A Tessitura Intermidiática da Literatura de Cordel em Narrativas contemporâneas e o adejo d’O Pavão Misterioso

Autores/as

  • Rodrigo Nunes Da Silva Universidade Estadual da Paraíba
  • Linduarte Pereira Rodrigues Universidade Estadual da Paraíba https://orcid.org/0000-0002-9748-179X

DOI:

https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n87a04

Palabras clave:

literatura de cordel; plasticidade cultural; imaginário popular; intermidialidade; pavão misterioso.

Resumen

O estudo analisa o caráter intermidiático e de plasticidade cultural (Rodrigues, 2017) da literatura de cordel, demonstrando o trajeto mítico-antropológico do folheto O Romance do Pavão Misterioso, de José Camelo de Melo Rezende (1885-1964). No rol da Semiótica Antropológica (Rodrigues, 2011), realiza uma pesquisa bibliográfica e documental, ancorada nos estudos culturais, dialógicos, simbólicos e de tradição oral (Bakhtin, 2016; Clüver, 2007; Durand, 2002; Jung, 2014; Zumthor, 1993). A pesquisa evidenciou o cordel como objeto de linguagem da prática social do povo brasileiro que empresta status de valor cultural na mídia contemporânea e produz efeitos de sentido (socioculturais/históricos/ideológicos), atualizados pelo processo de significação do texto no plano de ação da linguagem.

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Biografía del autor/a

Rodrigo Nunes Da Silva, Universidade Estadual da Paraíba

Docente do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI) da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Mestre em Línguas, Culturas e Formação Docente pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) – Campus I – Campina Grande – PB. Membro do Grupo de Pesquisa TEOSSENO-CNPq-UEPB. Bolsista Capes.

Linduarte Pereira Rodrigues, Universidade Estadual da Paraíba

Líder do Grupo de Pesquisa Teorias do sentido: discursos e significações (TEOSSENO-CNPq-UEPB). Doutor em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor da Faculdade de Linguística, Letras e Artes e dos Programas de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade e Formação de Professores da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Campina Grande – PB – Brasil. E-mail: linduartepr@gmail.com.

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Publicado

2024-12-14

Cómo citar

Da Silva, R. N., & Pereira Rodrigues, L. (2024). A Tessitura Intermidiática da Literatura de Cordel em Narrativas contemporâneas e o adejo d’O Pavão Misterioso . Lingüística Y Literatura, 46(87), 86–121. https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n87a04

1. Considerações iniciais

A literatura de cordel compõe um quadro panorâmico de narrativas populares da região Nordeste do Brasil, de vasta amplitude temática, com abordagens tanto socioculturais quanto históricas. Como texto versátil de tradição oral, esta arte literária mantém-se viva (Rodrigues, 2014a), em meio às práticas leitoras e tecnológicas atuais, reinventando-se como qualquer outro gênero textual que se metamorfoseia, retextualiza-se e se atualiza (Rodrigues, 2017). As narrativas impressas em suas páginas despertam nos leitores/ouvintes um misto de sensações, junções de elementos críticos e satíricos que provocam do riso à reflexão acerca de temas pertinentes à sociedade. Além disso, observa-se em suas construções narrativas uma «notável efervescência mitológica» (Girardet, 1987, p. 9) por meio da evocação de imagens e símbolos que estruturam e ressignificam o universo imaginário do povo brasileiro. Esse imaginário, conforme Durand (2002), «é o conjunto das imagens e das relações de imagens que constituem o capital pensado do homo sapiens» (p. 25).

Atualmente, os folhetos de cordel são encontrados não só nas feiras das cidades interioranas (como rege a tradição), mas desbravam outros territórios, tornando-se importantes objetos de pesquisas científicas nas universidades de todo o mundo. De mãos dadas com as ilustrações em xilogravuras e outras artes, essa escritura segue sua movência, adaptando-se e readaptando-se por meio de narrativas que não fogem às marcas da oralidade, pois antes de ser texto escrito o cordel foi narrativa oral, foi cantoria popular. Desde sua origem, o cordel estrutura-se como legítimo documento/monumento linguístico/literário das vozes e das escrituras (Rodrigues, 2018), ligado ao tempo e ao espaço das práticas discursivas nas culturas, principalmente àquelas associadas ao povo nordestino, devido a fatores socioculturais e político-econômicos, próprios da região. Como delimitação da escritura, essa forma literária atualiza vozes e imaginários coletivos que dão margem à imaginação criadora, a partir de uma relação sociossemiótica com o texto de tradição oral.

Considerando a extensão narrativa transmidiática (Figueredo, 2017) da literatura de cordel, neste estudo, mediante um olhar simbólico-antropológico para o texto de tradição oral, enveredamos por um viés Semiótico Antropológico, práxis semiológica que abarca a materialização/incorporação dos sentidos na tessitura textual, bem como os processos de cristalização e de atualização do mito e do imaginário coletivo, viabilizados e perpetuados pelas vozes e escrituras, e por meio do fenômeno da plasticidade/movência das práticas culturais e intermidiáticas (Rodrigues, 2011). Dessa forma, investigamos os processos de significação narrativa e a plasticidade cultural (Rodrigues, 2011; 2013) em torno da tradição narrativa do cordel (do suporte à arquitetura textual), destacando o folheto O Romance do Pavão Misterioso, narrativa poética arquitetada pelo paraibano José Camelo de Melo Rezende (1885-1964).

Haja vista as culturas em movimento, particularmente a produção ativa da cultura popular do cordel, conforme Rodrigues (2013), compreendemos que «há uma plasticidade tanto cultural/ideológica quanto do próprio suporte (folheto de cordel) que atualiza as vozes e escrituras» (p. 253) de narrativas ficcionais/mítico-simbólicas em contextos contemporâneos, e que reverbera significados arquetípicos do inconsciente coletivo, numa espécie de «incessantes variações re-criadoras» (Zumthor, 2000, p. 77). Nesse sentido, o conceito de plasticidade cultural é demonstrado pelo caráter de movência e de atualização do cordel ora destacado, que ao ser tecido por vozes da tradição oral/popular, ao mesmo tempo empresta seu valor de status, e seu suporte, à produção de outros textos multimidiáticos, tornando-se um «canal de condução das vozes que arranjam a modernidade em solo da tradição» (Rodrigues, 2013, p. 264). Isto é, há no cordel um encontro de vozes que conecta tradição e contemporaneidade, à medida que se explora, no plano de acontecimento do texto, novas formas de configurações e suportes, novos objetivos de produção no aspecto espacial e temporal.

Nesse ínterim, interpretamos as narrativas contemporâneas como entrecruzamento linguístico-narrativo emergente na contemporaneidade, popularizado pelas tecnologias e plataformas de produção e divulgação de textos/discursos, no qual mídias da tradição e da modernidade coexistem, convergem, hibridizam-se e ecoam transmidiaticamente (Rodrigues, 2011; Ramazzina-Ghirardi, 2022). Desse modo, considerando o nomadismo de vozes e de escrituras suscitado pela obra em análise, buscamos respostas para as seguintes questões: quais foram as influências que teceram as narrativas de O Romance do Pavão Misterioso no cenário da literatura de cordel nordestina? E quais processos de retextualização contribuíram para a permanência e circularidade destas narrativas no contexto social e midiático contemporâneo?

Para tal propósito, realizamos uma pesquisa exploratória, bibliográfica, documental e descritiva, de caráter qualitativo. Nosso objetivo foi analisar o trajeto mítico-antropológico presente na obra, refletindo sobre a concepção simbólica da imaginação criadora que agrega o imaginário e os símbolos primordiais no processo de análise dos textos das culturas populares. Entendemos que O Romance do Pavão Misterioso possui características singulares que associam o universo mágico dos contos maravilhosos e das novelas de cavalaria. Como veremos, sua base narrativa também inspira a criação de outras produções multimidiáticas como filmes, novelas, músicas, séries, entre outras. Como aparato teórico, ancoramo-nos em autores que se interessam pelos estudos da significação e transitam pelos estudos culturais, dialógicos, imagéticos e interartes, tais como: Clüver (2007; 2008), Durand (2002), Jung (2014; 2016), Hutcheon (2011), Rajewsky (2012), Rodrigues (2011; 2013; 2014a; 2014b; 2017; 2018), Zumthor (1993; 2000; 2005), entre outros.

