos homens e apenas com
o “ele” se pode ter acesso à sua identidade. Já
no desfecho do primeiro capítulo, após relatar
ter adotado o nome “Francisco Loyola”, come-
çam a aparecer adjetivos no masculino:
Entré en Estella, don-
de me acomodé por
paje de don Carlos de
Arellano, del hábito
de Santiago, en cuya
casa y servicio estuve
dos años, bien tratado
y bien vestido (Erauso,
1894).
Entrei em Estella, onde
fui acolhido como cria-
do de dom Carlos de
Arrellano, da ordem de
Santiago, em cuja casa
e serviço permaneci por
dois anos, bem tratado
e bem vestido (Erau-
so, 2021, p. 27, grifos
nossos).
Também podemos colocar em perspectiva o úl-
timo capítulo, que nos ajuda a pensar a negação
da identidade feminina, assim como o apaga-
mento dos gêneros. Além de Erauso afirmar sua
masculinidade, a presença do feminino concor-
da com a visão que a sociedade tem dele, confor-
me as regras de gênero da época. Já em Roma,
depois de ser deportado, receber a pensão do
imperador e a autorização papal, Erauso é inter-
pelado por moças que o chamam de “Catalina”:
En Nápoles, un día, pa-
seándome en el mue-
lle, reparé en las risota-
das de dos damiselas
que parlaban con dos
mozos. Me miraban,
y mirándolas, me dijo
una: «Señora Catalina,
¿adónde se camina?»
Respondí: «Señoras p...,
a darles a ustedes cien
pescozones y cien cu-
chilladas a quien las
quiera defender.» Ca-
llaron y se fueron de allí
(Erauso, 1894).
Certo dia, em Nápoles,
enquanto caminhava
pelo cais, reparei nas ri-
sadas de duas moçoilas
que conversavam com
dois rapazes. Olhavam
para mim e, quando
eu devolvi o olhar, uma
delas me disse: “Senho-
ra Catalina, para onde
caminha?” Respondi:
“Senhoras p..., ando em
direção a golpeá-las
com cem murros e cem
facadas em quem se
dispuser a defendê-las”.
Calaram-se e foram em-
bora dali (Erauso, 2021,
p. 106).
Esse final do relato revela muito sobre o pro-
cesso de transformação, porque, mesmo decla-
rando ter nascido mulher, perpassa a narrativa
afirmando sua masculinidade, até por práticas
violentas, como no trecho em que assume
ter matado uma infinidade de indígenas – o
Leticia Pilger da Silva e Suéliton de Oliveira Silva Filho126Re-sentir lo queer/cuir en la traducción iberoamericana
que também faz da autobiografia um teste-
munho da violência infligida sobre os povos
originários.
Também é possível analisar o reconhecimen-
to público da masculinidade de Erauso quan-
do, em Roma, é convidado por aristocratas
e afirma “por orden particular y encargo del
Senado romano, y me asentaron en un libro
por ciudadano romano.” (Erauso, 1894) [fui
convidado e apresentado por uns senhores,
por ordem privada e encargo do Senado ro-
mano, e me registraram num livro como cida-
dão da cidade. (Erauso, 2021, p. 105)]. Trecho
no qual, novamente, é necessário mencionar
a inconsistência entre versões, porque, como
apontado por Rose, aparece o feminino em
uma das versões de Sevilha: “me asentaron en
un libro por ciudadana romana (Erauso, 1995,
p. 91 apud Rose, 2018, p. 71).
Da mesma forma podemos abordar os docu-
mentos anexados para provar a sua existência,
com testemunhos de conhecidos, como Dom
José da Higuera y Lara, que diz: “resistiu, com
particular coragem, aos desconfortos da milí-
cia como o homem mais forte, sem que em ne-
nhuma ação fosse reconhecida senão por tal, e
por seus feitos veio a merecer ter bandeira de
Vossa Majestade” (Erauso, 2021, p. 111). Em
uma petição, vemos um documento assinado
pelo próprio Antonio, com seu nome mascu-
lino, o que reafirma nossa escolha de afirmar
tal identidade.
6. Considerações finais, ou o ponto
de chegada que tenciona
outros pontos de partida
Nossa tradução para FreirAlferes pretendeu re-
visar historicamente a leitura acerca da iden-
tidade de Antonio de Erauso. Mesmo com
todos os percalços que se apresentaram – in-
cluindo o fato de sermos cisgênero –, redo-
bramos a atenção, de modo a agir de forma
alinhada às teorias Queer. Um ponto central é
a natureza do texto e sua localização histórica,
que acreditamos serem motivos capazes de fa-
zer com que leitores ignorem o que está sendo
expressado desde as páginas iniciais e, repro-
duzindo uma inadequação cristalizada, con-
tinuem se referindo a Antonio no feminino.
