Revisitando a história do povo moçambicano

Autores/as

  • Elis Regina Guedes de Souza Universidade Federal de Campina Grande - UFCG

DOI:

https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n87a014

Palabras clave:

Memória Subterrânea; Isaías Mate; Mudungazi.

Resumen

Reseña de la novela Memória Subterrânea de Isaías Mate.

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Citas

Mudungazi. (2004). Memória Subterrânea. Editorial Kulera.

Publicado

2024-12-14

Cómo citar

Guedes de Souza, E. R. (2024). Revisitando a história do povo moçambicano. Lingüística Y Literatura, 46(87), 297–301. https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n87a014

O livro Memória Subterrânea (2024), do escritor e professor universitário moçambicano Mudungazi, pseudônimo de Isaías Mate, que é natural de Gaza, distrito de Mandlakazi, faz uma releitura das memórias e histórias do povo moçambicano, a partir do olhar e das vozes daqueles que foram silenciados. A obra se inicia com seu poema Mandjoro que traz o personagem com o mesmo nome se preparando para ir à guerra, em cujos os versos o eu-lírico questiona a «utilidade» (Mudungazi, 2024, p. 09) da guerra na vida do personagem que «na velhice vai cair morto na Assembleia nos Inúteis, onde vai bater palmas à moda dos loucos!» (p. 09). Apesar de ter alguns privilégios materiais, ao final da vida, o personagem acabará esquecido mediante a inutilidade da guerra que atende a um grupo de poderosos para manterem seus domínios, mas não altera significativamente a vida dos soldados.

Com uma linguagem provocante que é um grande diferencial da obra, o autor traz várias palavras da língua nativa moçambicana que chamam atenção e, ao mesmo tempo, dando a conhecer novos vocábulos. Por meio de uma escrita que em muitos momentos nos dá um choque de realidade embarcamos nos episódios que compõem a prosa de Mudungazi. O livro é divido em quatro episódios, sendo o segundo o mais longo e denso da obra. Ao início de cada episódio o autor traz epigrafes que nos levam a refletir sobre questões importantes que serão abordadas naquela seção.

A primeira epígrafe é uma citação de Albert Einstein que traz um paralelo entre lógica e imaginação, ressaltando que esta última pode nos levar onde se quiser ir. É a partir dessa fantasia que somos inseridos no sonho que passa a ser narrado no episódio i. Essa primeira seção traz também uma citação de Martin Luther King sobre morrer por uma causa para ser digno dela. Essa reflexão faz todo sentido com o contexto vivido pelos personagens da narrativa, que são imbuídos de uma missão de adentrar a selva para livrar a aldeia de cães inimigos do povo e devolver a paz ao local. Ao ressaltar que o passado é inalcançável o autor traz uma importante junção de palavras que dão a dimensão desse passado doloroso:

Palavras como rapto, roubo, sangue, vingança, ódio, sofreguidão e penúria são hino de cada amanhecer, de cada entardecer e de cada anoitecer; São o hino dos que o oposto de Deus deu o honorífico diploma da semente da malvadez a ser crivada em nós, filhos de ninguém. Nós, filhos da mãe sem chão. Nós, filhos de cães e cadelas sem nome. Nós, os inconfundíveis designados de Fanon (Mudungazi, 2024, p. 16-17).

As palavras manejadas habilmente pelo autor nos dão as imagens do que representou a guerra, e de como foi/é a vida dos moçambicanos, sem nomes, como filhos de ninguém, ou seja, sem conhecer sua descendência apagada pela colonização e a escravização dos povos negros. Comparados a cães sem identidade, sem importância, cada palavra traz em si as marcas da violência a que foram submetidos ao longo de suas vidas.

A imagem dos cães se relaciona muito ao enredo principalmente a partir do episódio ii, o mais longo do livro, pois ao mesmo tempo em que esses cães representam os que vão à guerra, obrigados pelo sistema de dominação. Os cães também são comparados aos opressores, a burguesia que explora o povo negro e que os obriga a ir à guerra, para «salvar» as vidas das pessoas da aldeia que são perseguidas pelos cães inimigos, todos humanos e ao mesmo tempo todos cães, à medida que agem com tanta violência e irracionalidade. Na epígrafe desse episódio a citação de Samora Machel traz uma dura crítica aos capitalistas e a burguesia nacional, na qual se ressalta que em Moçambique não haverá lugar para exploradores do povo, sejam eles brancos ou pretos.

Novamente a epígrafe dá o tom do que será abordado ao longo do capítulo, pois nesse momento da narrativa os cães já dominaram a aldeia, as pessoas são mordidas e perseguidas por eles a ponto de pedirem «“CHEGA DE CÃES!”. “ATÉ QUANDO?”. “ESTAMOS CANSADOS”. “PAZ!”, “PAZ!” [...] “QUEREMOS PAZ”!» (Mudungazi, 2024, p. 24). Após esse caos provocado pelos cães se constitui um grupo de homens que são designados para irem até a floresta enfrentar a ameaça canina. Os caçadores devem capturar ou matar os cães, o importante é eliminar as feras que ameaçam as pessoas e tiram a paz a aldeia. Os caçadores tinham alcunhas de nomes de pessoas conhecidas no cenário de guerras e na política no mundo, tais como: Bin Laden, Obama, Saddam Hussein, Ngungunhane, Nyerere, Mozici, Bush, Matshanga e Mabuthu. Nomes que são marcas da imposição e força ditatorial sobre outros povos, conforme é descrito pelo narrador que tece duras críticas ao modo de agir dessas pessoas.