Em face do exposto, observamos que nos estudos interartes da contemporaneidade (Clüver, 2007; 2008), a intermidialidade abarca a tradição dos comparatistas, bem como as novas articulações entre a multiplicidade de mídias existentes. O termo intermídia não é mais pensado apenas num processo de transformação de um texto em outro, mas numa interface interpretativista de signos verbais e não verbais. Entendemos que, por meio do fenômeno da plasticidade cultural (Rodrigues, 2017), a literatura de cordel se adapta, representa e significa nas culturas que a acolhem. Para tal constatação, basta observar os novos formatos de folhetos de cordel, modernos no estilo e na linguagem, nos objetivos de produção e na configuração arquitetônica temporal e espacial. À vista disso, a pesquisa justifica-se pelo fato de evidenciar o cordel como gênero linguístico/literário/multimidiático que concede sua configuração textual/discursiva/temática para uma gama de produções artísticas que circulam na sociedade, como no caso da obra em análise, a qual traz à tona elementos de valor cultural, simbólico e imagético-figurativo que ressignificam práticas sociais contemporâneas.

A seguir, num primeiro momento discorreremos sobre o contexto sociocultural e histórico em que o cordel se insere, bem como acerca das estruturas antropológicas do imaginário que dão suporte teórico à pesquisa. Em seguida, afinaremos um diálogo sobre os estudos intermidiáticos numa interface dialógica, para posteriormente empreendemos a análise do corpus. Veremos como a literatura de cordel serve de fundamento para a reprodução midiática de variados textos, enquanto dá lugar para a captação/apropriação de outros, apresentando-se como gênero plurissignificativo. Considerando sua dinamicidade e plasticidade cultural, assim como sua performance nas convenções sociais e discursivas que dão sustentação aos usos sociais e pragmáticos da linguagem, constatamos que O Romance do Pavão Misterioso apresenta, em sua composição narrativa, um processo de atualização/manutenção de vozes arquetípicas (Jung, 2016), que desaguam no universo midiático atual e alimentam o imaginário coletivo do povo nordestino, figurando ainda como elo na relação homem, mundo e processos significativos de compreensão das origens do pensamento humano.

2. Nas tramas da literatura de cordel: origens, movência e imaginário popular

Como legítima manifestação do povo do Nordeste brasileiro, o cordel se faz escritura, espaço onde se coaduna a realidade e a ficção, o erudito e o popular. Essa arte criativa influenciou grandes nomes da literatura tradicional brasileira. É de Jorge Amado o pensamento de que a literatura de cordel

É ao mesmo tempo, a crítica por vezes contundente e a visão poética do universo e dos acontecimentos. É puritana, moralista, mas igualmente cínica e amoral, realista e imaginosa - dentro de suas contradições perdura a unidade fundamental do choque da cultura e da vida do povo com a sociedade que limita, oprime e explora as populações pobres e trabalhadoras (Amado, apudMedeiros, 2002, p. 24).

Diante de sua construção simbólica, permeada de contradições e complexidades, as narrativas contidas nos folhetos de cordel emergem de uma capacidade criadora fértil que bebe na diversidade cultural e temática que se dispõe no lugar. Andrade e Silva (2005) corroboram com essa ideia ao afirmar que o cordel é uma forma poética valiosa, complexa e transpassada de vitalidade, uma vez que expõe uma mentalidade e uma visão de mundo popular. Para os autores, as narrativas que tecem o cordel são elaboradas mais para o ouvido do que para os olhos, visto que sua recepção conjectura o canto, a performance do artista, a leitura em voz alta, a declamação/recitação de tramas ardilosas, aventuras fantásticas que chamam a atenção do público, que acompanha(va) coletivamente o desdobramento das histórias, etc. Tendo em vista que a produção e a recepção de um texto fazem parte de um processo complexo de movência e nomadismo das vozes e escrituras em contextos específicos, faz-se necessário destacarmos o conceito zumthoriano de performance, no anseio de investigar o nomadismo antropológico das vozes e escrituras em textos da tradição oral, como as narrativas impressas no cordel.

De acordo com Zumthor (2000), performance é um «termo antropológico» que nos empresta a ideia de ação/atualização, isto é, «refere-se a um momento tomado como presente» (p. 5). A voz, para além de ser tratada só como oralidade, faz-se lugar simbólico, nômade. Atualiza-se de formas variadas, por meio de diferentes performances, deslocamentos e retextualizações. Ela é a extensão performática do corpo; o próprio fio condutor que tece as histórias populares/tradicionais (Zumthor, 1993) e suas adaptações em narrativas contemporâneas. Como dimensão poética, as manifestações orais se conectam às performances do corpo, na medida em que a oralidade implica as nuances de expansão daquele, seja no olhar, no gesto ou em outros movimentos que se integram a essa poética (Zumthor, 2005).

Meneses (2019) argumenta que a gênese da literatura de cordel pode ter tido seu marco com a divulgação de histórias tradicionais, como as novelas de cavalaria que remontam ao trovadorismo medieval e são comuns nas culturas populares. Para ele, o termo cordel é bastante ambíguo, porém usual e acolhedor quando se pensa nos múltiplos recursos arquitetônicos constituintes de sua estrutura verbo-textual. Sobre os aspectos que influenciam sua arquitetura/composição, o autor ressalta ainda que «as denominações variam segundo várias categorias, conforme o suporte (folheto, ‘foieto’, livro, folhinha, romance), tradição (folheto antigo), lugar (arrecifes, poesia da rua), editores (livro de Athayde), conteúdo (histórias de João Grilo), origem social (poesia de matuto) e assim por diante» (Meneses, 2019, p. 228).

Ao lado dessas novelas medievais irrompeu a divulgação de fatos cotidianos, de acontecimentos sociais que iam conquistando cada vez mais o bel-prazer do povo. No século xvi, o Renascimento disseminou a impressão de narrativas orais originando uma tradição literária popular no Brasil. Até então, sabe-se que os alemães e os holandeses também possuíam uma espécie de literatura de cordel bastante expressiva, tendo em vista o processo de industrialização e das máquinas de impressões que contribuíam para a divulgação da arte do cordel na região. No território francês, o cordel era conhecido como literatura de colportagem pelo fato de ser vendido de porta a porta e em locais públicos. Atualmente, influenciado por Raymond Cantel, exímio pesquisador francês da cultura popular brasileira, a França detém o maior acervo de cordel do mundo, disponível, inclusive, no ciberespaço, através do site da Biblioteca Virtual Cordel da Université de Poitiers.1

A expressão literatura de cordel foi cunhada em Portugal, região em que o cordel ficou conhecido popularmente como folhas soltas ou folhetos volantes. Esses folhetos (pequenos livretos confeccionados a partir de uma folha de papel dobrada em 4 partes) eram pendurados em cordões e vendidos a preços ínfimos (devido seu material ser de baixo custo), algo que nos lembra a prática da venda dos chamados penny dreadfuls (centavos do terror), pequenas publicações de ficção e terror comercializadas na Inglaterra, no século xix, que custavam apenas um penny (um centavo). O cordel ganha características singulares e distintas das de Portugal quando chega ao território brasileiro na época da colonização portuguesa. Contudo, percebemos que a arte assimila em si o hibridismo cultural das produções lusitanas. Por outro lado, há autores, como Márcia Abreu (1999), que criticam a concepção histórica desse hibridismo cultural, defendendo a interdependência do cordel produzido no Nordeste brasileiro.

Ainda durante o governo imperial, o início das publicações pela impressa nacional impulsionou o desenvolvimento da literatura de cordel nos estados do Nordeste. Nessa época, os temas recorrentes discorriam sobre a religiosidade, o misticismo, as narrativas heroicas e a valorização de determinadas formas de conduta. Assim, surgem os primeiros folhetos e poetas populares brasileiros que narravam sagas em versos. O paraibano Leandro Gomes de Barros (1865-1918) foi considerado o pai da literatura de cordel no Brasil, o primeiro que se tem conhecimento a imprimir (na sua própria casa), divulgar e vender cordéis. Outros grandes nomes do pioneirismo do cordel brasileiro foram Francisco das Chargas Batista (1882-1930), João Melquíades Ferreira (1869-1933), José Camelo de Melo Rezende (1885-1964) e Silvino Pirauá Lima (1848-1913).

Sobre o processo de produção, Batista (1977) explica que geralmente os cordéis eram escritos em sextilhas, com versos de sete sílabas, não havendo preocupação com estilo, pois a própria rima não seguia uma precisão técnica, uma vez que a metrificação era feita pelo ouvir, ou seja, era elaborada para ser cantada, assinalando assim a tradição oral desta forma de arte literária e sua relação com as cantigas populares. Com o tempo, alguns poetas começaram a empregar a contagem das sílabas em seus versos. Dessa forma, o cordel se fez a voz do homem do campo, não obstante, conquistou o público urbano, da elite às pessoas menos favorecidas economicamente, auferindo elementos literários e culturais próprios, adaptados ao cenário sociopolítico e econômico da região Nordeste.

Diante disso, os poetas repentistas/cordelistas figuravam como dirigentes da mentalidade do povo. Como boa parte da população não sabia ler, geralmente as histórias narradas em cordel eram decoradas por eles e declamadas em feiras, fazendas, praças e festas religiosas, muitas vezes, ao som de uma viola. Nesses espaços, os poetas recitavam versos com fim de conquistar o público que logo se interessava em ouvir tais relatos. Grangeiro (2002) esclarece que a literatura de cordel foi considerada um jornal do povo, por captar a mensagem dos meios de comunicação de massa e a recodificar para um público comum.