Porém, isso não se explica apenas pelo mo-
mento histórico, visto que mesmo em textos
contemporâneos essa leitura é observada. Pelo
fato de a tradução ser costumeiramente inter-
pretada como simples transposição de uma
língua a outra, percebe-se certo desapreço por
teorias capazes de dirimir erros que vão sendo
passados adiante – no caso do nosso projeto,
os estudos queer, que auxiliaram para que a
autoria fosse finalmente atribuída a Antonio
de Erauso, assim como repensado o texto em
sua viagem temporal.
Como também recuperado, na tentativa de
rejuvenescimento do material e alinhados às
nossas pesquisas, inicialmente pensamos no
apagamento das marcações de gênero para
quebrarmos o binarismo masculino/feminino
e inscrevermos nosso posicionamento como
tradutores. No entanto, isso seria, em nossa
leitura, uma deturpação do material que está-
vamos traduzindo, uma vez que, tratando-se
de autobiografia, alterações significativas no
corpo do texto poderiam fazer com que ele
perdesse o valor de relato e a tradução para o
português brasileiro figurasse como uma fic-
cionalização da trajetória do viajante. Mesmo
sem tais alterações, reunindo todas as infor-
mações do documento em conformidade com
o conhecimento de nosso tempo, é notório
que Antonio de Erauso se encaixaria no que
hoje chamamos homem trans. Também deci-
dimos traduzir as marcações de gênero como
se apresentavam no texto de partida, não por
fidelidade, senão para marcar os caminhos
percorridos pelo texto, que não apresenta um
manuscrito original e é formado por reescritu-
ras. Assim, nossa versão consiste em mais um
palimpsesto, que se propõe uma tradução re-
paradora (Bancroft, 2020) ao reescrever sobre
o texto uma nova perspectiva que contemple
De freira a alferes, da Espanha à América: transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo127Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 16, N.°1, 2023, enero-junio,pp.109-131
nosso horizonte contemporâneo de leituras
queer, seja no corpo do texto, ou no proje-
to editorial. Além de marcas em adjetivos e
pronomes, como analisamos na última seção,
nossas mãos tradutórias aparecem bastante
marcadas nos paratextos, que inscrevem tanto
o contexto quanto a viagem do texto para o
leitor brasileiro de hoje. Dessa forma, a tradu-
ção como palimpsesto atualiza o passado do
texto no presente e propõe que um novo futu-
ro dessa figura histórica seja criado.
Esperamos ter demonstrado, igualmente, que
a ordenação dessas informações que apa-
recem no texto de Erauso e em relatos de
terceiros, recuperadas ao longo do artigo, con-
firmam que o que hoje entendemos identidade
transgênero não foi usada por Antonio apenas
como uma forma de melhor viver. Ao passar
da posição de mulher para homem, consegue
experienciar o que era permitido a cada gêne-
ro e, mesmo com todas as dificuldades, avaliar
que ser senhor de si era bem menos ruim. Ao
fazer a confissão na tentativa de escapar da
pena de morte, volta a sentir a condição co-
locada às mulheres e, rapidamente, se percebe
em domínio de terceiros – nesse caso, da igreja,
que o retém por alguns anos até ser deportado
para a Europa, onde se livra da execução.
Sabemos que o ponto de chegada dessa viagem,
que com nosso projeto pode ser lida também na
língua oficial do Brasil, é uma nova partida, pos-
to termos recuperado uma obra que já realizou
tantas viagens e contribuiu e seguirá contribuin-
do para os estudos de gênero. A história do alfe-
res que quase foi freira em muito nos precede e
certamente nos superará; que a viagem continue.
Agradecimentos
Agradecemos às professoras Nylcea T. S.
Pedra e Isabel Jasinski, pelo suporte e pelos
diálogos. A todos os que contribuíram para
a publicação de FreirAlferes. Ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da ufpr, pelo Edi-
tal de Fomento. A capes, pelo aporte financei-
ro para a realização do projeto.
