Qual futuro para a história social?
Claudio H. M. Batalha*
Desde pelo menos a década de 1990 houve quem proclamasse o fim da história social, seja pela concorrência da história cultural com sua tendência a ver o mundo apenas como representação,[1] seja pelo desafio metodológico proposto pela virada ou giro linguístico. Em um artigo provocativo de 1995 publicado na revista britânica Social History, Patrick Joyce lançava a indagação e ao mesmo tempo a respondia proclamando o fim da história social tal como existia até então.[2] Joyce está entre os poucos exemplos de historiadores que ao abraçarem um perspectiva pós-moderna tentaram aplicá-la na sua produção como pesquisador como seus trabalhos posteriores tornam evidente, nele há uma ruptura com categorias que considera reificadas e criações normativas da modernidade, tal como classe social. Como alternativa analítica propõe o indivíduo. Ao mesmo tempo, nega qualquer possibilidade de um real que não seja fruto da construção cultural e discursiva.
A percepção das fragilidades da história social não era nova. Anos antes Eric Hobsbawm, em um conhecido artigo do início da década de 1970, reconhecia a dificuldade de definição da história social, considerando que podia ter três acepções diferentes: a história das classes subalternas e seus movimentos; a história de costumes, práticas e vida cotidiana; a história social como interligada à história econômica, com predomínio desta última, tal como praticada originalmente pelos Annales.[3] Como o próprio título do artigo anunciava o autor vislumbrava um movimento que partisse da história social, por ele considerada mais restrita, para a história da sociedade, isto é, para o foco nas relações sociais, no processo. Passado meio século desde a primeira versão desse artigo podemos nos perguntar até que ponto sua preocupação foi incorporada. Se de um lado não houve o abandono — a despeito de sua reconhecida imprecisão — da designação de história social em benefício de uma história da sociedade, de outro lado, é inegável que o enfoque nas relações sociais ganhou espaço sobre o estudo de forma isolada das classes. Ainda que partindo de enfoques consideravelmente diversos, tanto Hobsbawm, quanto Joyce enfatizaram as dimensões processuais do social, mas qualquer semelhança fica restrita a esse ponto.
No Brasil, a partir da década de 1970, a consolidação da pesquisa histórica esteve diretamente vinculada ao desenvolvimento dos programas de pós-graduação, como ocorreu em outros partes da América Latina. Na década seguinte a história social e econômica ou econômica e social de inspiração francesa (na terceira acepção do termo mencionada por Hobsbawm), firmou-se em detrimento da história política. Entretanto, seguiu-se um processo de separação entre essas abordagens, com a prevalência da história social sobre a história econômica.[4] Neste início a história social produzida no Brasil volta-se para temas bastante diversificados dentro de um entendimento muito abrangente em que consistia esse campo. Assim pesquisas sobre diversos grupos sociais, vida cotidiana, condições de vida, mulheres, sexualidade, saúde, controle social, cultura coexistiram com um núcleo mais próximo da primeira acepção de Hobsbawm sobre o termo formado por estudos sobre o operariado, suas organizações e seus movimentos. O termo história social passou a constar da denominação de programas de pós-graduação, de suas áreas de concentração ou de suas linhas de pesquisa. Tornou-se de tal modo aceito e abrangente que muitas vezes compreendia perspectivas distintas que iam da historiografia marxista britânica a Michel Foucault, não raro buscando conciliar essas perspectivas. No entanto, cabe enfatizar que o termo história social como sinônimo de história da sociedade já estava anteriormente presente na produção historiográfica brasileira como atesta a obra em três volumes de Pedro Calmon, História social do Brasil (1935-1939).[5]
No apagar das luzes do século passado, ao traçar um panorama do campo da história social, Hebe Castro pergunta-se com pertinência se existiria uma história que não fosse social ao partir da afirmação de Georges Duby de que o objeto da pesquisa histórica é o homem em sociedade.[6] Como outros autores defronta-se com a dificuldade de definição precisa desse campo e aponta para algumas das influências nas mudanças introduzidas na história social, tais como a antropologia e o pós-estruturalismo. Convém, todavia, enfatizar que a efetiva influência que a virada linguística teve no caso brasileiro foi bem mais limitada do que no mundo anglo-saxão.
Nos dias de hoje, nos programas de pós-graduação em história, que tiveram crescimento vertiginoso a partir dos anos 1990, o termo história social aparece na denominação do programa ou de área de concentração em 17 (24%) dos 70 programas acadêmicos em atividade hoje. Outros tantos empregam termos que remetem ao social como sociedade ou movimentos sociais, mas cultura figura entre os termos que com mais frequência aparece nas áreas de concentração, particularmente, no caso de programas mais novos. Esse é apenas um dos exemplos por meio dos quais é possível perceber que a história social deixou de ser uma unanimidade e sua excessiva abrangência conduziu à busca de designações menos genéricas.