Entre as décadas de 1920 e os anos dourados de 1950, a literatura de cordel chega a seu auge no Brasil, difundindo-se principalmente nos estados da Paraíba, Pernambuco e Bahia, com destaque para Recife, capital pernambucana. Na década de 1960, com o surgimento do rádio e em seguida a difusão da televisão, a produção de folhetos se deu um tanto irregular. Com isso, a arte do cordel foi sofrendo oscilações/metamorfoses e encontrando outras formas de midiatização, deslocando-se geograficamente para as regiões Norte e Sudeste, assim como alcançando outros públicos/leitores, como a classe média e os pesquisadores universitários.

Nesse contexto, alguns autores cogitaram a morte do cordel, influenciados pelo discurso autoritário e de censura imposta durante o regime militar em nosso país, que prendeu e proibiu muitos artistas populares, devido suas publicações ferirem a moral e os bons costumes do povo. Rodrigues (2014a) considera que essa ideia de morte do cordel é equivocada, pois a literatura de cordel se mantém viva e atuante em nossos dias, seguindo seu diálogo com a história. Assim como as línguas mudam e se movem, o cordel realiza sua movência, sua metamorfose, adaptando-se, plastificando-se, culturalmente, enquanto gênero textual que arquiteta as vozes das culturas populares do Nordeste brasileiro (Rodrigues, 2011; 2017). Para o autor, essa adaptação

garante a manutenção da memória, porque a movência é a garantia da continuidade [...]. Por esta razão, não sei por que tanto agouro, tanto pesar em se falar numa possível ‘morte’ de um produto que se renova em conjunto com a sociedade, renovando também os signos de sua cultura (Rodrigues, 2014a, p. 161).

Como expomos, as narrativas populares nordestinas são arquitetadas por personagens e acontecimentos que formam uma trama/tecido, um texto dotado de sentido, que faz do cordel um material literário de coesão universal para a história da humanidade. Conforme Girardet (1987), entendemos que o cordel apresenta em sua tessitura uma «notável efervescência mitológica» (p. 9). Transpassado por temas do imaginário social, ultrapassa as subjetividades, alimentando-se da atividade imaginativa humana, ao mesmo tempo em que a reescreve/reinterpreta. As histórias mitológicas, lendárias ou alegóricas, enraizadas no imaginário popular, coletivo e individual, sempre tiveram espaço assegurado e serviram de base nas reedições/atualizações dos cordéis. A partir de uma concepção simbólica da imaginação, partimos das palavras de Durand (2002) para quem o imaginário é «uma rede de todas as imagens que estruturam os modos de viver (e de sonhar) do homem em sociedade» (p. 25).

Do berço desse imaginário coletivo emergem as imagens arquetípicas, conceituadas de acordo com Jung (2016) como «formas mentais cuja presença não encontra explicação alguma na vida do indivíduo e que parecem, antes, formas primitivas e inatas, representando uma herança do espírito humano» (p. 82). O arquétipo é um conceito complexo da psicologia que nos serve como protótipo, matriz, ou ainda modelo ou impressão remota sobre algo, podendo representar padrões de comportamento dos indivíduos na sociedade. As imagens carregam consigo uma representação; enquanto símbolo, elas se fazem molas propulsoras que impulsionam o imaginário, uma vez que «todo pensamento repousa em imagens gerais, os arquétipos, “esquemas ou potencialidades funcionais” que determinam inconscientemente o pensamento» (Durand, 2002, p. 30).

Com um olhar para a diversidade cultural, Durand (2002) designou a investigação dos arquétipos fundamentais da imaginação humana. Em As Estruturas Antropológicas do Imaginário, o autor apresenta, inicialmente, duas dimensões de estudo. O primeiro é o princípio do regime diurno da imagem, que abrange uma estrutura heroica ou esquizomorfa, delineada pela verticalização humana e o estado permanente de vigilância do homem em relação ao medo da morte. Fazem parte desse esquema imagético símbolos de ascensão, de prontidão para a luta, as armas, o desejo de subir, voar, a luz, etc., imagens ressignificadas pela tradição literária através das inspirações de combate das novelas de cavalaria, por exemplo.

O segundo princípio é o regime noturno da imagem que se apresenta subdividido em: i) estrutura mística: também conhecida como antifrásica, construída num tom de assimilação de elementos tenebrosos e aceitação do tempo e da morte. Seus símbolos evidentes são: o descer, o penetrar, o acoplamento, a fecundidade feminina, o descanso, a digestão, as trevas, etc.; e a ii) estrutura sintética ou dramática, delineada com duas faces do tempo, uma trágica e outra triunfante, isto é, a decida e/ou a subida, o equilíbrio entre ambas. Pertencem a essa esfera símbolos cíclicos e messiânicos, bem como mitos de progresso, a cruz, a árvore e o ato sexual.

Uma vez que as narrativas míticas se constroem como histórias que agregam valor e fundamento à vida humana e apontam para o inconsciente coletivo de um povo, conforme Rodrigues (2014b), compreendemos que esses signos/símbolos, retratados com expressividade na literatura de cordel, permitem a materialização/incorporação do sentido no texto da cultura popular e a reprodução/atualização do imaginário coletivo por meio da própria imaginação criadora do povo nordestino. Dessa forma, ao enveredarmos pela dimensão simbólica e do imaginário, na análise do corpus de nossa pesquisa, investigaremos ao mesmo tempo, os fenômenos sociais e suas significações a partir do contexto histórico-cultural que permeia as crenças do povo, suas manifestações e a sua forma de viver em sociedade. A seguir, afinaremos um diálogo sobre o campo de estudo da intermidialidade, visto que consideramos o cordel uma mídia popular que se oferece como objeto de estudo fértil e considerável para pesquisas na área transmidiática.

3. Intermidialidade e dialogismo intertextual

As pesquisas em torno do conceito de intermidialidade ganharam ímpeto a partir da segunda metade do século xx, frente aos novos paradigmas sócio-históricos e culturais que se estabeleciam no campo das mídias de comunicação. Como inter-relação entre diferentes mídias, o termo demonstra ser bastante recente ao se levar em conta que o fenômeno já era observado desde a antiguidade clássica em todas as culturas. Décadas antes do nascimento de Cristo, o famoso poeta romano Quinto Horácio (2005, p. 65) já trazia essa ideia ao expressar que «a pintura é como a poesia» - Ut pictura poesis. Para o especialista em estudos interartes, Clüver (2007, p. 6), intermidialidade «implica todos os tipos de inter-relação e interação entre mídias». O autor admite que é preciso, antes de tudo, ter a noção do que se entende por mídia. Para ele, «a determinação da mídia é um ato interpretativo que antecipa a interpretação do texto» (Clüver, 2007, p. 10).

Tendo em vista que todos os textos, em essência e contextura, são intertextos, o semioticista Barthes (2004) aponta para o sujeito leitor como elemento primordial para a compreensão e a tessitura textual. Para o autor: «um texto é feito de múltiplas escritas, elaboradas a partir de diversas culturas e ingressante em uma relação mútua de diálogo, [...] o leitor é o espaço em que todas as citações que constituem a escrita são inscritas sem que nenhuma delas se perca; a unidade do texto não reside na sua origem, mas em seu destino» (Barthes, 2004, p. 64).

Nessa linha de pensamento, Clüver (2007) apresenta como exemplificação a ideia que se tem acerca do conceito da mídia pintura, observando sua recepção e diferenciação de outras mídias. Ele nos lembra que, assim como a conceituação de pintura, e sua configuração enquanto mídia, dependem «de contextos, convenções e práticas culturais», o termo mídia também se edifica como «uma construção cultural, resultado de circunstâncias históricas e ideológicas» (p. 10). Segundo Ramazzina-Ghirardi (2022), essa «inter-relação entre diferentes mídias permite expandir as possibilidades de narrativas tradicionais». Para a autora, a extensão transmídia é «a expansão de um texto fonte, que funciona como mídia central», fazendo emergir «uma nova estrutura narrativa» (p. 95).