Referências
Andrès, C. (2002). Historicidad, mito y teatralidad
en el personaje de la Monja Alférez (según
la comedia de Juan Pérez de Montalbán). In
M. Lobato & F. Matito (Orgs.), Memoria de la
palabra (pp. 251-262). Actas del vi Congreso
de la Asociación Internacional Siglo de Oro.
Verveut.
Arrojo, R. (1985). A tradução como reescritura: o
texto/palimpsesto e um novo conceito de fi-
delidade. Trabalhos em Linguística Aplicada, 5-6,
17-24.
Baer, B. J. (2021). Queer theory and translation stu-
dies: Language, politics, desire. Routledge.
Bancroft, C. (2020). Queering modernist transla-
tion: The poetics of race, gender, and queerness.
Routledge.
Barthes, R. (2004). A morte do autor. O Rumor da
Língua (pp. 57-64). Martins Fontes.
Bash Back (2020). Bash back: ultraviolência queer.
N-1 Edições.
Buendía, C. (1999). Translation as palimpsest. Re-
vista Canaria de Estudios Ingleses. (38), 195-205.
Butler, J. (2002). Cuerpos que importan: sobre los lí-
mites materiales y discursivos del “sexo”. Paidós.
Butler, J. (2016). Problemas de gênero: feminismo e
subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar.
Civilização Brasileira.
Campos, H. (2006). Metalinguagem e outras metas:
ensaios de teoria e crítica literária. Perspectiva.
Chamberlain (2005). Gênero e a metafórica da tra-
dução. In P. Ottoni (Org.), Tradução: a prática
da diferença (pp. 37-58). Trad. Norma Viscardi.
Editora da unicamp .
Erauso, A. (2021). FreirAlferes: transformando Anto-
nio de Erauso. Trad. Leticia Pilger da Silva e
Suéliton de Oliveira Silva Filho. Medusa.
Erauso, A. (1894). Historia de la monja alférez. (Pre-
fácio de José M. de Heredia). http://www.
cervantesvirtual.com/obra-visor/historia-de-
-la-monja-alferez/html/ff38d5be-82b1-11df-
-acc7-002185ce6064_10.html Acesso em: 12
jan. 2022.
Leticia Pilger da Silva e Suéliton de Oliveira Silva Filho128Re-sentir lo queer/cuir en la traducción iberoamericana
Erauso, A. (1829). Historia de la Monja Alferez, doña
Catalina de Erauso. Comentários Joaquín Ma-
ría de Ferrer. libros.uchile.cl/70 Acesso: 10
jun. 2022.
Erauso, A. (2000). A freira alferes. Trad. Jorge
Fallorca. Editorial Teorema.
Erauso, A. (1996). Memoir of a Basque transvestite in
the New World. Trad. Michele Stepto e Gabriel
Stepto. Beacon Press.
Erauso, A. (1830). Histoire de la monja-alferez, doña
Catalina de Erauso: écrite par elle-Même. Trad. L.
V. Bossange Père Libraire.
Erauso, A. (1991). Storia della monaca alfiere scritta
da lei medesima. (Trad. Lucrezia Panunzio Ci-
priani). Sellerio Editore Palermo.
Esteban, N. (2006). Género e identidad en la socie-
dad del siglo xvii. Vasconia. 35(1), 49-62.
Demónt, M. (2018). On three models of transla-
ting queer literary texts. In B. J. Baer, K. Kain-
dl (Orgs.), Queering translation, translating the
Queer: Theory, practice, activism (pp. 157-171).
Routledge.
Ferrer, J. M. (1829). Prólogo. In C. Erauso (1829).
Historia de la monja alferez, Doña Catalina de Erau-
so, escrita por ella misma (pp. v-li). Julio Didot.
García-Sánchez, S. (2015). De monja a conquista-
dor, de mujer a hombre: los viajes de Catalina
de Erauso. Atenea, 511(2), 63-80.
Goldmark, M. (2015). Reading habits: Catalina
de Erauso and the subjects of early modern
Spanish gender and sexuality. Colonial Latin
America Review, 24(2), 215-235.
Harvey, K. (2000). Gay community, gay identity
and the translated text. ttr, xiii(1), 137-168.
Hodgson, B. (2003). No place for a lady: tales of ad-
venturous women travelers. Douglas & McIntyre.
Iser, W. (1996) O ato da leitura (Vol. 1). Editora 34.
Lewis, E. S. (2010). ‘This is my girlfriend, Linda’:
translating queer relationship in film: a case
study of the subtitles for Gia and a proposal for
developing the field of queer translation stu-
dies. Translating queer/Queering translation.