Ao longo da aventura na floresta os caçadores enfrentam diversos perigos, animais ferozes, e muitos ficam pelo caminho, sendo devorados por feras, cobras, leões e por fim pelos próprios cães que parecem se multiplicar em uma luta insana dos homens contra a natureza. Em determinado momento em que estão na selva, os caçadores se questionam sobre a política, enquanto uns preferem seguir com a missão sem vincula-la a política, outros entendem que é por falta de questionamentos sobre a política que eles se encontram nessa situação, «Mas, como deixar de politicalha? Se estamos nestas matas por causa desta merda! Estamos aqui a morrer com picadas de mambas, sei lá o que mais virá pela frente, não é porque estamos a serviço da política?» (Mudungazi, 2024, p. 35). Na fala do caçador Nyerere percebemos como a política, por meio de seus agentes, determina a função de cada pessoa na sociedade, dizendo quem vai viver e quem deve morrer, quais vidas importam e quais merecem ser salvas. Os mandatários da aldeia ficaram em casa seguros e livres dos perigos enquanto os caçadores tiveram que enfrentar os perigos da floresta.

Nesse episódio podemos ler os males causados pelas guerras na vida dos soldados, que são convocados para defenderem os interesses de um país em nome de valores que devem estar acima de suas vidas, combatendo outros seres humanos, visto como inimigos (cães), pois os verdadeiros interessados na guerra estão seguros e bem longe dos perigos. Na floresta os caçadores refletem, revivem as memórias das maldades cometidas durante a escravização dos povos do continente africano, como um fio condutor a vivência da guerra do presente vai retomando a pilhagem vivida no passado, a

pilhagem dos nossos valores morais africanos. Nossa maneira de viver em grutas, de bosque em bosque, apanhando frutos no chão em tempos de estiagem [...] A pilhagem das nossas riquezas. [...] A pilhagem das nossas mulheres. A castidade das nossas filhas, nossas mães, avós, tias [...] A pilhagem dos nossos irmãos, pais, avôs, filhos, que fornicaram como cães em caixas grandes, transformadas em gaiolas, que se faziam ao mar, onde metade morria, para depois servir de alimento aos tubarões famintos [...] para alguns chegarem ao destino infernal, onde sucumbiriam, durante séculos incontáveis, como burros de carga e outros animais nas plantações de café, cacau e cana-de-açúcar, na América Latina, na Carolina do Sul, na Virgínia, Florida (Mudungazi, 2024, p. 48-49).

Por meio da fala de um dos caçadores que vai trazendo a memória o processo de escravização dos povos africanos, temos um relato doloroso de como esse passado não está superado, pois ainda continuar a vitimar as pessoas. Conforme o narrador novas maneiras de colonizar e escravizar as pessoas são apresentadas por meio de «novas formas de colonização camufladas em globalização, cooperação e intercâmbio» (Mudungazi, 2024, p. 51). A partir disso, reviver, fazer memória do passado, permite entender o presente e possivelmente lutar para impedir que essa nova forma de opressão domine novamente as pessoas. Por meio da sua escrita o autor conclama os leitores a olhar novamente para esse passado insuperável.

Após passarem por tantos infortúnios os caçadores que conseguiram sobreviver voltaram para a aldeia sem terem vencido os cães e não tiveram o reconhecimento, nem o agradecimento da população, revoltados eles perceberam o quanto foram usados e passaram a montar barricadas, exigindo serem tratados com equidade e igualdade de direitos pelas autoridades. Pois todo esforço e sofrimento que passaram de nada valeu para frear a ambição dos poderosos da aldeia. Nesse momento, o narrador (Massema) desperta do sonho/ pesadelo e percebe que tudo se passava enquanto ele dormia, acorda atormentando com as lembranças «projetando a memória para um passado recente, recuperou o dia da reunião, para depois dizer está bem e ajeitar-se» (Mudungazi, 2024, p. 128). Ao constatar que era um sonho, ele reviveu o passado dos seus ancestrais e percebeu que a história era atualizada com novas formas de opressão, fome e sofrimento.

Diante disso, nos momentos finais da narrativa já no episódio iii, apesar de remorar acontecimentos dolorosos, o narrador reflete que «É preciso sonhar. Ainda que nos custe medo e sangue. Com filhos de Kalashnikov diluídos na carne e ossos. Ainda que em vão. É preciso sonhar. A esperança é a última coisa que deve morrer» (Mudungazi, 2024, p. 133). Ainda que os sonhos também tragam pesadelos, não se pode deixar de sonhar com um mundo melhor, ter esperança e lutar para escrever uma outra história, a partir daqueles que foram silenciados, escravizados, sem direito de defesa e cuja vida foi marcada pela opressão e o sofrimento.

Por fim, nesse caminho de esperança o autor/narrador acredita e defende a sabedoria ancestral como um modo de recontar essa versão da história, por isso é necessário «deixar os mais velhos, os mais experientes, os mestres falarem, cabendo-nos a nós, ainda incipientes, a escuta e aprendizagem. Os mais novos aprendem melhor escutando e não falando. [...] O tempo é o melhor juiz e indicador da sabedoria» (Mudungazi, 2024, p. 135). Ainda de acordo com Mudungazi são os anciãos que guardam essas «memórias dóceis e amargas. Memórias intactas e decepadas. Memórias do passado e do presente. Memórias subterrâneas» (p. 139). Assim, é preciso aprender com essas memórias, se colocando no lugar de aprendiz daqueles que vieram antes.

Referência

  1. (). . . Editorial Kulera.. .