Figueredo (2017) enriquece esse debate ao argumentar que o conceito de narrativa transmídia, sob a perspectiva da intermidialidade, possibilita alterar relações entre o conteúdo e os aspectos narrativos, assim como sua relação com o receptor. Para ela, «a transmídia vai além de uma temática ou estética presente em vários produtos de mídia individual [...], pela propagação de personagens, enredos e mundos, ela cooperaria na construção de universos ficcionais extremamente complexos, multimidiáticos e coesos» (Figueredo, 2017, pp. 72-73). Atualmente, como Pinto (2017) assevera, a concepção teórica da intermidialidade «passou a abarcar a transição entre o espaço literário e a imagem em movimento, como numa metamorfose» (p. 16). Desse modo, Clüver (2008) esclarece que a intermidialidade se definirá como «um fenômeno abrangente que inclui todas as relações e todos os tópicos e assuntos tradicionalmente investigados pelos Estudos Interartes» (p. 224). Para o autor, os fenômenos transmidiáticos são tratados como uma espécie de narratividade em que o leitor e os aspectos intermidiáticos das intertextualidades são inerentes aos textos.

Dessa forma, o fenômeno intermídia é pensado num sentido amplo, para além de uma simples relação entre textos, transpassando as linguagens possíveis e imagináveis do campo literário, musical, da dança, da pintura, do cinema, da ópera, entre outras formas mistas de arte, chegando à inter-relação entre mídias e seus (con)textos. Ao discorrer sobre os desafios da arte contemporânea e o interesse nas investigações intermidiáticas, a autora Irina Rajewsky (2012) deixa claro que a intermidialidade pode ser pensada de diferentes maneiras. Seu conceito pode ser aplicado de uma forma ampla, interdisciplinar, com foco em seu aspecto transmidiático, propiciando, assim, diferentes «visões sobre o cruzamento das fronteiras entre mídias e a hibridização» (Rajewsky, 2012, p. 16).

No entanto, a autora se posiciona em relação a uma concepção particular de intermidialidade que se baseia, num primeiro momento, nos estudos literários, todavia não se limitando a eles. Para Rajewsky (2012), os estudos intermidiáticos podem abranger tanto uma abordagem sincrônica quanto diacrônica de pesquisa. Pelo viés de um sentido mais restrito de intermidialidade, a autora expõe sua abordagem seguindo uma vertente sincrônica ao analisar concretamente os textos ou «outros tipos de produtos das mídias» (p. 24). Assim, a autora elenca três subcategorias, desenvolvendo uma categoria uniforme para cada uma delas:

i) intermidialidade no sentido mais restrito de transposição midiática (por exemplo, adaptações cinematográficas e romantizações): aqui a qualidade intermidiática tem a ver com o modo de criação de um produto, isto é, com a transformação de um determinado produto de mídia (um texto, um filme, etc.) ou de seu substrato em outra mídia; ii) intermidialidade no sentido mais restrito de combinação de mídias, que abrange fenômenos como ópera, filme, teatro, performance, manuscritos com iluminuras, instalações em computador ou de arte sonora, quadrinhos, etc; iii) intermidialidade no sentido mais restrito de referências intermidiáticas, por exemplo, referências, em um texto literário, a um filme, através da evocação ou da imitação de certas técnicas cinematográficas (Rajewsky, 2012, pp. 24-25).

Ao propor essas subcategorias na teorização das práticas midiáticas, Rajewsky (2012) deixa claro que é possível, a depender das relações que se estabelecem, o entrecruzamento de duas ou mais formas de intermídia. Diante desse emaranhado de conceituações em torno do assunto, entendemos que as pesquisas desta área devem enveredar pela necessidade de aprofundar e definir as extremidades e fronteiras dos estudos intermidiáticos. Nosso objetivo aqui não é trazer uma nova luz, definindo algo sobre o tema, senão fomentar essa reflexão aplicando os conceitos construídos ao corpus que pretendemos analisar: a literatura de cordel.

À medida que as referências intermidiáticas são debatidas, teoriza-se também a ideia de intertextualidade, uma vez que há uma estreita relação entre os conceitos (Rajewsky, 2012). Conforme Brait (2001), acreditamos que «uma dimensão semiótica da intertextualidade reforça aspectos sociais que estão presentes no texto» (p. 72). Isso mostra que a intertextualidade é a própria essência para as práticas intermidiáticas. Clüver (2008) corrobora com essa ideia ao dizer que «teorias de intertextualidade resultaram na percepção de que intertextualidade sempre implica intermidialidade, porque pré-textos, inter-textos, pós-textos e para-textos sempre incluem textos em outras mídias. Um só texto pode ser objeto rico para estudo da intermidialidade» (p. 222).

Sob tal constatação, Jost (2006) sugere uma tripla intermidialidade, ao expor que o movimento entre as mídias, enquanto prática de linguagem, permite a troca de saberes essenciais para os estudos contemporâneos. Para ele, «a intermidialidade tem, portanto, três sentidos e três usos interessantes para o pesquisador: a relação entre mídias, a relação entre os meios de comunicação e a migração das artes para os meios de comunicação» (Jost, 2006, p. 41). Já Müller (2012) apresenta algumas reflexões em torno dos princípios básicos de intermidialidade. O autor afirma que a partir dos anos 70 vários fenômenos foram incluídos como sendo processos intertextuais, sendo recentemente enquadrados como processos intermidiáticos. Assim «o enfoque recaiu sobre questões de materialidade e produção de sentido, sobre características dos processos intermidiáticos e funções sociais» (p. 85).

Kristeva é referência quando se fala em intertextualidade. Com um olhar para as ideias barthianas, a autora argumenta que um texto é uma construção de citações, um mosaico que absorve e transforma-se, que se abre para outros textos, outros símbolos e códigos. A autora explica que Bakhtin foi o primeiro estudioso a introduzir na teoria literária a ideia que «todo o texto se constrói com mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto» (Kristeva, 2012, p. 146). Diante disso, temos em Rajewsky (2012) que a intermidialidade foi idealizada a partir do conceito de dialogismo de Bakhtin (2016) e da teoria da intertextualidade de Júlia Kristeva.

No entanto, autores como Bezerra (2011, p. 15) argumentam que o termo intertextualidade não pode ser usado como sinônimo de dialogismo. Para o crítico, num primeiro momento, de forma superficial, é possível encontrar essa relação intertextual. Porém, do ponto de vista bakhtiniano, as relações dialógicas se dão entre vozes que pertencem a sujeitos situados no tempo e no espaço, e não apenas entre textos, ou seja, para o autor, dizer que a intertextualidade é uma forma de atualização do dialogismo seria empobrecer as ideias de Bakhtin. De acordo com Bezerra (2011, p. 13), a perspectiva de Kristeva acaba confundindo, uma vez que ao conceituar intertextualidade a autora se fundamenta no apagamento do sujeito. Ora, as relações dialógicas propostas por Bakhtin se dão na interação entre os sujeitos. De fato, a conceituação de intermidialidade e sua interface intertextual ainda vai gerar muitos debates no âmbito dos estudos midiáticos.

Stam (1992), teórico de cinema americano que trabalha com a Semiótica Cinematográfica, explica-nos que «a concepção de “intertextualidade” (versão de “dialogismo”, segundo Julia Kristeva) permite-nos ver todo texto artístico como estando em diálogo não apenas com outros textos artísticos, mas também com seu público» (p. 34). No capítulo intitulado Do texto ao intertexto, presente na obra Introdução à teoria do cinema (Stam, 2003), o autor se expressa que,

Em seu sentido mais amplo, o dialogismo intertextual se refere às possibilidades infinitas e abertas produzidas pelo conjunto das práticas discursivas de uma cultura, a matriz inteira de enunciados comunicativos no interior da qual se localiza o texto artístico, e que alcançam o texto não apenas por meio de influências identificáveis, mas também por um sutil processo de disseminação. (p. 226)

Corroborando com alguns pontos levantados por Stam, Hutcheon (2011), autora conhecida por suas influentes teorias do pós-modernismo, apresenta uma proposta para pensar as relações dialógicas e intertextuais a partir das adaptações. Para ela, a adaptação pode ser um processo de apropriação, uma nova criação com aspectos diferentes, é claro. Essa transposição declarada de uma obra já existente pode mudar, a depender do contexto ou da representação sígnica que a envolve. Como processo receptivo é também uma forma de intertextualidade, não implicando diretamente em fidelidade ou proximidade com a obra de partida.

Ao focar o meio em que se produz uma adaptação, Hutcheon (2011), sob o prisma de dois fundamentos - produto e processo -, argumenta que o ato de adaptar um texto se vincula com sua audiência através de três modos distintos: a história contada, a mostrada e aquela em que existe interação. Para a autora, estes três modos observam o tempo, o espaço, a sociedade e a cultura. Dessa forma é compreensível o fato pelo qual as adaptações produzidas há algum tempo são recepcionadas e interpretadas de diferentes formas em nossos dias. Dito isto, consideramos primordial o recorte teórico, as ideias e conceituações discorridas até aqui, tendo em vista a análise das mídias impressas que desejamos empreender a seguir.