In Other Words, 36, 3-22. British Centre for Li-
terary Translation.
Lotthammer, C. (1998). La monja alferez: Die Au-
tobiographie Der Catalina de Erauso in Ihrem
Literarischen Und Gesellschaftlichen Kontext. Pe-
ter Lang Gmbh, Internationaler Verlag Der
Wissenschaften.
Mazzei, C. (2007). Queering Translation Studies.
(Dissertação de mestrado). University of
Massachussets Amherst, usa.
Mendieta, E. (2009). In Search of Catalina de Erau-
so: The national and sexual identity of the lieute-
nant nun. Trad. Angeles Prado. University of
Nevada.
Mendieta, E. (2019). Catalina de Erauso – ‘the
lieutenant nun’ – at the turn of the twenty-first
century. In L. Hopkins, A. Norrie (Orgs.). Wo-
men on the edge in early modern Europe (pp. 227-
246). Amsterdam University Press.
Merrim, S. (1999). Early Modern Women’s Wri-
ting and Sor Juana Ines de la Cruz. Vanderbilt
University Press.
Perry, M. E. (1990). Gender and disorder in early mo-
dern Seville. Princeton University Press.
Pinheiro, F. (2021). Tradução queer: visibilida-
de como forma de resistência. Fórum, 34(1),
207-221.
Robinson, D. (2019). Transgender, Translation,
Translingual Address. Bloomsbury Academic.
Rose, E. (2017). Revealing and concealing the
masquerade of translation and gender. In B. J.
Epstein & R. Gillett (Org.), Queer in translation
(pp. 36-50). Routledge.
Rose, E. (2018). Translating Trans Identity: (Re)Rea-
ding and (Re)Writing Undecidable Texts and Bodies.
(Tese de Doutorado em Filosofia e Tradução
Literária), University of East Anglia, Norwick.
Rutter-Jensen, C. (2007). The Transatlantic trans-
formation of the Lieutenant Nun. Revista de
Estudios Sociales, 28, 86-95.
Ruvalcaba, H. D. (2016). Translating the Queer:
body politics and transnational conversations. Zed
Books.
De freira a alferes, da Espanha à América: transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo129Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 16, N.°1, 2023, enero-junio,pp.109-131
Santaemilia, J. (2018). Sexuality and translation
as intimate partners? Toward a queer turn in
rewriting identities and desires. In Brian, B. J.,
Kaindl, K. (Orgs.), Queering translation, trans-
lating the queer: theory, practice, activism (pp. 11-
25). Routledge.
Stepto, M. (1996). Introduction. In C. Erauso.
Lieutenant nun. (pp. xxv-xli). Beacon Press.
Silva-Reis, D. (2021). “Traduções contra-cistema
– uma política trans-identidades”. In Semana
do Tradutor – Mesa-redonda 5 – Tradução sob
a perspectiva de grupos minoritários. www.
youtube.com/watch?v=kDK_5pIJGZY&ab_
channel=SemanadoTradutorUnesp Acesso
em: 12 jan. 2022.
St. Andrés, J. (2010). Translation and metaphor:
Setting the terms. St. André (Org.), Thinking
through translation with metaphors. (pp. 275-
294). St. Jerome Publishing.
Traverso, A. (2007). Revisión y revisionismo. El pa-
sado. Instrucciones de uso. Historia, memoria, políti-
ca. Trad. Almudena G. Cuenca. Marcial Pons.
Usillos, A. G. (2017). Transexualidad en la Améri-
ca indígena a través de las crónicas históricas:
de la falta de comprensión de otras realidades
a la transfobia. A. G. Usillos (Org.), Trans* Di-
versidad de identidades y roles de género. Museo
de América.
Venuti, L. (2019). Escândalos da tradução: por uma
ética da diferença. Trad. Laureano Pelegrin,
Lucinélia Marcelino Villela, Marileide Dias
Esqueda, e Valéria Biondo. edusp.
Venuti, L. (2008). The translator ’s invisibility.
Routledge.
Velazco, S. (2000). The lieutenant nun: transgender-
ism, lesbian desire, and Catalina de Erauso. Uni-
versity of Texas Press.
Leticia Pilger da Silva e Suéliton de Oliveira Silva Filho130Re-sentir lo queer/cuir en la traducción iberoamericana
Apêndice
Para fins de comparação, disponibilizamos uma tabela com a presença dos gêneros gramaticais
e a transformação deles em nossa tradução, marcando os ganhos e as perdas tradutórias.