Nas últimas décadas, sem deixar inteiramente de lado o estudo das classes subalternas e seus movimentos, a história social ganhou considerável variedade temática. Assim, não faltam exemplos de pesquisas que abordam dimensões culturais, de crenças, de costumes, de práticas, de tradições e de relações as mais diversas. De certo modo, sem que constituam meras repetições do passado, o leque temático presente nas três acepções de história social descritas por Hobsbawm está contemplado nas pesquisas atuais ainda que sob novos enfoques. Como traço comum há a ênfase nas dimensões relacionais. E dentro das relações sociais, as classes — que durante muito tempo tiveram predomínio inconteste — foram acrescidas de novos recortes como gênero e raça. Com isso a classe, antes vista como homogeneizadora, ganhou abordagens mais matizadas que introduziram diversidade na sua manifestação como fenômeno histórico.
Um desdobramento mais recente da história social, perceptível sobretudo neste novo século é a crescente importância do espaço e do meio ambiente. Em parte, isso pode ser atribuído ao deslocamento de recortes predominantemente urbanos para abarcar estudos sobre áreas rurais, os sertões, as florestas. Assim o recorte geográfico deixa de ser uma mera formalidade para tornar-se aspecto central para a compreensão das relações sociais e da vida material em determinadas regiões. Um exemplo, entre outros, dessa nova consciência do espaço está nos estudos produzidos sobre a região amazônica, na qual a floresta, os rios, as condições climáticas são indissociáveis das condições de existência dos homens. E, evidentemente, essas condições objetivas — que moldam a vida das populações que vivem nessas regiões — existem independente das construções culturais e discursivas que sobre elas possam ser feitas. A consolidação dessa percepção pode ser claramente percebida nas áreas de concentração e nas linhas de pesquisa dos novos programas de pós-graduação em história criados nos últimos anos na região amazônica.
Uma consciência mais clara do espaço também tem relação com uma mudança da abordagem que tendeu durante muito tempo a naturalizar a adoção dos recortes políticos de municípios, estados, regiões e nações. Ainda que a rigor a crítica a esses recortes na história social brasileira date pelo menos da década de 1990, quando Silvia Petersen apontou para a necessidade de estudos que fossem capazes de romper com essa lógica e se voltassem para as dimensões de circulação, de mobilidades, de redes estabelecidas à revelia das fronteiras formais.[7] O sociólogo holandês Marcel van der Linden foi além em sua crítica àquilo que batizou de “nacionalismo metodológico”, a tendência na pesquisa histórica a fundir sociedade e Estado e a tratar os diferentes estados-nação isoladamente.[8] Ainda que lentamente, os problemas apontados por Petersen e por van der Linden vêm sendo enfrentados pelos historiadores sociais por meio de pesquisas que recorrem à metodologias como a história comparada, à história transnacional ou à história cruzada.
Outra mudança metodológica que ganhou crescente presença na produção em história social neste século foi a redução da escala de análise. Se em seus primeiros tempos a história social esteve voltada para a análise das classes sociais, dos grandes grupos, daquilo que era numericamente relevante e quantificável, há cada vez mais estudos voltados para grupos mais reduzidos e trajetórias de indivíduos. Isso não significa um retorno à biografia históricas clássicas que François Simiand designou jocosamente como um dos ídolos da tribo dos historiadores do seu tempo: o ídolo individual ou o hábito de conceber a história como uma história dos indivíduos.[9] Nos estudos atuais que adotam o recorte biográfico, nos quais a influência da antropologia se faz sentir, o que se percebe é uma esforço — a despeito da redução da escala de análise — de dar conta de questões que transcendem a experiência do indivíduo, ou seja, que buscam mostrar como a trajetória de um dado indivíduo auxilia na compreensão da sociedade em que ele viveu. É enganoso, portanto, supor nesse fenômeno uma oposição entre estudos macroanalíticos e microanalíticos, como escreveu Hobsbawm “a escolha entre o microcosmo ou o macrocosmo é questão de seleção da técnica apropriada”.[10] Não raro historiadores sociais que produziram estudos macroanalíticos também produzem estudos microanalíticos.