4. Entre textos, imagens e símbolos: a plasticidade cultural do cordel

Circula no meio popular uma célebre frase atribuída a Confúcio, renomado pensador político e filósofo chinês: uma imagem vale mais que mil palavras2. De fato, as imagens têm grande poder persuasivo nas escolhas que fazemos das coisas no dia a dia. Não é à toa que grandes empresas exploram comercialmente nossos sentidos através de estratégias visuais sedutoras de marketing. As imagens fascinam a humanidade desde o tempo da pré-história, quando as figuras rupestres já expressavam a necessidade humana de se comunicar através de signos não verbais. Platão, por meio do Mito da Caverna, chegou a nutrir certa desconfiança nas imagens, visto que, para ele, elas podem ser fontes de puro engano e ilusão. No entanto, elas também têm o poder de eternizar as figuras de deuses, santos e heróis que se tornaram atemporais pelas imagens que ilustram seus feitos/poderes.

Levando em consideração a arquitetura das imagens de capa dos folhetos de cordel, verifica-se que a dimensão simbólica da xilogravura como documento visual (tradição medieval, de herança oriental, que se desenvolveu vivamente no Brasil) é um dos elementos que mais chama a atenção dos leitores/consumidores de cordel, servindo como uma espécie de técnica de prolepse visual, recurso semiótico que amplia a produção de efeito de sentido para a compreensão da mensagem-síntese que o poeta esboça na capa, e que ecoa na trama narrativa. De acordo com Genette (1995), a prolepse é uma técnica narrativa que consiste em contar parcialmente ou evocar antecipadamente um acontecimento de relevância constituinte da obra. Isso faz com que a curiosidade do leitor seja despertada, antecipando um conhecimento imediato dos acontecimentos, ainda que de forma superficial, mas que prende o público leitor/ouvinte em pormenores pertinentes que apontam para o clímax ou mesmo para o desfecho da narrativa. Segundo Lopes (1982) «a xilogravura - arte de gravar em madeira - é de provável origem chinesa, sendo conhecida desde o século vi. No ocidente, ela já se afirmava durante a Idade Média, através de iluminuras e confecções de baralhos. Mas, até aí, a xilogravura era apenas uma técnica de reprodução de cópias» (p. 16).

No Brasil, a literatura de cordel e a xilogravura são como duas faces de uma mesma moeda, constituindo uma combinação singular de mídias. A arte xilográfica remonta aos povos da antiguidade, como os persas, indianos e egípcios, que a utilizavam para estampar tecidos. Os chineses e japoneses utilizavam-na como uma espécie de carimbo nas impressões de orações budistas. Porém, essa relação com o cordel em território brasileiro é bastante recente, uma vez que estamos falando de duas formas artísticas distintas que se uniram em prol do desenvolvimento de ambas, especificamente entre as décadas de 1930 e 1940, quando se teve a necessidade de registro da literatura cantada. Antes disso, ao chegar por aqui com a Família Real Portuguesa, a arte servia para ilustrar capas de livros e anúncios.

4.1. Um olhar para as imagens de capa dos folhetos

Inicialmente, em contexto brasileiro, as capas dos folhetos de cordel eram elaboradas praticamente em preto e branco, sem imagens, com destaque para o título e o local de venda e/ou anúncios (figura 1). Posteriormente se fez uso, tradicionalmente, de ilustrações com xilogravuras (figuras 2, 7 e 8). De acordo com Santos (2014), no processo de desenvolvimento do cordel, no Brasil, foram configuradas diversas outras formas de composição arquitetônica das imagens de capas, sendo identificadas em formatos de: desenho (figura 3), fotografia (figura 4), xerox de fotografia (figura 5), sistema de impressão off-set (figura 6), com mesma imagem e títulos diferentes (figuras 7 e fig. 8), ou vice-versa, entre outras possibilidades.

Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Figura 1: Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Figura 2: Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Figura 3: Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Figura 4: Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Figura 5: Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Figura 6: Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Figura 7: Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Figura 8: Configurações das imagens de capa dos folhetos de cordel

Atualmente, muitos artistas populares ganham a vida como xilógrafos. Destacamos a contribuição de José Costa Leite (1927-2021), paraibano da cidade de Sapé que foi reconhecido como um dos mais importantes xilógrafos e gravuristas do Brasil. Ele exerceu com maestria múltiplas funções ligadas à literatura popular: foi poeta, ilustrador, editor e vendedor de suas produções nas feiras e em eventos culturais e científicos realizados em universidades. O autor reúne em seu acervo pessoal o mais extenso agrupamento de obras de literatura de cordel em número de títulos. Sua folheteria ficou conhecida como A voz da Poesia Nordestina. Como escritor inventivo, escreveu mais de 500 títulos, sendo os mais conhecidos: A Carta misteriosa do Padre Cícero Romão Batista, O dicionário do amor, Os dez mandamentos, Eduardo e Alzira, O rapaz que virou bode, ABC do beijo, Passeio a São Saruê, entre outros que se tornaram sucesso de vendas.

José Costa Leite expondo suas produções/Cordel «Lampião fazendo o diabo chocar um ovo»

Figura 9: José Costa Leite expondo suas produções/Cordel «Lampião fazendo o diabo chocar um ovo»

José Costa Leite expondo suas produções/Cordel «Lampião fazendo o diabo chocar um ovo»

Figura 10: José Costa Leite expondo suas produções/Cordel «Lampião fazendo o diabo chocar um ovo»

Como xilógrafo, José Costa Leite conta com mais de 645 matrizes de ilustrações em xilogravuras que serviram para ilustrar suas produções, bem como folhetos de outros poetas, e ainda livros e demais objetos culturais. Suas xilogravuras ganharam o mundo, recebendo premiações, por exemplo, na França. Em 1960 suas produções passaram a ser publicadas em álbuns e expostas em museus e vitrines de eventos culturais, alcançando status de obra de arte. Seus temas mais recorrentes versam sobre o contexto social em que está inserido, retratando a vida do homem no campo, as tradições culturais, a luta pela sobrevivência no semiárido, a religiosidade cristã, etc.

Na figura 10, a imagem de capa do folheto Lampião fazendo o Diabo chocar um ovo, de autoria de José Costa Leite (s/d), traz a representação de um imaginário coletivo ligado à tradição nordestina. Lampião que, para muitos, atualiza o mito do herói no cangaço, com características que o evidenciam como um ser alusivo ao regime diurno da imagem (bravura, disposição para lutar, maneja bem a arma [Durand, 2002]), também figura como imagem do nordestino, homem violento, temível, comparado ao Diabo, por isso condenado ao inferno. Na ilustração de capa, o Diabo, com chifres e rabo pontiagudo, oferece recurso para retomada de memórias coletivas cristalizadas a respeito de sua imagem no discurso religioso cristão: o originador do mal, não sendo uma figura uniforme, mas que frequentemente aparece revestido de muitas características da condição humana.

Estudos recentes (Silva e Rodrigues, 2022) apontam para o fato de que a arte da xilogravura está adentrando cada vez mais outros territórios, deixando de se apresentar com exclusividade apenas nas capas dos folhetos de cordel, como era tradição. Basta observamos as galerias de arte espalhadas pelo país e em outras partes do mundo, ganhando a atenção especial dos pesquisadores em cultura popular e nas academias, por suas possibilidades estéticas e criativas. É um olhar para a tradição revestida/ressignificada no contemporâneo, a partir de sua transposição para outros suportes. «Hoje, o uso da xilogravura é justamente para demonstrar tradição, uso folclórico, uma vez que as mudanças de paradigmas reorganizam, reajustam e refuncionalizam novas práticas, recriando e replicando novos contextos de produção» (Silva e Rodrigues, 2022, p. 193).

Um exemplo dessa valorização instaurada, a partir do status de prestígio, próprio do cordel (Rodrigues, 2011), pode ser observado no designer da ilustradora brasileira Marianna Steffens, isto é, na adaptação/retextualização (Hutcheon, 2011) das capas da série de livros de fantasia épica, intitulada As Crônicas de Gelo e Fogo (A Song of Ice and Fire). As capas dos livros lembram folhetos de cordel com ilustrações em xilogravuras, ressignificando a técnica rudimentar tradicional agora para a edição de livros. A narrativa épica foi redigida pelo romancista e roteirista estadunidense George R. R. Martin e já foi adaptada para diversos formatos, como videogames, histórias em quadrinhos e para a série de TV, Game of Thrones, levada à tela pela HBO, em abril de 2011.