Tabela marcação de gênero
Historia de la monja alférez FreirAlferes
Feminino Masculino Feminino Masculino
i 6 11 5 11
Ao traduzir “estaba mala” por “me sentia mal” houve, a perda de uma marcação no feminino.
ii _______ 2 _______ 2
iii _______ 5 _______ 5
Embora o número de ocorrências tenha coincidido, “Llegado” foi traduzido por “Ao chegar”.
iv _______ 3 _______ 2
Ao traduzir “por donde me llevaba asido” por “por onde ele me segurava”, ocorreu uma perda.
v _______ 4 _______ 3
Traduzir “Partido de Trujillo” por “Parti de Trujillo” acarretou na perda de uma ocorrência.
vi 2 15 2 15
vii _______ 11 _______ 9
Uma das duas perdas está pela tradução de “preguntáronme adónde iba por allí tan apartado” por “pergunta-
ram para onde eu ia por caminho tão remoto”.
viii _______ 2 _______ 2
ix _______ _______ _______ _______
Aqui aparecem “partidos” e “llegados” que não entraram na contagem por estarem no plural (Erauso estar na
companhia de outros homens).
x _______ 3 _______ 5
Traduzir “no haber lugar, por tanto, a darme tormento” por “de modo que eu não poderia ser torturado”; “y
poner en el potro” por “para ser colocado no potro” acarretou em duas ocorrências adicionais no texto em
português.
xi _______ 2 _______ _______
Enquanto que a tradução de “advertido de mi amo” por “com o consentimento do meu senhor”; “Salido de este
aprieto” por “Saindo desse aperto” ocasionou a perda de duas ocorrências.
xii _______ 4 _______ 6
Traduzir “quitar de la horca y llevar a la cárcel” por “tirassem da forca, que eu fosse levado de volta para a pri-
são”; “y remitiome con guardas” por “e me mandou, acompanhado de guardas” acrescentou duas ocorrências.
xiii _______ 12 _______ 12
xiv _______ _______ _______ _______
xv _______ 4 _______ 4
xvi _______ 3 _______ 5
Ao traduzir “me prendió el corregedor” por “fui preso pelo corregedor”; “con que salí libre” por “com o que fui
liberto”, somaram-se duas ocorrências na tradução.
xvii 2 2 2 5
Esse se trata do capítulo controverso pelo fato de as ocorrências no feminino não estarem claras. Mesmo no
capítulo do texto de partida Erauso se inclui entre homens (por exemplo, “tres hombres, que nadando nos aco-
gimos (…) Éramos yo, un fraile franciscano descalzo y un soldado”. Mais adiante, no mesmo capítulo, passará a
aparecer no feminino (“cogida”, “confusa”).
De freira a alferes, da Espanha à América: transformando Antonio de Erauso
no português brasileiro contemporâneo131Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción Vol. 16, N.°1, 2023, enero-junio,pp.109-131
Como citar este artigo: Silva, L. P. & Silva, S. O. (2023). De freira a alferes, da Espanha à
América: transformando Antonio de Erauso no português brasileiro contemporâneo. Mutatis
Mutandis, Revista Latinoamericana de Traducción, 16(1), 109-131. https://doi.org/10.17533/udea.
mut/v16n1a07
TOTAL
Historia de la monja alférez FreirAlferes
Feminino Masculino Feminino Masculino
24 113 22 120
Tabela marcação de gênero (cont.)
xviii 1 3 1 3
Ainda que tenhamos traduzido “confesarlo” por “tomar-lhe confissão”, não perdemos uma ocorrência por “yo
paraba” ter sido traduzido como “estava hospedado”.
xix _______ 5 _______ 8
Há mais ocorrências por termos traduzido “usted”, de um diálogo – uso formal –, por “senhor”, já que em portu-
guês o “você” não apresenta essa marca de formalidade.
xx 6 10 6 11
xxi 4 _______ 3 _______
Traduzir “acompañada” por “na companhia de” acarretou em uma perda.
xxii _______ _______ _______ _______
xxiii 2 1 2 1
xxiv _______ _______ _______ _______
xxv _______ 11 _______ 11
xxvi 1 _______ 1 _______
Consideramos o fato de as moças se dirigirem a Erauso como “senhora Catalina”. Ainda que ele revide, não há
a marcação de gênero no masculino nesse capítulo que é bem curto.