Passada algumas décadas da “idade do ouro” da história social, para retomar a expressão utilizada por José Antonio Piqueras,[11] que se confunde com parte significativa do século XX, seus praticantes neste novo século certamente são movidos por mais dúvidas e menos certezas do que seus congêneres do passado. O otimismo de que o estudo do passado poderia servir de guia para compreensão do presente perdeu força e deu lugar a uma postura mais cautelosa. Ainda assim assistimos nessas últimas duas décadas à recomposição da história social ou sua reconfiguração, como prefere Beatriz Moreyra, aparentemente tendo superado os desafios do cultural e da linguagem.[12] A própria clareza do que seja a história social, seus métodos e os temas que engloba foi substituída por definições menos recortadas e fronteiras mais fluídas, abordagens mais diversificadas e temas mais plurais. Entretanto, diferentemente de outras formas de enfocar a história, a história social permanece como aquela que fornece as análises mais interessantes para as questões decorrentes de sociedades fundadas sobre diferenças e desigualdades, ou seja, para sociedades de classes. Neste sentido seguramente ainda há um papel reservado para a história social por muito tempo.
Bibliografia
Calmon, Pedro. História social do Brasil. 3 vols. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937-1939.
Castro, Hebe. “História Social”. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Eds. Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
Chartier, Roger. “Le monde comme représentation”. Annales ESC 44.6 (1989): 1505-1520.
Fico, Carlos e Ronaldo Polito. A história do Brasil (1980-1989): elementos para uma avaliação historiográfica. Ouro Preto: UFOP, 1982.
Hobsbawm, Eric. On History. NovaYork: The New Press, 1997.
Joyce, Patrick. “The End of Social History?”. Social History 20.1 (1995): 73-91.
Linden, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013.
Moreyra, Beatriz I. “El revival de la historia social en la primera década del siglo XXI: ¿retorno o reconfiguración?”. História da Historiografia 15 (2014): 168-186.
Petersen, Silvia Regina Ferraz. “Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a história operária brasileira”. Trabalho, cultura e cidadania: um balanço da história social brasileira. Ed. Angela Maria Carneiro Araújo. São Paulo: Scritta, 1997.
Piqueras, José Antonio. La era Hobsbawm en la historia social. México: El Colegio de México, 2016.
Simiand, François. “Méthode historique et science sociale: étude critique d’après les ouvrages récents de M. Lacombe et de M. Seignobos (deuxième partie)”. Revue de Synthèse Historique 2.17 (1903): 129-157.
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Claudio H. M. Batalha é doutor em História pela Université de Paris (Panthéon-Sorbonne) (1986), professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas desde 1986, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), autor de O movimento operário na Primeira República (2000), coordenador do Dicionário do movimento operário, Rio de Janeiro do século XIX aos anos 1920: militantes e organizações e coorganizador de Culturas de classe: Identidade e diversidade na formação do operariado (2004) e de Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX) (2014).
Doi: 10.17533/udea.trahs.n20a14
* Universidade Estadual de Campinas.
[1] Roger Chartier, “Le monde comme représentation”, Annales ESC 44.6 (1989): 1505-1520. Apesar de tomar emprestado o título do artigo de Chartier é preciso enfatizar que não há nesse autor nem o rompimento com a interpretação social, nem tampouco a crença na ausência de determinação.
[2] Patrick Joyce, “The End of Social History?”, Social History 20.1 (1995): 73-91. O debate sobre o tema no periódico começou em 1994, antes do artigo de Joyce, e prosseguiu nos números seguintes.
[3] Eric Hobsbawm, “From Social History to the History of Society”, On History, ed. Eric Hobsbawm (Nova York: The New Press, 1997) 71-93.
[4] Carlos Fico e Ronaldo Polito, A história do Brasil (1980-1989): elementos para uma avaliação historiográfica (Ouro Preto: UFOP, 1982) 33-34, 56.
[5] Pedro Calmon, História social do Brasil, 3 vols. (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937-1939).
[6] Hebe Castro, “História Social”, Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia, eds. Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (Rio de Janeiro: Campus, 1997) 46.
[7] Silvia Regina Ferraz Petersen, “Cruzando fronteiras: as pesquisas regionais e a história operária brasileira”, Trabalho, cultura e cidadania: um balanço da história social brasileira, ed. Angela Maria Carneiro Araújo (São Paulo: Scritta, 1997) 85-103.
[8] Marcel van der Linden, Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho (Campinas: Editora da UNICAMP, 2013) 11.
[9] François Simiand, “Méthode historique et science sociale: étude critique d’après les ouvrages récents de M. Lacombe et de M. Seignobos (deuxième partie)”, Revue de Synthèse Historique 2.17 (1903): 154-155.
[10] Eric Hobsbawm, “On the Revival of Narrative”, On History, ed. Eric Hobsbawm (Nova York: The New Press, 1997) 199.
[11] José Antonio Piqueras, La era Hobsbawm en la historia social (México: El Colegio de México, 2016) 15-22.
[12] Beatriz I. Moreyra, “El revival de la historia social en la primera década del siglo XXI: ¿retorno o reconfiguración?”, História da Historiografia 15 (2014): 168-186.