Imagens de capas da série «As Crônicas de Fogo e Gelo», em xilogravura

Figura 11: Imagens de capas da série «As Crônicas de Fogo e Gelo», em xilogravura

Imagens de capas da série «As Crônicas de Fogo e Gelo», em xilogravura

Figura 12: Imagens de capas da série «As Crônicas de Fogo e Gelo», em xilogravura

Imagens de capas da série «As Crônicas de Fogo e Gelo», em xilogravura

Figura 13: Imagens de capas da série «As Crônicas de Fogo e Gelo», em xilogravura

Imagens de capas da série «As Crônicas de Fogo e Gelo», em xilogravura

Figura 14: Imagens de capas da série «As Crônicas de Fogo e Gelo», em xilogravura

A saga original da série conta com mais de cinco volumes publicados, sendo o primeiro livro lançado em 1996, alcançando a marca de mais de 90 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. À medida que há uma movência entre mídias (da capa de livros seriados para a xilogravura, fenômeno comum na tradição dos folhetos de cordel), transpõe-se também os espaços intermidiáticos, por meio da plasticidade cultural (Rodrigues, 2011; 2013, 2017) que atua na produção de efeitos de sentidos diversos. Há um incontestável diálogo que reúne os amantes da série (televisiva ou da série de livros) com os que apreciam e se identificam com símbolos da cultura popular: o cordel.

Mais adiante, observamos outros espaços de produção de sentido e mídias que se beneficiam da tradição do cordel. Essa constatação também é percebida nas reelaborações de xilos presentes em peças decorativas, vestuário, quadros e azulejos, agregando à arte moderna valor de tradição. Recentemente, verificamos que tanto o cordel quanto a xilogravura foram destaques em programas televisivos como os retratados nas figuras seguintes:

Juliette - quarto cordel - Big Brother Brasil 2021; Bráulio Bessa - Programa Encontro - Rede Globo

Figura 15: Juliette - quarto cordel - Big Brother Brasil 2021; Bráulio Bessa - Programa Encontro - Rede Globo

Juliette - quarto cordel - Big Brother Brasil 2021; Bráulio Bessa - Programa Encontro - Rede Globo

Figura 16: Juliette - quarto cordel - Big Brother Brasil 2021; Bráulio Bessa - Programa Encontro - Rede Globo

Na figura 15, temos uma cena do reality show Big Brother Brasil 21, exibido pela Rede Globo de Televisão, em que as xilogravuras tematizaram o quarto cordel. No episódio, a vencedora da temporada, a paraibana Juliette, ensina para um dos participantes o que é a xilogravura e a importância do cordel para o povo nordestino. A figura 16 traz uma cena da performance vocal do poeta Bráulio Bessa, em uma de suas apresentações no quadro Poesia com Rapadura, do Programa Encontro (Rede Globo de Televisão), apresentado, na época, por Fátima Bernardes.

Nas duas situações, encontramos elementos simbólicos que se constituem objetos de memória (Rodrigues, 2018) da cultura popular nordestina (o vaqueiro/aboiador, o cavalo, os cactos, a xilo estampada na camiseta de Bráulio Bessa, homenageando o poeta Patativa do Assaré, ilustre representante da poesia matuta) que apontam para a identidade e o imaginário em que os artistas se inserem e que representam, servindo de inspiração para atualizar os sentidos presentes no entrecruzamento das mídias: a TV e o folheto. À medida que o cordel e a xilogravura se movem (transpõem-se midiaticamente), atuam como instrumentos que legitimam a cultura e ressignificam espaços televisivos mediante o valor da tradição popular cordel (Rodrigues, 2013).

Como observado, enquanto nos meios digitais a cultura popular e o cordel ganham vez e voz, e se beneficiam de novos suportes de texto, as xilogravuras, valorizadas também em outros espaços culturais, dão lugar às capas sofisticadas e super elaboradas, a partir do uso das ferramentas digitais contemporâneas que dinamizam expressivamente o processo de produção dos folhetos. Modernizam-se, assim, o estilo e a linguagem dos cordéis, incrementando-se cores e formas diversificadas na configuração arquitetônica dos folhetos. Este dinamismo é fruto da plasticidade que opera em prol da manutenção das vozes que o cordel atualiza, o que não pode ser encarado, jamais, como um retrocesso dos valores da tradição: «[...] o cordel ainda é um elemento textual e discursivo, uma mídia impressa que traz a voz e dá voz à sociedade e aos sujeitos que estão por trás dessas produções» (Rodrigues, 2013, p. 257). O novo atualiza a tradição e alcança-se novos públicos, uma vez que a leitura de um cordel, seja em suporte digital ou impresso, torna-se mais interativa, permitindo o encontro de vozes que une tradição e modernidade no contexto atual.

4.2. Entre criação e apropriação: questões de autoria

Assim como os contos populares, as narrativas impressas nos folhetos de cordel vão sendo repassadas de geração a geração, sofrendo as metamorfoses e adaptações próprias do contexto histórico. Muitas dessas histórias não têm autorias definidas. Elas são de domínio coletivo e fazem parte de uma memória de tradição oral, atualizando-se conforme os ditames de cada época. No universo da literatura popular, especificamente no campo editorial, encontramos muitos poetas populares que se reconhecem como cordelistas, alguns com tradição no repente, e outros com o domínio da arte da xilogravura, tornaram-se ilustradores de capas tanto de seus folhetos quanto dos produzidos por outros poetas populares. Isso acontecia principalmente devido a fatores econômicos, evitando-se gastos desnecessários com encomendas a um xilógrafo. Nesse ínterim, Abreu (1999) afirma que, «não obstante, os poetas preocupavam-se com questões de direitos autorais e de propriedade dos textos, pois viviam das vendas e das suas composições. Por isso, imprimiam seus nomes na capa e na primeira página dos folhetos, estampavam seus retratos, utilizavam acrósticos nas estrofes finais» (p. 98).

No início do século xx, a questão autoral dos folhetos de cordel era bastante desrespeitada no Brasil, omitindo-se as autorias ou pseudônimos originais, bem como alterando-se versões de narrativas conhecidas. Muitos poetas chegavam a vender seus direitos através de uma licença, ou ainda de uma transferência para editoras ou outros cordelistas. João Martins de Athayde (1980-1959), por exemplo, foi um grande poeta e editor que contribuiu muito para a divulgação dessas escrituras em sua época, adquirindo o direito autoral das obras de grandes nomes da literatura de cordel, como as de Leandro Gomes de Barros.

Tomemos o caso de O Romance do Pavão Misterioso, ora de autoria de José Camelo de Melo Rezende (1885-1964) ora de João Melquíades Ferreira (1869-1933). A obra possui mais de 50 reedições. Sabemos que Rezende, como um exímio repentista, criava suas histórias fantásticas e as guardava na memória, para recontá-las em suas apresentações. Como muitas dessas narrativas não eram registradas, há relatos que seu parceiro de cantoria, Romano Elias, cantou uma versão da narrativa de O Pavão Misterioso para João Melquíades, poeta de Bananeiras - PB, conhecido como o Cantador da Borborema.

Melquíades era um homem de posses, ligado ao exército e prontamente se apossou dos originais da história, registrando-a pela primeira vez numa versão mais resumida (32 páginas) e publicando-a como sendo de sua autoria, algo comum na época. Entre os poetas, não houve, de fato, uma disputa por direitos autorais, pois na época era mais relevante que as obras fossem difundidas e consumidas pelo público. Essa concorrência era comum entre as editoras. Posteriormente, Rezende publicou uma versão do clássico com mais detalhes (42 páginas), vindo a se tornar um dos maiores sucessos da literatura de cordel. A seguir, veremos como essa narrativa clássica relaciona imagens e símbolos, próprios do imaginário popular, suscitando um processo multissemiótico que torna fértil o território de produção de sentidos dos folhetos de cordel, a partir de abordagens em torno de fenômenos socioculturais intermidiáticos.

4.3. Imaginário e intermidialidade em O Romance do Pavão Misterioso

Os romances medievais, ou novelas de cavalaria, possuem como particularidade a construção de narrativas heroicas e mitológicas, caracterizadas por romantismo platônico em que cavaleiros e donzelas vivem um amor cortês proibido. Com raízes na oralidade, essas histórias foram difundidas expressivamente na idade média, na época do trovadorismo, tendo espaço de tradição garantido nas reedições/atualizações da literatura de cordel. Constatamos que essas ideias serviram de alicerce para a produção de O Romance do Pavão Misterioso (Rezende, 2011), romance que celebra seu centenário neste ano de 2023 e traz em seus versos a história de amor entre Evangelista e Creuza.

Evangelista almeja conquistar o amor da princesa Creuza (jovem intocável) pela qual se apaixonou através de uma fotografia trazida como presente por seu irmão, João Batista, da Grécia. Para tanto, o protagonista viaja para o lugar em que vive a princesa e encomenda uma máquina voadora em forma de pavão, com o desejo de alcançar o sobrado do castelo e raptar a moça. Contudo, a donzela vive debaixo da tirania do pai, um conde arrogante que expõe a filha para o povo como uma relíquia, uma vez a cada ano. Com suas características tipicamente romanescas, a narrativa de Rezende toma como referência midiática os contos de fadas tradicionais.

No início do enredo, o leitor é seduzido a adentrar o universo fantástico e o clima de mistério da trama. Certamente, a obra foi inspirada num emaranhado intertextual como, por exemplo, na ideia de um tapete voador, objeto fantástico da história de Aladim e a lâmpada mágica, dos contos das Mil e uma noites, da lendária rainha Persa, Sherazade. Franklin Maxado (2007) afirma que «O Pavão Misterioso, [...] quiçá, seja a atualização do tapete, quando Santos Dumont experimentava o balão na Europa» (p. 20). Atentando para a performance representativa que identifica o arquétipo do herói, observamos que Evangelista traz em si as marcas do herói das narrativas medievais, retratadas a partir da paixão ardente/delirante dele pela donzela que se mostra, de início, inalcançável. A obra é construída em forma de sextilhas, estrutura popularizada entre os repentistas. A seguir destacamos alguns versos da narrativa de Rezende (2011):

Quando Evangelista viu O brilho da boniteza Disse: Vejo que meu mano Quis me falar com franqueza, Pois essa gentil donzela É rainha da beleza (p. 09). Então disse o jovem turco: -Muito obrigado fiquei Do pavão e dos presentes Para a lutar me armei! Amanhã, à meia-noite, Com Creuza conversarei (p.13)

No destaque, percebemos que o arquétipo do herói chega até nossos dias, ressignificado, simbolicamente, a partir da performance de Evangelista na narrativa. Caso evidenciado também através da coragem (valentia/heroísmo) para salvar a princesa Creuza da tirania e opressão do pai, o qual a privava da liberdade desde que nasceu. Esses heróis, criados pela imaginação mística, fantástica ou religiosa (Jung, 2016), estão sempre preparados para a luta, combatendo e enfrentando as forças opressoras do mal. O herói tem prontidão e a arma certa para lutar, isto é, o pavão misterioso/tecnológico, que voa (objeto ascensional) e se coloca como adjuvante no seu percurso narrativo, revelando marcas próprias que delineiam o regime diurno/solar do imaginário (Durand, 2002). Entrementes, é interessante o fato apresentado por Joseph Campbell, pesquisador norte-americano de mitologia e religião comparada, o qual apresenta uma visão de herói contemporâneo para além das características físicas da humanidade. «O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas, pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas» (Campbell, 2007, p. 28).

A jovem princesa Creuza, filha do conde soberbo, carrega consigo uma beleza esplêndida, revestida de inocência e pureza virginal. «É a moça mais bonita, que há no tempo presente» (Rezende, 2011, p. 3); de acordo com Jung (2014), a donzela representa a parte feminina do herói, a anima, e seu resgate performatiza-se como a libertação dos aspectos devoradores da mãe. Nesse ínterim, a escritora paraibana Clotilde Tavares se inspirou na narrativa de Rezende para adaptar em sua obra, A botija, uma versão de O Romance do Pavão Misterioso, em prosa. Nessa obra, a autora descreve com detalhes como era a beleza de Creuza:

Era a Beleza, a Formosura, o Alumbramento. Possuía todos os dezoito sinais de beleza que a mulher deve ter, segundo a tradição antiga, para ser considerada formosa [...], tudo isso tinha Creuza e muito mais, pois não era somente a beleza física. Dela emanava uma graça sem par, inefável, angélica. Ao mesmo tempo, exalava uma feminilidade tão poderosa, que todos os homens que a olhavam desejavam ter não uma, mas cem vidas, para consagrá-las todas à sua admiração, à sua contemplação (Tavares, 2006, pp. 78-79).

Dona de uma beleza sem igual, Creuza evoca a imagem das princesas dos contos de fadas, como a Branca de Neve (beleza) e a Rapunzel (vive seus dias presa numa torre). No romance, o conde, como o antagonista, rememora uma tradição regionalista caraterizada pela submissão das mulheres ao patriarcado. Remonta ainda a imagem dos coronéis, sujeitos comuns nas práticas políticas desde os tempos imperiais na região Nordeste. Já em Edmundo, o engenheiro contratado por Evangelista para produzir seu maquinário fantástico, encontramos nuances do arquétipo do velho sábio (Jung, 2014), figura mitológica que ajuda o herói com seu conhecimento e sabedoria; uma espécie de Mestre dos Magos, figura emblemática do lendário desenho animado Caverna do Dragão.

Com esse engenhoso objeto misterioso em formato de pavão, Evangelista sobrevoa o alto do palácio, onde Creuza dormia. Depois de algumas tentativas frustradas, o herói consegue ganhar a confiança da jovem e a liberta de sua prisão. A fuga dos amantes se dá de forma fabulosa. Juntos, retornam para a Turquia. Algum tempo depois, já casados, ficam sabendo da morte do pai tirano; a convite da mãe de Creuza, eles retornam para a Grécia. À medida que a narrativa acontece, na Grécia e na Turquia, percebemos um entrecruzamento cultural, mas ao mesmo tempo uma aproximação com a simplicidade, a religiosidade e com os traços da organização patriarcal, típicos do povo sertanejo. Observamos, ainda, a capacidade de resolver situações problemáticas (uso da inteligência e da esperteza) representada pelo herói ao enfrentar o antagonista e salvar a princesa.

O pavão voador é o objeto fundamental da ação do herói, o auxiliador direto, objeto necessário para que a jornada de Evangelista alcance êxito. É o cavalo do herói, semelhante ao de São Jorge, ou mesmo, o cavalo alado Pégaso, figura emblemática da mitologia grega: «Meu cavalo anda nos ares» (Rezende, 2011, p. 25); ou ainda é figura do cavalo (alado?) do vaqueiro nordestino, o qual tem no animal a figura fantástica de o tapete voador, que o ajuda a enfrentar os conflitos diários do ofício no Semiárido. No discurso religioso, o pavão é associado ao Cristo imortal, pois simboliza a vitória sobre a morte e a ressurreição. Diante disso, consideramos primordial destacar a performance e algumas imagens construídas em torno do imaginário do pavão.

4.4. O Pavão Misterioso: ave plena de simbolismos, sedução e encanto

No imaginário universal, o pavão é associado a algumas divindades, como a deusa Juno da mitologia romana. Suas penas policromáticas apresentam padrões que figuram olhos e/ou estrelas. Sentimentos narcisísticos como a vaidade e o orgulho estão ligados à ave. Como forma de seduzir a fêmea da espécie, o animal abre e fecha suas penas em forma de leque (algo que também nos lembra a abóboda solar), numa espécie de dança sensual. A dança é um símbolo ritual que torna o corpo uma habitação mítica, aferindo um potencial que transita do sagrado ao profano (Eliade, 1992). Em cada cultura encontramos relatos que colocam em cena o pavão. Pelo brilho intenso da plumagem, no hinduísmo a ave é símbolo do céu e do astro maior, o sol - regime diurno/solar, estrutura heroica de acordo com Jung (2014); suas penas são como flechas, prontas para a batalha, assim como os raios do sol. Para os budistas, o pavão é símbolo do conhecimento que ilumina os que seguem a doutrina de Buda. Com o passar dos anos, vindo para o ocidente com comerciantes indianos, o pavão chega a Pérsia e a Arábia. Os textos bíblicos, no livro de ii Reis, registram a existência de pavões em terras hebraicas na época do rei Salomão, por volta de 1000 aC.

Na Grécia, a ave era apreciada por seus valores estéticos e simbólicos, apesar de não ser domesticável. Na mitologia grega, a plumagem do pavão representa Hera, filha de Kronos e Rheae, esposa e irmã de Zeus. Na Idade Média, a ave torna-se símbolo de imortalidade, ganhando contornos místicos ligados à religiosidade cristã, numa relação entre o pavão e Jesus Cristo. Outra semelhança do pavão com Cristo é que a ave é conhecida como inimiga das cobras, uma vez que Pavarani, o pavão de montaria de Skanda-Karttikeya (figura 17), deus da guerra, também é conhecido como o Matador de cobras. A cobra é símbolo do diabo, o qual é conhecido como “o grande dragão, a antiga serpente” (Apocalipse 12:9).

Skanda-Karttikeya e seu pavão Pavarani

Figura 17: Skanda-Karttikeya e seu pavão Pavarani

Imagem de capa do cordel O Pavão Misterioso

Figura 18: Imagem de capa do cordel O Pavão Misterioso

Longa metragem O resgate do Pavão Misterioso (2014), de Sílvio Toledo

Figura 19: Longa metragem O resgate do Pavão Misterioso (2014), de Sílvio Toledo

Considerando o fenômeno da plasticidade cultural, aplicado ao exame do corpus desta pesquisa, observamos que a singularidade da narrativa de Rezende (figura 18) influencia a criação de outras produções artísticas, como o filme O resgate do Pavão Misterioso (figura 19), de Silvio Toledo, lançado na Paraíba em 2014. Atualmente, a figura do pavão também protagoniza episódios permeados de enigmas e mistérios por meio de séries lançadas em streaming. É o caso da série Manifest: o mistério do voo 828 e Sagrada Família, ambas disponíveis na Netflix. A primeira conta a história dos passageiros de uma tripulação de um avião comercial dados como mortos e que retornaram depois de mais de cinco anos da decolagem, sem que o tempo houvesse passado para eles. Os protagonistas Bem Stone e sua irmã Michaela Stone (tripulantes do voo) enfrentam grandes desafios para descobrir os mistérios em torno do voo 828 e seus passageiros, os quais possuem chamados especiais, uma espécie de premunição ou visão do futuro. Alguns pensam que os passageiros foram ressuscitados para uma missão apocalíptica na terra. Como símbolo da imortalidade, o pavão continuadamente se revela, nesses chamados, a Bem Stone e seu filho Cal, o personagem-chave da trama.

Já a segunda série, Sagrada Família, constitui-se suspense baseado numa história real que põe em evidência as nuances da maternidade e os dramas familiares emergidos de um segredo perturbador que vem à tona a cada episódio. Quatro vizinhas se conhecem recentemente e constituem uma amizade, ainda que forjada. Algo em comum as liga: são mães. No seio de uma simbologia própria, a imagem da mãe sempre esteve ligada ao amor incondicional, à bondade e à proteção. Contudo, quando o passado da personagem Glória pouco a pouco se revela, as relações mudam drasticamente, revelando o quanto uma mãe é capaz de fazer para proteger o que ela tem de mais sagrado, sua família. De modo simbólico, a imagem do pavão aparece na abertura e a cada episódio da série, seja passeando numa rua, debaixo de uma árvore, em cima de um carro, ou ainda em forma de vitrais e mosaicos. Como vimos, a ave representava e era um dos animais de Hera (Juno, para os romanos). Por sua vez, Hera é conhecida como a deusa grega da família, responsável por proteger mulheres grávidas, simbolizando o nascimento e a fidelidade conjugal. Contudo, ela também é figurada como uma deusa ciumenta e vingativa. Certamente seja este imaginário simbólico que permeia e entrecruza a imagem do pavão e da maternidade de forma atualizada em Sagrada Família.

Por fim, evidenciamos ainda a canção Pavão Mysterioso, escrita pelo compositor cearense José Ednardo Soares, em 1974, época da ditadura em nosso país. «Pavão misterioso, pássaro formoso, tudo é mistério, nesse teu voar» (Ednardo, 1974). A música foi construída com um ritmo mais lento (novena) para demonstrar um tom de lamento, tendo em vista que suas entrelinhas possuem uma crítica contundente, denunciando o autoritarismo e a privação da liberdade na época. Interpretada por grandes nomes da música popular brasileira, como Ney Matogrosso e Elba Ramalho, a canção fez sucesso em todo Brasil ao se tornar trilha sonora da novela Saramandaia (Rede Globo de Televisão), escrita por Dias Gomes e exibida pela primeira vez em 1976. Na trama, uma das personagens, João Gibão, esconde em sua corcunda um par de asas. O ápice da participação da personagem se dá quando Gibão, por não ter aprendido a voar, atira-se do alto de uma torre da igreja de uma cidade do interior. Como no sonho de Ícaro, seu maior desejo sempre foi «Voar, voar, subir, subir, ir por onde for...» (Biafra; Piska; Claudio Rabello, 1984), desejo de ascensão - regime diurno do imaginário (Jung, 2014). A figura de ascensão atribuída ao voo dos pássaros criou no homem um forte desejo de alcançar os ares, inspirando autores/criadores de narrativas fantásticas em todos os tempos e lugares.

Como vimos nas mídias estudadas, a narrativa de Rezende (2011) não é diferente e acaba emprestando seu valor cultural, simbólico e imagético-figurativo para a criação de outras produções que servem a outros propósitos, seja para um protesto, como na música de Ednardo, ou ainda como entretenimento, a exemplo da novela Saramandaia. De fato, na tessitura de O Romance do Pavão Misterioso há um entrelaçamento intermidiático que bebe das narrativas medievais à própria estrutura mitológica que provém de histórias passadas, como o sonho de Ícaro, e deságua em narrativas midiáticas contemporâneas, isto é, no entrecruzamento linguístico-narrativo emergente na contemporaneidade, popularizado pelas tecnologias e plataformas de produção e divulgação de textos/discursos. Assim, há um deslocamento no tempo e no espaço que atualiza as diversas histórias (Rodrigues, 2017), que arquitetam o plano de conteúdo da obra em análise ao mesmo tempo em que condiciona valores de base fundamental (Rodrigues, 2006; 2011), que dão coesão aos sentidos do imaginário popular e ao inconsciente coletivo de vários povos (Jung, 2014).

5. Algumas considerações

Tendo em vista a dinâmica cultural contemporânea, concluímos que os estudos em torno da literatura de cordel e de suas nuances intermidiáticas estão em pleno processo de construção e ainda encontram terreno fértil para a pesquisa acadêmica, assim como o debate sobre o conceito de intermidialidade. Este trabalho trouxe um olhar semiótico para as produções da literatura de cordel e suas influências para a tessitura de novas mídias, por meio de adaptações/retextualizações que, como vimos, permitem que o cordel ressignifique histórias cotidianas que dimanam de recriações de romances tradicionais, contos orais e do imaginário coletivo. No caso de O Romance do Pavão Misterioso (Rezende, 2011), verificamos que sua movência/adaptação se deu em práticas contemporâneas, convertendo-se numa encarnação sígnica/simbólica e num verdadeiro evento semiótico tecido a partir de um sistema de signos socioculturais que significa por atualização da mídia ao contexto de ação do texto que é fruto da cultura popular de tradição oral.

A partir da ideia de plasticidade cultural nos domínios dos estudos semióticos, Rodrigues (2011; 2017) alarga as possibilidades de estudo do texto ao permitir o estudioso da linguagem enveredar por uma abordagem Semiótica Antropológica, aferindo relevância ao simbolismo e ao imaginário nos processos de significação e (re)criações textuais. Em nossos dias, o processo editorial e a materialidade do cordel se reformulam. De acordo com Melo (2022), há um «progressivo refinamento da publicação do cordel nas últimas décadas, sinalizado pela multiplicidade de sofisticados suportes, projetos gráfico-visuais, paratextos, editoriais, tipo de papel, técnicas de composição, ilustração e impressão, estratégias de circulação, divulgação e inserção dos textos no campo literário» (p. 12). Diante disso, conferimos que, ao longo da história, os poetas cordelistas buscaram, como fontes de inspiração para suas produções poéticas, os acervos midiáticos que detinham: de folhetins inspirados nas novelas de cavalaria, histórias orais, fábulas, personagens bíblicos, a jornais de TV e rádio, romances, histórias em quadrinhos e, mais recentemente, destacamos como atrativo as séries televisivas das plataformas de streaming que, por sua vez, inspiram-se em séries de livros (ou vice-versa) e fatos cotidianos.

A literatura de cordel cumpre de forma intrépida sua função social, política, histórica e cultural do povo nordestino. Em 2018, a arte recebeu o título de Patrimônio Imaterial do Povo Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Com isso, ampliou sua influência para além das fronteiras regionais, instituindo-se como gênero linguístico-literário que se recria e se move no tempo e no espaço a partir de materialidades e textualidades que emergem do meio impresso e/ou digital (Rodrigues, 2011). Vimos ainda que é possível associar a imagética de capa dos folhetos à arquitetura do enredo, por meio de processos de transposição, referência ou mesmo evocação simbólica, os quais amalgamam e transpassam linguagens e expressões culturais diversas, demonstrando o valor cultural e literário dessa produção artística de bordas (Santaella, 2020).

Dessa forma, histórias como a de O Romance do Pavão Misterioso (Rezende, 2011) põe em cena elementos do imaginário popular que revelam à humanidade suas próprias raízes, assim como símbolos de outros tempos e espaços que permanecem vivos em nossa memória, como por exemplo a retomada de arquétipos (o arquétipo da Donzela: figurado pela princesa Creuza; o arquétipo do herói: figurado por Evangelista, etc.), de contos maravilhosos (a partir da referência a elementos fantásticos, palácios, príncipes e princesas), da fuga dos amantes, do voo misterioso, do mito de Ícaro e de seu desejo de voar, etc. Há, nessas narrativas, «conexões entre os valores que são veiculados e os símbolos que os representam desde o início de nossa história e [...] isso se repete para mostrar que também há conexão entre as diversas gerações humanas» (Rodrigues, 2014b, p. 190). Das urdiduras do imaginário às ressignificações em narrativas contemporâneas, compreendemos que o percurso narrativo das personagens impresso em O Romance do Pavão Misterioso, da capa aos versos, advém de uma estrutura mítico-simbólica que se efetuou como processo contínuo e multissemiótico de atualização de um imaginário universal em contexto nordestino.

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